sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Requião: Brasil se rende à globalização desenfreada justamente quando ela vai à falência



PEC 55, ex-PEC 241, o Tratado de Versalhes self-servisse

por Roberto Requião*


A chamada PEC 241 tem assombrosas semelhanças e coincidências com o Tratado de
Versalhes, que levou a Alemanha da República de Weimar à hiperinflação e à ruína
econômica, na primeira metade da década de 1920.
As coincidências são quase matemáticas, numerológicas. O centro do Tratado de
Versalhes estava no seu artigo 231, a chamada “Claúsula da Culpa”.
Mediante tal cláusula, atribuía-se à Alemanha toda a culpa da guerra e a
consequente necessidade dela pagar reparações pelos danos causados aos aliados,
particularmente à França, em cujo solo as grandes batalhas foram realizadas.
A Alemanha, já muito enfraquecida pelo esforço de guerra e pela perda de suas
colônias e de territórios economicamente importantes, como os da Alta Silésia,
ricos em carvão, e a região industrial do Sarre, foi forçada a assinar um cheque
em branco.
Mais tarde veio a conta: 269 bilhões marcos ou 6,6 bilhões libras esterlinas,
uma quantia astronômica para a época, claramente impagável, a não ser com
sacrifícios insustentáveis.
Em síntese, as reparações impediriam a Alemanha de gastar suas receitas
promovendo investimentos e o bem estar de sua população.
Os alemães protestaram, argumentando, com razão, que tal imposição levaria uma
economia já muito debilitada à completa ruína e seus habitantes à fome. Em vão.
O objetivo do Tratado de Versalhes não era propiciar a recuperação da República
de Weimar, mas exatamente o contrário: humilhá-la e arruiná-la.
A agenda de Versalhes era a destruição irracional.
Mas havia vozes discordantes. A principal delas era a de Keynes.
À época funcionário do Tesouro britânico, Keynes participou das negociações do
Tratado. Sua visão, entretanto, era bem diferente.
Para ele, as negociações deveriam focar na recuperação econômica da Alemanha e
da Europa. Isso implicava que a Alemanha não deveria pagar reparações de guerra
ou pagar uma quantia muito inferior à pretendida pelos aliados.
Mais ainda: os EUA, que estavam em melhores condições, deveriam subsidiar um
programa de investimentos produtivos na Alemanha e no resto da Europa,
promovendo o crescimento econômico do continente e obtendo dividendos da
recuperação econômica.
Não foi escutado.
Frustrado e com problemas de saúde, voltou a Londres, onde escreveu As
Consequências Econômicas da Paz, uma crítica duríssima  ao Tratado de Versalhes.
Escreveu ele:
É um fato extraordinário que o problema econômico fundamental de uma Europa
faminta e se desintegrando diante de seus olhos fosse a única questão a não
despertar o interesse dos quatro aliados. A reparação foi a principal excursão
deles no campo econômico, e eles a estableceram lenando em consideração vários
pontos de vista, exceto o do futuro econômico dos Estados cujo destino eles
estavam manipulando.
Keynes descrevia a paz do Tratado de Versalhes como uma “paz cartaginesa”,
referência ao tratamento dispensado a Cartago por Roma, que, após a terceira
guerra púnica, destruiu a cidade e salgou a terra onde estava situada para que
lá não se cultivasse nada.
O livro fez grande sucesso, em especial nos EUA, que acabaram por não ratificar
o Tratado original.
Décadas mais tarde, após a outra grande guerra, ele inspiraria o Plano Marshall,
programa de investimentos que foi decisivo para a recuperação econômica da
Europa, principalmente da Alemanha, no pós-guerra.
Como previra Keynes, o Tratado de Versalhes levou à República de Weimar à ruína
e à hiperinflação. Incapaz de pagar as reparações exorbitantes, a Alemanha
sofreu, como retaliação, a ocupação do vale do Ruhr, sua principal zona
industrial.
A produção caiu substancialmente e, com ela, as receitas. As parcas reservas
sumiram e não restou alternativa ao Estado germânico que a emissão febril de
moeda para pagar compromissos mínimos.
Em pouco tempo, milhões de papiermarks valiam menos que a tinta do Tratado.
