domingo, 20 de novembro de 2016

Terceirização ampla e irrestrita é rebaixamento das condições de trabalho.



Valdete Souto Severo

Anunciada ontem a pauta do Congresso Nacional, com inclusão do PLC 30, que trata
da terceirização ampla e irrestrita, para votação no próximo dia 24/11. É uma
dança. Ou melhor: um movimento de guerra, em que estratégias são utilizadas para
fazer prevalecer a vontade de alguns, em detrimento da maioria, que ainda
resiste.

A inclusão do processo que versa sobre terceirização, na pauta do último dia 09,
no Supremo Tribunal Federal (STF), teve o objetivo de impor ao Congresso a
votação do PLC 30. Aliás, o Ministro Gilmar Mendes disse isso expressamente.
Fazem eles, ou faremos nós. Não fizeram. O processo foi retirado de pauta, mas o
Congresso entendeu o recado. E reincluiu em pauta de votação um projeto de lei
de 2004, contra o qual a sociedade organizada, através de entidades
representativas de classe, dos movimentos sociais e do Ministério Público do
Trabalho, vem incessantemente lutando. Foram realizadas mais de vinte audiências
públicas, por todo o Brasil, nas quais denunciados números irrefutáveis.
Terceirização é rebaixamento das condições de trabalho; é incentivo ao trabalho
infantil ou em condições de escravidão. O material empírico que demonstra isso
renova-se a cada dia. Em fevereiro deste ano, a prestadora de serviços Higilimp
desapareceu sem pagar salários, vale refeição e vale transporte atrasados há
meses.

Em outubro, empregados terceirizados que trabalham no município de Jequié, na
Bahia, contratados através da empresa Terceira Visão, protestaram contra o
atraso de mais sete meses no pagamento dos salários. Em Porto Alegre, mais da
metade das demandas trabalhistas envolve terceirização e na grande maioria delas
a prestadora de serviços já desapareceu ou comparece à audiência apenas para
dizer que encerrou suas atividades ou não tem patrimônio para adimplir seus
débitos.

Os trabalhadores, desesperados, se veem diante de grandes empresas, como
instituições financeiras ou companhias telefônicas, que se negam a realizar
acordos ou efetuar pagamento espontâneo dos salários não adimplidos, ao
argumento de que não tem responsabilidade. Enquanto isso, essas pessoas de carne
e osso seguem sua vida na miséria, fazendo empréstimos nessas mesmas
instituições financeiras para as quais prestaram serviço, atrasando a conta de
telefone e sujeitando-se aos juros abusivos que daí decorrem; pedindo dinheiro a
amigos e parentes.

Perdem seus empregos e nada recebem. Não recebem o valor do trabalho que
realizaram, mas também lhes é negada a própria condição de trabalhador. A frase
“eu nem sei se ele trabalhou ou não em favor da minha empresa”, repetida por
prepostos de tomadoras dos serviços de limpeza, vigilância, TI, telemarketing,
vendas, entregas, e tantas outras atividades, releva a face mais cruel da
terceirização. O terceirizado, embora muitas vezes sequer conheça a sede da
prestadora; embora tenha trabalhado, por meses ou anos, dentro da sede de uma ou
mais tomadoras, não tem sequer o direito ao reconhecimento de que trabalhou, de
que seu trabalho tornou possível aquele empreendimento, de que foi ele, e mais
ninguém, quem levantou pela manhã, tomou um ou dois ônibus, colocou o uniforme e
limpou, atendeu, vendeu, protegeu o patrimônio daquela empresa.

Se um projeto como o PLC 30 for aprovado, estaremos chancelando simbolicamente o
rebaixamento das condições de trabalho, de produção, de consumo e de convívio
humano. A terceirização estimula a realização de contratos mais curtos,
aumentando a rotatividade e, portanto, o uso de benefícios sociais como o seguro
desemprego. Os acidentes e doenças do trabalho ocorrem com muito mais frequência
entre os terceirizados, trazendo consigo consequências sociais e previdenciárias
graves. Essas consequências, especialmente a redução da remuneração, tem efeitos
diretos sobre o mercado de trabalho, pois a circulação de riqueza depende da
existência de sujeitos capazes de consumir e, portanto, bem remunerados.

O projeto de lei abre as portas para a existência de empresas sem empregados,
pois permite que toda a força de trabalho necessária à consecução do
empreendimento seja contratada por intermédio de terceiros. Essa distância
(apenas formal) entre o empregado e o verdadeiro beneficiário da sua força de
trabalho, provoca invisibilidade, descomprometimento, e, como consequência, a
fragmentação da classe trabalhadora em prejuízo direto à organização sindical.

O direito do trabalho e, portanto, as relações trabalhistas, foram construídas
no tempo pela organização e resistência. Pulverizando os trabalhadores,
atrelando cada setor da fábrica a uma empresa prestadora diferente, por exemplo,
o capital consegue aniquilar essa “sensação de pertencimento” a uma mesma classe
de trabalhadores, porque promove a concorrência interna e, com isso, elimina a
possibilidade de resistência coletiva organizada.  É preciso perceber que
qualquer redução de direitos sociais implica, em última análise, piora das
condições sociais de vida de toda a população, o que significa dar muitos passos
atrás em relação ao projeto de sociedade que instituímos com a Constituição de
1988, promover um retrocesso que certamente terá custos históricos que hoje
sequer conseguimos projetar integralmente.

Aprovar o PLC 30 é aprovar o calote institucionalizado. Quem perde são os
trabalhadores, mas é também a sociedade que, especialmente em caso de
terceirização em favor de ente público, acaba pagando a conta. Paga a conta com
o aumento do número de benefícios sociais e previdenciários, com a redução do
consumo, com a piora na qualidade dos produtos e serviços ofertados, e com a
invisibilidade para a qual joga uma parcela significativa da sua população. A
lição de Saramago é mais atual do que nunca: quando tratamos pessoas como
animais, elas passam a guiar seus atos pelo extinto de sobrevivência, pois nada
mais lhes resta de humano a preservar. Se esse projeto de lei for aprovado ou se
o STF chancelar a terceirização através de decisões com repercussão geral, em
breve teremos de fechar as portas da Justiça do Trabalho. Sobrará muito pouco
para discutir em demandas trabalhistas. Eis mais uma batalha importante a ser
travada: não, não, não à terceirização!

Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora
do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS – Rede Nacional de
Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora,
Coordenadora e Diretora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho
do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.     
 
In
CSP CONLUTAS
http://cspconlutas.org.br/2016/11/terceirizacao-ampla-e-irrestrita-e-rebaixamento-das-condicoes-de-trabalho-por-valdete-souto-severo/
17/11/2016

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