terça-feira, 5 de setembro de 2017

Crise Estados Unidos - Coreia do Norte



Entrevista com Robert Charvin*

«Maltratar um povo (…) é provocar que no seu seio surja aquilo que poderia
designar-se com «efeito cidadela». Assediados por todos os lados e por todos os
meios, ameaçados de agressão militar, colocados em dificuldades económicas,
desacreditados na opinião internacional pelos poderes mediáticos, esses povos
não podem senão ter uma reacção defensiva feita de um patriotismo virulento, de
uma feroz mobilização, de um monolitismo sem falhas. Toda a crítica, numa
situação de beligerância crónica, não pode senão ser traição!»


Initiative Communiste (IC) : A sua obra inspira-se na interrogação de
Montesquieu “Como pode ser-se persa?”? Não será que o modo como a Coreia do
Norte é tratada no espaço mediático em França, assente sobre preconceitos, é
indigno do espírito de observação próprio do Iluminismo?
Robert Charvin (RC) : Montesquieu ironizava sobre os incultos etnocentristas que
não concebiam que alguém “pudesse ser persa”! Alguns séculos mais tarde, a mesma
coisa continua a suceder nos seis da “pátria” dos direitos do homem (na
realidade, do homem ocidental) cujos valores são os únicos a serem «universais».
Os Outros só têm lições a aprender da nossa eterna grandeza: os «trumpistas»
franceses precederam os americanos! Os países que não alinham estão errados e os
seus dirigentes são rufias perigosos para o mundo!
Em Paris, como em Washington, sabe-se que a única democracia válida é electiva,
pouco importando que sejam o dinheiro ou a violência (conforme os países) quem
decide os resultados. Quanto aos direitos económicos e sociais, não entram em
linha de conta quando se faz a avaliação…e quando são decididas sanções contra
os regimes que «desagradam»! Os Euro-americanos, senhores (provisórios) do
mundo, autoproclamam-se desse modo juízes do «Bem e do Mal» na ordem
internacional. Os principais media e os partidos seguem sem escrutínio as
sentenças desses juízes. A Coreia do Norte é consensual: seria a encarnação da
malignidade, embora ninguém aluda à sua trágica história nacional (feroz
colonização japonesa, devastadora guerra americana, embargo e sanções sucessivas
desde 1953, etc.). São raros os que conhecem o seu sincretismo ideológico feito
de marxismo e de confucianismo. Para se confortarem com o seu «legítimo
direito», numerosos Ocidentais preferem ignorar.
IC:  Na sua obra, recorda certas realidades da história coreana (um embaixador
coreano cometendo suicídio perante a indiferença geral das grandes potências que
avalisavam a colonização do seu país pelo Japão, um único edifício em pé em
Pyongyang após os bombardeamentos dos EUA durante a Guerra da Coreia, etc.) É
esta trágica história que explica a feroz resistência patriótica que a RPDC
sempre opôs ao imperialismo?
RC: Maltratar um povo como aconteceu com o povo soviético após a Revolução de
Outubro, com o povo palestino desde há mais de um século, com o povo Cubano
depois de 1958, ou com o povo norte-coreano, é provocar que no seu seio surja
aquilo que poderia designar-se com «efeito cidadela». Assediados por todos os
lados e por todos os meios, ameaçados de agressão militar, colocados em
dificuldades económicas, desacreditados na opinião internacional pelos poderes
mediáticos, esses povos não podem senão ter uma reacção defensiva feita de um
patriotismo virulento, de uma feroz mobilização, de um monolitismo sem falhas.
Toda a crítica, numa situação de beligerância crónica, não pode senão ser
traição!
Qualquer concessão se torna um passo no sentido da capitulação. Se o Ocidente e
os seus «direitistas-do-homem» profissionais tivessem na realidade vontade de
favorecer os direitos do homem na Coreia e no mundo, como dizem, denunciariam as
sanções colectivas e favoreceriam o desanuviamento e a cooperação. A política de
agressão e as sistemáticas condenações mediáticas são incompatíveis com a «ajuda
ao desenvolvimento da democracia». Estrangular um povo leva-o a respirar mal e a
debater-se!
Esta patologia feroz, associada ao facto de que o capitalismo necessita de
inimigos, coloca entretanto vantagens para as vítimas. O povo coreano está
informado, concretamente, do que é o imperialismo e as suas taras destrutivas.
Soube constituir-se como uma força de resistência homogénea, coerente, aprender
a ultrapassar as dificuldades impostas de fora. É grave que os progressistas e
numerosos comunistas no Ocidente não tenham uma consciência clara disso, e que
prefiram o imperialismo dos grandes à soberania dos pequenos!
IC: Manobras militares gigantescas, instalação de mísseis, de submarinos e
porta-aviões nucleares, os Estados Unidos optam por uma estratégia de tensão na
Coreia: é exagerado falar-se em ameaça à paz mundial?
RC:  Há décadas que os Estados Unidos e seus aliados (em particular os de Seul e
Tóquio, mas também os de Paris) ameaçam a própria existência da Coreia do Norte
invocando, paradoxalmente, as suas «provocações»! Contudo, quem está à sua porta
