terça-feira, 27 de junho de 2017

Como as classes populares fizeram história

   
     
       por Marcus Rediker [*]
       entrevistado por Jérôme Skalski 


       Em  Les Hors-la-loi de l'Atlantique (Os fora da lei do Atlântico)
       publicado pelas edições du Seuil, o historiador norte americano
       oferece-nos uma síntese das suas pesquisas a respeito da história da
      navegação à vela, matriz do sistema capitalista, mas também lutas,
      recalques e ideais da modernidade.
       A sua obra  Os fora da lei do Atlântico  oferece-nos uma síntese de
      trinta anos de pesquisa sobre a história da navegação à vela dos séculos
       XVII, XVIII e da primeira metade do século XIX. Como se inscreve o seu
       trabalho na corrente histórica chamada "a historia subjacente"  (histoire
      par en bas)  ? 
       Marcus Rediker: A primeira coisa que gostaria de dizer é que a expressão
      "historia subjacente" foi utilizada pela primeira vez pelo historiador
      francês Georges Lefebvre, nos anos anteriores à guerra. A tradição da
      história subjacente (historia por baixo) à qual efectivamente pertenço,
      compreende historiadores franceses, mas também e principalmente ingleses,
      como E. P, Thomson [1] e Christopher Hill [2] , historiadores marxistas e
      pioneiros desse tipo de história nos anos 60. Nos Estados Unidos nos anos
      70, uma versão ligeiramente diferente desse tipo de história foi
      desenvolvida sob o nome de "historia de baixo para cima  (history from the
      bottom up)  no sulco dos movimentos contra a guerra do Vietname,
      movimentos estudantis, movimentos femininos, novos movimentos operários,
      mas também movimentos pelos direitos cívicos e os Panteras Negras, que
      aspiravam a uma nova maneira de escrever a historia. Fui formado por esses
      movimentos. Comecei os meus estudos com o desejo de contar um outro género
      de história, diferente da história habitual. Nos Estados Unidos, a
       verdadeira ciência histórica foi suprimida pela guerra-fria. O
       historiador norte-americano mais representativo desta corrente foi Howard
      Zinn, com a sua  Historia Popular dos Estados Unidos  [3] que foi vendida
      em milhões de exemplares. O que é muito importante neste género de
      história, é que é não só a história dos pobres ou mesmo das classes
       trabalhadoras em geral, mas também a da sua capacidade de agir  (agency),
       ou seja da sua capacidade de afectar o curso da história, não apenas como
      instâncias passivas do processo histórico. As suas lutas afectaram
      profundamente o curso da história. Para mim esse foi sempre um ponto
      importante: mostrar como as classes populares fizeram história e mudaram o
      modo como o processo histórico se desenvolveu.
       Um aspecto original da sua aproximação não é também ter descrito no mar
      um processo análogo ao que Marx analisa em  O Capital  sobre a
      transformação da manufactura como pivô da história do capitalismo moderno?
      
