terça-feira, 19 de setembro de 2017

Retratos dos trabalhadores da laranja em Duartina (SP) e a dura realidade de quem sobrevive no campo




A difícil rotina dos assalariados rurais que trabalham na colheita da laranja em
Duartina (SP) pode ser percebida no rosto marcado pelo sol, nas mãos grossas da
labuta diária e nas dores físicas crônicas de quem precisa colher o máximo de
sacas possível para conseguir ganhar o mínimo.

O salário que gira em torno de R$ 1 mil, às vezes nem isso, é conquistado em
condições precárias, com pouco tempo para alimentação, não acesso à higiene
pessoal, transporte caindo aos pedaços, em jornadas que chegam a 8 horas – 12
horas por dia.  O perfil de quem trabalha na colheita da laranja em Duartina é
em grande parte de analfabetos ou semi-analfabetos, moradores da cidade, de
regiões vizinhas e migrantes vindos da região Norte- Nordeste.

Diante da baixa escolaridade se submetem às piores condições de trabalho e temem
o desemprego. Esses trabalhadores, que tentam se agarrar ao mínimo de direitos
que as empresas ainda garantem, pouco ou nada sabem sobre a Reforma Trabalhista,
e a única certeza que têm é de que a situação, que já não é boa, vai piorar.

Há 16 anos colhendo laranja, Cícera Maria Cândida Rodrigues, 53 anos, mãe de
três filhos e avó de três netos, retira na colheita da laranja, junto com o
marido, o sustento da família. Enfrenta uma jornada das 7h às 16h, podendo se
estender para 17h, dependendo do quão longe estão do local onde avançaram na
colheita. Ela consegue colher uma média de 100 caixas de laranja por dia de
trabalho.

O transporte é feito em ônibus sem estrutura mínima de conforto e segurança.
Quando os trabalhadores são questionados sobre as condições desse transporte, a
resposta vem com a praticidade de quem só quer ir e voltar e não ser deixado no
meio do caminho. É comum o ônibus quebrar e muitos terem que enfrentar a penúria
de ficar na estrada a espera de conserto, que pode demorar até duas horas.
Poucos falam da falta de conforto ou de estruturas básicas como cinto de
segurança, apenas exaltam que os “motores estão bons” e os levam sem maiores
transtornos.

“Ônibus bom mesmo, não tem não, às vezes quebra no caminho, e dependendo do
horário a gente espera consertar e ainda vamos para o serviço”, explica.

A saúde desses trabalhadores é outro elemento que preocupa, mas acaba ficando em
segundo plano, porque comer vem na frente.  O kit de sobrevivência é composto
pela marmita de isopor, que mantém a comida quente por mais tempo, e a garrafa
de água.

Os equipamentos de segurança obrigatórios, como bonés, roupas mais grossas para
se proteger do sol, luvas, caneleira, óculos e botinas são o mínimo de proteção
para quem convive com o agrotóxico usado nas lavouras, o sol e horas de trabalho
braçal.  Mas nem todos usam tudo. Protetor solar é item de luxo e não fornecido
pela empresa, soro (mais eficaz para hidratação) também só é fornecido por
empresas maiores.

“Sobre equipamento de proteção, nem todo mundo usa óculos. Protetor solar, só em
uma firma que eu trabalhei que davam, as outras não costumam dar não. Se a gente
quiser, tem que comprar”, conta Cícera.

“Veneno eles passam ali no nosso lado, a gente está em uma quadra e eles passam
o veneno na outra, se passar veneno à noite, quando serena, respiga tudo na
gente, porque junta o veneno e o sereno. A gente tem medo do veneno, mas fazer o
quê?”, questiona.

A trabalhadora reclama de dores nas pernas de ficar subindo e descendo escada.
“Dependendo da fazenda, você é obrigado a colher quatro ruas [quadras de plantio
da laranja] e em cima de escadas, em pomares maiores, e às vezes as ruas são
subidas, é trabalhoso. Tem muita mulher que reclama do peso, diz que dá problema
no ovário, de ficar carregando muito peso, eu não sei, é o que dizem”, comenta.

“É bem raro as pessoas que descansam mais de uma hora. Eu mesma acabo de comer,
uns 15 minutos depois e já volto pro trabalho”, conta a trabalhadora.