Havia moeda, havia títulos, havia bancos, mas não havia produção e
investimentos.
A solução veio quando Hjalmar Schacht assumiu, em outubro de 1923, o Reichsbank
e implantou uma reforma monetária combinando ideias dos economistas Karl
Helfferich e Rudolf Hilferding.
Como a Alemanha não tinha reservas em ouro, lastreou-se uma nova moeda, o
rentenmark, em terras e ativos agrícolas e industriais. Num átimo, a inflação
cedeu.
O melhor, porém, foi que os títulos do rentenmark se tornaram muito mais
lucrativos que quaisquer outros, pois o governo garantia lucros reais para os
investidores. Assim, o novo sistema financeiro passou a canalizar o dinheiro
para a produção, o que levou a economia alemã a crescer de novo.
Não obstante, o ignóbil Tratado de Versalhes continuou a humilhar a Alemanha de
diversas formas, o que levou, em última instância, à emergência do nazismo e o
mundo a uma nova guerra mundial.
Pois bem, a PEC 241 é o nosso Tratado de Versalhes.
Com uma grande diferença: a “Cláusula da Culpa” foi substituída, no caso, por
uma  “Cláusula da Vergonha”, pois o Versalhes tupiniquim, ao contrário do
Versalhes germânico, é autoimposto.
Com a PEC 241, o Brasil do golpe decidiu se autoderrotar, se autoflagelar.
Decidiu ser um país fraco, quase insignificante. Decidiu salgar a sua própria
terra.
Somente os muito ingênuos ou os mentecaptos irremediáveis acreditam que a PEC
241 destina-se realmente a buscar o equilíbrio das contas públicas.
Nenhum outro país congelaria suas despesas primárias por 20 anos, a não ser que
fosse obrigado a fazê-lo por potências estrangeiras.
Segundo o FMI, apenas cinco países praticam tetos de gastos. Nenhum deles, no
entanto, o faz por 20 anos.
O prazo estipulado não passa de quatro anos, que é justamente o prazo do acordo
político que viabiliza o teto. Em nenhum deles há imposição legal do teto, muito
menos imposição constitucional.
Não há sanções para descumprimento e o teto pode ser abandonado a qualquer
momento.
Em quase todos, há exceções e válvulas de escape.
Assim, nos poucos países em que há teto de gastos, há controle democrático do
teto e há, sobretudo, flexibilidade para mudá-lo, descumpri-lo ou adaptá-lo.
Saliente-se, por último, que todos esses países são altamente desenvolvidos, com
gasto social per capita muito elevado e serviços públicos de grande qualidade.
Ao contrário do Brasil.
A PEC 241, no entanto, impõe uma austeridade, absoluta, inflexível e de longo
prazo. Uma austeridade cartaginesa.
É óbvio que o reequilíbrio das contas públicas poderia ser obtido de outra
forma.
É completamente irracional se gerir despesas independentemente do comportamento
das receitas e do PIB.
Segundo alguns cálculos, poderemos chegar ao final do período de vigência da
PEC, fazendo inacreditáveis superávits primários de 7% do PIB, sem poder
investir em serviços públicos essenciais para o bem-estar da população ou em
investimentos que dinamizem a produção.
Todo o dinheiro sobrante teria de ir para o pagamento do sistema financeiro e
dos rentistas.
Como a Alemanha de Weimar, que trabalhava para pagar reparações às outras
potências, o Brasil passaria a trabalhar exclusivamente para pagar reparações ao
insaciável Mamon.
No mundo inteiro, ninguém faz uma loucura dessas.
Mas há método nessa loucura. O objetivo central da PEC 241 não é o reequilíbrio
das contas públicas.
A PEC 241 faz parte de uma estratégia de longo prazo, a qual visa impor mudanças
estruturais definitivas no Brasil.
A ideia central é substituir o modelo desconcentrador e inclusivo previsto
implicitamente na Constituição de 1988 e parcialmente implantado e aprofundado
pelo PT por um modelo concentrador e marginalizador, que diminuirá os custos do
trabalho e da seguridade social, aumentando a margem de lucro das empresas e
assegurando ao sistema financeiro e aos investidores especulativos o pagamento
de juros extorsivos em larga escala.