é o mais gigantesco exército do mundo, o dos EUA, dotado das armas mais
sofisticadas, incluindo as nucleares. Em cada ano manobra nas suas fronteiras
juntamente com as tropas sul-coreanas e outras, simulando cerco e ataques! O
povo coreano, nomeadamente as populações civis, sofreu já massacres como os que
os exércitos ocidentais praticam quando pretendem destruir um sistema que não
lhes convém: não está esquecida a guerra de 1950-1952!
São os EUA quem, bem longe do seu território nacional, provocam todos os povos
da região, que querem manter ou colocar sob a sua tutela!
São os EUA quem coloca perigosamente no tabuleiro a sua capacidade nuclear,
ousando invocar a legítima defesa. Ao discurso delirante de Trump junta-se uma
propaganda massiva e sem matizes contra a Coreia do Norte, que os Europeus
reproduzem. Certos filmes americanos chegam a imaginar uma invasão militar
norte-coreana do território dos EUA: o filme “Red Dawn”, por exemplo, que
recentemente foi exibido num canal de televisão francês!
Na realidade, esta paranóia anti-coreana é totalmente simulada. Ela dissimula,
efectivamente, uma realidade geoestratégica de primeira importância para os EUA:
a Coreia é uma zona de contactos com a China, a Rússia e o Japão. A manutenção
da presença militar norte-americana é considerada necessária aos interesses dos
EUA. A pequena Coreia do Norte é o inimigo «útil». É necessário alimentar a sua
má reputação comunista, é necessário evitar a sua reunificação com o Sul de modo
a conservar um abcesso de fixação que justifique a ingerência dos EUA na região
(nomeadamente as suas bases na Coreia do Sul, em Guam, etc.). Todos os meios são
bons para manter um estado de guerra larvar impeditivo do desenvolvimento rápido
da Coreia do Norte, com o risco de desencadear o confronto entre as grandes
potências.
Aí também se impõe lamentar que certas correntes progressistas, obcecadas pelo
eleitoralismo, negligenciem o facto de a RPDC propor, desde sempre, a
desnuclearização de toda a região, estar pronta a concluir um tratado de paz com
os EUA que garanta a sua soberania e a cooperar com todos os Estados do mundo.
Colocar no mesmo plano as entidades em presença, do mesmo modo que também fazem
com Palestinos e Israelitas, com a Rússia e os EUA, em nome de uma paz cujo
conteúdo não é definido, é efectivamente fazer um favor aos agressores.
IC: Em 2016 e 2017 um movimento popular muito importante levou à queda do
governo Park. Existe uma evolução no sentido da democratização do regime
autoritário do sul? As primeiras declarações do novo presidente, sobre a
reabertura do diálogo directo com a Coreia do Norte, sobre o sistema antimísseis
norte-americano em vias de instalação, apontam em várias direcções. Não é o povo
coreano o principal recurso para a paz?
RC: A força decisiva para que se verifiquem mudanças positivas na Coreia é a
totalidade do povo coreano. A responsabilidade por que não existam ainda boas
relações entre o Norte e o Sul após o final da guerra mundial cabe às grandes
potências, e aos EUA em primeiro lugar.
Quando se verificam mudanças em Seul (como foi o caso com a eleição de Kim
Dae-jung ou recentemente com a eliminação da presidência corrupta da srª Park
(hoje na prisão), realiza-se uma aproximação Norte-Sul. Os media ocidentais
foram muito discretos acerca do vasto movimento de massas que derrubou a equipa
dirigente em Seul, grande aliada dos EUA! Infelizmente a nova equipa, que não é
já sistematicamente hostil ao Norte, permanece subordinada aos EUA e a sua linha
política não é ainda livre.
Mas o povo sul-coreano, incluindo os grandes grupos económicos como Hyundai,
como o povo do Norte, desejam a reunificação e a paz, a coreanidade tem para
ambas as partes mais virtudes, por muito que isso custe ao Ocidente, do que a
American Way of Life, importada para o sul após 1949.
Pode razoavelmente conceber-se que, apesar de todos os obstáculos, o Norte e o
Sul, encontrem a via no sentido de uma confederação, que num primeiro tempo
respeite as duas soberanias e os dois regimes socioeconómicos, primeiros passos
de um caminho no sentido da unidade que faria da Coreia uma nova e importante
potência emergente.
A solidariedade internacional, hoje amputada pela contaminação das teses dos
neoconservadores e pelas concepções da social-democracia (com a excepção de
alguns casos individuais com Jack Lang) que invadiram a corrente progressista,
deverá poder renascer se a lucidez prevalecer sobre o etnocentrismo e
ultrapassar a geopolítica. A causa coreana merece-o.
* Deão honorário da Faculdade de Direito de Nice, militante comunista, autor do
livro recentemente publicado por Delga “Comment peut-on être Coréen du nord ?”
(“Como pode ser-se norte-coreano?”),
Este texto foi publicado em:
https://www.initiative-communiste.fr/articles/international/crise-etats-unis-coree-lanalyse-de-robert-charvin-specialiste-de-coree/

In
O DIÁRIO.INFO
https://www.odiario.info/crise-estados-unidos-coreia-do-norteentrevista/
5/9/2017

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