Quando está chovendo não é permitido o trabalho, mas Cícera conta que não é bem
assim na prática. “Se tiver chovendo muito, a gente não entra, mas se tiver
chuvisqueiro a gente entra, e sai de lá ‘tomado’ banho”, revela.

O acesso ao banheiro é dificultado. Conforme os trabalhadores vão avançando na
colheita e as quadras vão sendo deixadas para trás, o banheiro químico, que
deveria ser mudado de lugar junto a essa movimentação, em grande parte dos casos
não muda. O que acontece é que o trabalhador tem de andar cerca de 1 km ou até
mais para ter acesso a ele. Com isso, acabam fazendo suas necessidades ali, no
mato mesmo, homens e mulheres sem acesso ao mínimo.

Natalício Rodrigues, marido de Cícera, conta também que só sabe fazer isso da
vida. Já cortou cana e depois da falência de duas empresas foi para a colheita
da laranja, trabalho que enfrenta até hoje.
Também reclama das metas estabelecidas na lavoura e que pela idade, 58 anos,
estão cada vez mais difíceis de serem alcançadas. “Eu tenho 58 anos e já não
faço o que uma pessoa nova faz. Eles pedem a média de 100 caixas, eu consigo
tirar até 60 – 80 caixas, e aí a gente é criticado ou ameaçado de ser mandado
embora, porque a média deles é alta”, diz.

Sobre o veneno na lavoura, ele também diz que a forma como é a manipulação não é
a correta. “Só uma empresa que eu conheço que passa o veneno de avião e no dia
não deixa as pessoas trabalharem. As outras não”, conta.  Natalício acredita que
é o veneno que provoca um efeito misterioso em seus olhos na alta safra. “Quando
começa a safra da laranja a gente vai ao banheiro e parece que tem pus no canto
dos olhos, quando acaba safra some e eu acho que é o veneno”.

Até a morte de um companheiro de trabalho ele já presenciou. “O rapaz estava
armando um bag [saco de laranja], eram umas 11h, deu num negócio nele, quando
vimos estava morto, foram buscar o corpo às 18h, sete horas depois. Eu achei uma
falta de respeito, porque o cara morto ali e todo mundo trabalhando, como se
nada tivesse acontecido”, lembra indignado.

Governo que retira do pobre para encher os bolsos de dinheiro dos ricos
Para mudar esse quadro, diante de um governo que está até o pescoço envolvido em
escândalos de corrupção, Natalício é incisivo. “Enquanto nós estamos sofrendo,
lá eles estão enchendo caixas, malas, cuecas de dinheiro. O povo tinha que se
reunir e ir para cima, está faltando a união do pobre”, avalia.

Sua companheira Cícera também fala com descrença dos atuais políticos. “É uma
pouca vergonha, né, para gente eles querem tirar e para eles aumentar”,
indigna-se. “O povo tinha que barrar isso aí. Cada vez está ficando mais difícil
para nós, do que jeito que estão fazendo não vamos conseguir nem comer daqui uns
tempos”, completa. “O certo é tirar esse Temer”, arremata.

Intimidação
O medo de represália é ainda muito presente nas lavouras da laranja. Por isso,
muitos preferem silenciar diante de situações absurdas. Como uma mulher, que
acometida por um mioma, diante de dores fortíssimas e praticamente com uma
hemorragia permanente, ainda insistia em trabalhar, “porque não tinha outro
jeito”. Seu salário era complemento de renda para o companheiro que se aposentou
colhendo laranja.

Não quis se identificar por medo, mas relatou que após uma melhora no quadro
preferiu continuar trabalhando, mesmo sabendo dos riscos e tendo que enfrentar
as péssimas condições de higiene no local de trabalho.

O marido, indignado, temia pela saúde da companheira, e a incentivava a
denunciar. Assim como ela, outra colega de trabalho teve que pedir afastamento
por um quadro gravíssimo de depressão. E assim como outros que saíram acometidos
pelo câncer.