       Marcus Rediker: Muitas pessoas pensam que a essência do capitalismo está
      ligada quase exclusivamente ao trabalho assalariado. O meu trabalho foi o
      de sublinhar a centralidade do comércio servil, da escravatura e do
      trabalho forçado, no surgimento do capitalismo como sistema. O sistema
      servil do Atlântico, ao Brasil, às Caraíbas, ao norte da América, foi a
      fonte de uma enorme massa de capital. O meu ponto de vista foi em primeiro
      lugar quebrar as cadeias nacionais da história e mostrar que há fontes
      transnacionais e atlânticas dos desenvolvimentos económicos nacionais e em
      segundo lugar, insistir na importância do trabalho forçado nos
       desenvolvimentos. Outro dos meus argumentos é que o barco à vela, que se
      chama tecnicamente em inglês "o navio de alto mar de popa redonda"  (round
      headed deep seaship),  foi uma das máquinas mais importantes no início da
      era moderna e provavelmente uma das maquinas mais importantes a participar
      no surgimento do capitalismo. Os navios à vela e os trabalhadores que os
      faziam navegar cristalizaram literalmente os vários ramos desconexos da
      economia e um conjunto mundial. Esta maneira de considerar o navio à vela,
      e o navio negreiro em especial, como uma máquina dependente de um género
       particular do processo capitalista foi efectivamente influenciado pela
      minha leitura de Marx no que respeita ao processo de trabalho na
      manufactura. O navio à vela foi um factor decisivo na produção da força de
      trabalho para a economia mundial.
       Mas também me interessei pela maneira como os navios negreiros foram o
       vector da produção, num sentido analítico, das categorias de "raças" que
      viriam a dominar o capitalismo ocidental. Para dar um exemplo do
      funcionamento deste facto — falo mais precisamente do meu livro — havia as
      equipagens de marinheiros de um lado, que eram ingleses, franceses.
      holandeses, etc, e que trabalhavam nos navios em qualquer parte da Europa.
      Chegavam às costas africanas e tornavam-se "Brancos" ou melhor dizendo,
      eram racialisados no decurso da viagem. Por outro lado, temos um grupo
      multi-étnico de africanos, fantis, malinques, ashantis, etc transportados
      nos navios negreiros pelo Atlântico e que, quando chegavam à Jamaica, ao
      Brasil ou à Virgínia, se tornavam "Negros", representantes da "raça
      negra". O movimento através do espaço e o tempo produziu categorias
      raciais de análise. É um outro aspecto essencial engendrado por este
      processo.
       Demonstra também até que ponto a navegação à vela foi o campo de uma luta
      de classes frequentemente mal conhecida. Mesmo pioneira. 
       Marcus Rediker: Sim, a navegação à vela como meio de trabalho totalitário
      foi um laboratório no qual os capitalistas e o Estado tentaram
      experiências para ver o que podia funcionar nos outros sectores da
      economia. Os marinheiros e as relações entre o capital e o trabalho, nos
      navios de guerra em especial, foram o campo de desenvolvimento de novas
      formas de relações de poder. Dos dois lados, houve experimentações e
      inovações. Os capitalistas tentaram organizar uma divisão complexa de
      trabalho para fazer funcionar essas máquinas e utilizaram formas de
      disciplina extremamente violentas que obrigavam os trabalhadores a
      colaborar, Os marinheiros, por outro lado, traduziam essa colaboração
       forçada em novas formas de resistência. Menciono isso no meu livro. Por
      exemplo, em inglês, a palavra greve  (strike)  vem de uma palavra que
      designa o efeito de abater as velas para as fazer descer (baixar as
      velas). A primeira greve teve lugar nas docas de Londres em 1788. Os
      marinheiros dos arredores baixaram as velas, pela parte de cima, para as
      baixar e imobilizar os navios. Nessa ocasião, a classe trabalhadora
       descobriu um novo poder, através da colaboração a bordo dos navios e um
      aprendizado para a luta.
       É espantoso, apresenta igualmente um elo entre essas lutas sociais e
       políticas surgidas no meio marítimo e o início da grande pirataria no
      início do século XVII? Pirataria Potemkine de certa maneira, fonte secreta
      das revoluções americana e francesa, das Luzes, do abolicionismo, ou seja
      do socialismo? 
       Marcus Rediker: As pessoas ficam surpreendidas ao descobrir que havia uma
       grande criatividade entre os piratas. A minha aproximação consistiu
      essencialmente em partir das condições de vida dos marinheiros dessa
      época, colocando uma questão muito simples: porque se tornaram piratas? A
      resposta a essa pergunta é muito interessante, porque ela leva-nos às
      condições de trabalho extremamente difíceis nos navios à vela, salários
      muito baixos, alimentação pobre, disciplina violenta… tudo isso levou as
      pessoas à pirataria, por elas próprias. Quando estudamos como os piratas
      organizavam os seus navios, descobrimos que era uma maneira completamente
      diferente dos navios comerciais e dos navios de guerra. Primeiro, eram
