quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Lewandowski protesta contra estado de exceção




"Prisões provisórias que se projetam no tempo, denúncias baseadas apenas em
delações de corréus, vazamentos seletivos de dados processuais, exposição de
acusados ao escárnio popular, condenações a penas extravagantes, conduções
coercitivas, buscas e apreensões ou detenções espalhafatosas indubitavelmente
ofendem o devido processo legal em sua dimensão substantiva, configurando,
ademais, inegável retrocesso civilizatório", escreve o ministro Ricardo
Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal


Por Ricardo Lewandowski

O conceito de devido processo legal aparentemente anda um pouco esquecido entre
nós nos últimos tempos. Cuida-se de uma das mais importantes garantias para
defesa dos direitos e liberdades das pessoas, configurando um dos pilares do
constitucionalismo moderno.

Tem origem na Magna Carta, de 1215, através da qual o rei João Sem Terra, da
Inglaterra, foi obrigado a assegurar certas imunidades processuais aos seus
súditos.

O parágrafo 39 desse importante documento, ainda hoje em vigor, estabelece que
"nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado de seus bens, ou
colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado [...] senão
mediante um julgamento regular de seus pares ou em harmonia com a lei do país".
Tais prerrogativas foram sistematicamente reconfirmadas pelos monarcas
subsequentes, sendo a expressão, "lei do país", substituída pela locução "devido
processo legal", em 1354, no Estatuto de Westminster.
Com isso, os direitos das pessoas passaram a ser assegurados não mais pela mera
aplicação da lei, mas por meio da instauração de um processo levado a efeito
segundo a lei.
De lá para cá, essa franquia incorporou-se às Cartas políticas da maioria das
nações democráticas, constando do art. 5º, LIV, de nossa Constituição, com o
seguinte teor: "Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal."
Trata-se de uma moeda de duas faces. De um lado, quer dizer que é indispensável
a instauração de um processo antes da restrição a quaisquer direitos.
De outro, significa que o processo precisa ser adequado, ou seja, não pode ser
simulacro de procedimento, devendo assegurar, no mínimo, igualdade entre as
partes, o contraditório e a ampla defesa.
O devido processo legal cresce em importância no âmbito penal, porque nele se
coloca em jogo a liberdade que, depois da vida, é o bem mais precioso das
pessoas.
Sim, porque o imenso poder persecutório do Estado, detentor monopolístico do
direito de punir, só se submete a temperamentos quando observada essa garantia
essencial.
Nunca é demais lembrar que o processo atualmente não é mais considerado meio de
alcançar a punição de quem tenha infringido as leis penais, porém um instrumento
de tutela jurídica dos acusados.
Mas não é só no plano formal que o devido processo legal encontra expressão. Não
basta que os trâmites, as formalidades e os procedimentos, previamente
explicitados em lei, sejam observados pelo julgador. É preciso também que, sob o
aspecto material, certos princípios se vejam respeitados.
Nenhum valor teria para as partes um processo levado a efeito de forma mecânica
ou burocrática, sem respeito aos seus direitos fundamentais, sobretudo os que
decorrem diretamente da dignidade da pessoa humana, para cujo resguardo a
prestação jurisdicional foi instituída.
O direito ao contraditório e à ampla defesa fica completamente esvaziado quando
o processo judicial se aparta dos princípios da razoabilidade e
proporcionalidade ou do ideal de concretização do justo.
Com efeito, uma decisão que atente contra a racionalidade, a realidade factual
ou os princípios gerais do direito universalmente reconhecidos, embora correta
do ponto de vista procedimental, não se conforma ao devido processo legal
substantivo.
Prisões provisórias que se projetam no tempo, denúncias baseadas apenas em
delações de corréus, vazamentos seletivos de dados processuais, exposição de
acusados ao escárnio popular, condenações a penas extravagantes, conduções
coercitivas, buscas e apreensões ou detenções espalhafatosas indubitavelmente
ofendem o devido processo legal em sua dimensão substantiva, configurando,
ademais, inegável retrocesso civilizatório.
RICARDO LEWANDOWSKI é professor titular de teoria do Estado da Faculdade de
Direito da USP e ministro do Supremo Tribunal Federal


In
BRASIL247
https://www.brasil247.com/pt/247/brasilia247/319451/Lewandowski-protesta-contra-estado-de-exceção.htm
27/9/2017

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