Ao mesmo tempo, pretende-se alienar, a preços de conveniência, os setores
estratégicos da economia nacional, como o setor de petróleo e gás, com as
magníficas jazidas do pré-sal.
Também se almeja a abertura irrestrita às “cadeias internacionais de valor”,
mediante a adesão a acordos de “nova geração” (TTIP, TPPP, TISA etc.), a
desconstrução do Mercosul e o realinhamento da política externa à órbita
estratégica dos EUA.
Nesse sentido, os verdadeiros objetivos da PEC 241 são:
i. Estrangular o incipiente Estado de Bem Estar do Brasil, reduzindo a níveis
mínimos.
ii. Pavimentar a reimplantação de um padrão de acumulação centrado na redução de
custos trabalhistas e sociais. Esse padrão será funcional para a inserção do
país nas “cadeias internacionais de valor”, como exportador de commodities e de
insumos baratos. A dinâmica econômica será transferida do mercado interno de
massa, que não pode subsistir com desigualdade, para o setor externo, que a
exige.
iii. Impor, pelo rebaixamento das despesas, a Reforma da Previdência e a Reforma
Administrativa, velhos sonhos dos nossos neoliberais, que consideram o Estado
Mínimo condição sine qua non para a competitividade do país.
iv. Forçar a desvinculação dos benefícios assistenciais e previdenciários ao
salário mínimo.
v. Propiciar a privatização de serviços públicos, como recomenda o TISA, e como
já sinalizaram vários ministros do governo golpista.
vi. Sinalizar, para os investidores internacionais e nacionais, que a política
econômica ortodoxa e neoliberal estará blindada na Constituição e fora do
controle democrático do voto popular.
O golpe e a PEC 241 vieram para destruir e arruinar, como o Tratado de
Versalhes. Não vieram apenas para acabar com a democracia política.
Vieram para acabar com nossa incipiente democracia social. Vieram para acabar
com a saúde pública, a educação pública, a previdência pública e os programas
sociais.
Vieram para acabar com os direitos trabalhistas e previdenciários. Vieram para
tirar os pobres e os negros das universidades.
Vieram para tirar as crianças pobres da escola e devolvê-las às ruas. Vieram
para tirar os pobres do orçamento.
Vieram, sobretudo, para acabar com a soberania e com a possibilidade do país ter
desenvolvimento nacional e autônomo.
Os estrategistas de Versalhes queriam uma Alemanha fraca, submissa,
politicamente secundária, militarmente nula, desindustrializada e economicamente
dependente.
Os criadores da PEC 241 querem o mesmo para o Brasil.
Há, porém, alternativa e esperança. O Brasil precisa de um Plano Marshall, que
recupere a economia produtiva e real, não de um novo Tratado de Versalhes, que
só alimentará um sistema financeiro parasitário e promoverá a destruição dos
núcleos estratégicos do nosso sistema produtivo e a dependência econômica.
Como a Alemanha da década de 1920, precisamos de um mecanismo financeiro que
estimule a produção e os investimentos.
Nas próximas semanas, apresentaremos nossas propostas para incentivar os
investimentos produtivos e promover o desenvolvimento do País.
O equilíbrio das contas públicas virá como resultado do crescimento, não do
corte irracional, pró-cíclico e contraproducente dos gastos públicos.
Keynes, sempre premonitório, escreveu, em As Consequências Econômicas da Paz,
que os homens nem sempre aceitarão morrer de modo resignado. Os alemães não
aceitaram.
A PEC 241 é a morte do Brasil soberano, forte, próspero e inclusivo.
Mas temos certeza que o Brasil não aceitará sua morte de forma resignada.
Roberto Requião é Senador da República em seu segundo mandato. Foi governador do
Paraná por 3 três mandatos, prefeito de Curitiba e deputado estadual. É graduado
em direito e jornalismo com pós-graduação em jornalismo.
PS do Viomundo: O curioso é esta adesão do Brasil à globalização desenfreada
justamente quando o edifício sobre a qual ela se assenta apresenta as rachaduras
do Brexit e da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos.
In
VIOMUNDO
http://www.viomundo.com.br/politica/requiao-brasil-adere-a-globalizacao-desenfreada-justamente-quando-ela-vai-a-falencia.html
10/11/2016

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