      democratas: elegiam os oficiais e o capitão. Nessa época os trabalhadores
      não tinham quaisquer direitos democráticos. Em parte alguma do mundo! Os
      piratas tentaram uma experiência extraordinária de democracia. E
      funcionou! Por outro lado, a maneira como dividiam o saque era
      igualitária. É também um aspecto diverso da estrutura salarial sobre os
      navios mercantes ou sobre os navios da Armada Real. Os piratas eram muito
      ciosos da igualdade. Claro, utilizavam os seus navios para atacar a
      propriedade dos comerciantes e por isso os governos francês e britânico
      queriam aniquilá-los. Mas a outra razão pela qual procuravam
      exterminá-los, é que eles se esforçavam por esmagar um exemplo de
      subversão que demonstrava pelos factos que se podia organizar a navegação
      de um modo diferente da habitual. Os piratas, de certo modo, eram como os
      trabalhadores das fábricas, elegiam a sua direcção e mostravam como podiam
      organizar as fábricas de um modo simultaneamente democrático e
      igualitário. Isso atormentava as autoridades francesas e britânicas mais
      ainda do que pelo ataque à propriedade cometido pelos piratas.
       Se as autoridades conseguiram quebrar a pirataria, as suas ideias,
      levadas de boca em boca, pelos cais e pelas docas até ao interior das
      terras, conheceram uma via subterrânea até à sua actualização no decorrer
      dos processos revolucionários do fim do século. O meu trabalho foi seguir
      essas ideias através do tempo e demonstrar como se generalizaram entre as
      populações. Tiveram um impacto essencial no movimento das Luzes, mas
      também entre os trabalhadores. É o que chamei "as luzes a partir de baixo"
       (enlightment from below).  É também, com efeito, nos navios que nasceu a
       consciência abolicionista. Por exemplo, um homem como Benjamin Lay, que
       foi um dos primeiros opositores à escravatura e que em quot8 lançou, o
      que foi pioneiro nesse século, um apelo a uma completa abolição do sistema
      servil, era marinheiro. Isso é absolutamente crucial. Foi porque era
      marinheiro e conhecia as terríveis condições de trabalho da equipagem nos
      navios, que desenvolveu um ideal de solidariedade entre todos os homens,
      livres, escravos, entre todos os povos e entre todos os trabalhadores da
      terra.
       No fim da introdução da sua obra  A bordo do navio negreiro  [4] escreve:
      "O navio negreiro é um navio fantasma à deriva sobre as águas da
      consciência moderna". O que quer sugerir com essa fórmula? 
       Marcus Rediker: O que quero dizer é que o navio negreiro está sempre vivo
      quanto às consequências do que se passou. A herança do tráfico de escravos
      e a herança da escravatura, especialmente nos Estados Unidos, mas também
      na Grã-Bretanha, na França, e noutros países europeus, está ainda muito
      presente hoje. Está presente nas discriminações raciais, na profunda
      desigualdade estrutural que se apresenta nas nossas sociedades. As
      violências extremas feitas às populações nos bairros populares são um
      exemplo da permanência da herança da escravatura. Todas essas coisas
       remontam à história da escravatura e ao modo como a categoria de "raça"
      ficou institucionalizada na vida moderna. Quando digo que o navio negreiro
      é um "navio fantasma" quero dizer que ele ainda está connosco. A denegação
      é muito grande, mas a presença espectral da escravatura principalmente nos
      Estados Unidos, é extremamente importante, ainda é preciso muito para
       encerrarmos este assunto. Não somos capazes de acabar com ela porque não
      temos a coragem de a encarar de frente. É mais visível nos Estados Unidos
      porque o facto da escravatura foi vivido no território do país. A
      escravatura, para os europeus, foi vivida nas suas possessões coloniais, e
      é algo abstracto. Para os americanos foi um elemento concreto da vida de
      todos os dias, Há grandes diferenças entre a situação nos Estados Unidos e
      na Europa, mas principalmente do trabalho dos historiadores sobre os dois
      lados do Atlântico. A Europa não se pode considerar de fora deste
      problema.
       (1) Edward Palmer Thompson,  La Formation de la classe ouvrière anglaise
      (A formação da classe operária inglesa)  , Le Seuil, Colecção "Points",
      2012.
       (2) Christopher Hill,  Change and Continuity in 17th-Century England
      (Mudança e continuidade na Inglaterra do século XVII)  , Harvard
      University Press, 1975.
       (3) Howard Zinn,  Une histoire populaire des États-Unis (Uma historia
      popular dos Estados Unidos)  , Agone, 2002.
       (4) Marcus Rediker,  À bord du négrier. Une histoire atlantique de la
      traite (A bordo do navio negreiro. Uma história atlântica do tráfico)  ,
      Seuil, 2013.  
      [*] Historiador, estado-unidense,  www.marcusrediker.com
       O original encontra-se em  www.legrandsoir.info/... . Tradução de MA. 
       Esta entrevista encontra-se em  http://resistir.info/ .
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/varios/rediker_01jun17_p.html#asterisco
27/6/2017 

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