No pomar a dura realidade
Em uma visita a uma plantação ali da região, na Fazenda Santa Elisa, que é
fornecedora de laranja para a Cutrale, os dirigentes do Sindicato dos
Trabalhadores da Laranja de Duartina puderam confirmar o que muitos
trabalhadores não disseram por medo ou falaram com vontade de mudança.

Uma camada espessa e branca cobria as folhagens sinalizando que o veneno havia
passado por ali.



Foram observadas diversas irregularidades, como trabalhadores trabalhando sem
luvas, não cumprimento do mínimo de pausa para o almoço de uma hora, além de o
banheiro químico estar distante dos trabalhadores.

Muitos, segundo Abel Barreto, já são acometidos pela quase inexistência de suas
digitais, porque o ácido do suco da casca da laranja provoca uma lesão que só é
revertida após meses de não contato com a fruta.

As falas monossilábicas dos trabalhadores que trabalham no local indicavam que
não podiam perder tempo e que o patrão estava à espreita. Assim como
economizavam nas palavras, economizam nas poucas horas para o descanso, para o
almoço, para aumentar nas sacas colhidas.



Uma ilusão, segundo Abel, que tentava explicar que quanto mais o trabalhador
trabalha, mais lucro garante para o patrão e mais é explorado. “No final das
contas, nada mais sobra para ele, só doença ou a morte mais rápida”, disse.

Trabalho de Base
A cidade de Duartina já foi conhecida pelas plantações de café, bicho da seda,
cana de açúcar e agora o que se vê nas estradas que cortam a cidade são as
plantações de laranja. O cheiro da fruta na cidade de 15 mil habitantes impera e
é o que movimenta a economia não só de Duartina, mas também em cidades vizinhas.

O Sindicato dos Trabalhadores de Duartina, que organiza 5 mil trabalhadores, e
recentemente filiou-se à CSP-Conlutas, é um dos poucos que atua de forma
combativa para alertar essa categoria sobre seus direitos.

Muitos sindicatos, no entanto, ligados à patronal, acabam subvertendo essa
ordem. Ao invés de mobilizar, caem na burocratização, com acordos rebaixados e
que só pioram a realidade já calamitosa de quem colhe laranja para viver.

A descrença dos trabalhadores nas instâncias sindicais é uma realidade que o
Sindicato de Duartina vem tentando mudar, fazendo trabalho de base e alertando
os trabalhadores sobre seus direitos.

A intimidação dos patrões e o medo de perder o emprego são outros elementos que
fazem os trabalhadores por vezes se afastarem. É o que avalia o presidente do
Sindicato, que busca no trabalho de base, dia a dia, no corpo a corpo encorajar
essa categoria a lutar por seus direitos.

“O corpo a corpo é um trabalho bem árduo, mas que tem ser permanente se a gente
quiser levar para o trabalhador consciência e a clareza da importância deles e
de que são eles que constroem a riqueza desse Brasil. Só assim podemos mudar
essa realidade e a escravidão que esse trabalhador vive”, salienta Abel.

A reportagem da CSP-Conlutas acompanhou o dirigente em uma panfletagem para a
divulgação de um curso sobre saúde do trabalhador. O ponto de parada dos ônibus
empoeirados da viagem dos pomares de laranja até a casa dos trabalhadores foi o
local escolhido pelo sindicalista.



Quem busca e leva esses trabalhadores são os chamados “gatos”, ou seja, paus
mandados dos patrões que, ao avistarem Abel no ponto de chegada, paravam mais
adiante o veículo ou passavam direto.

Quando conseguia abordar um ou outro trabalhador, Abel explicava sobre o curso,
a importância da saúde do trabalhador, enquanto em passos apressados muitos só
queriam mesmo encontrar o caminho de casa.

O dirigente retornou no dia seguinte, ainda de madrugada, às 4h30, nesse mesmo
ponto de chegada dos ônibus.  Muitos recebiam o convite com interesse e soltavam
a sua indignação com o atual governo quando era abordados: “é um abaixo-assinado
para tirar o Temer? Se for, assino, já”.

Alguns aproveitam a conversa para tirar dúvidas sobre os seus direitos.
Perguntas como “a gente é obrigado a trabalhar na chuva? Porque lá onde eu
trabalho, teve gente que trabalhou” eram corriqueiras. O dirigente respondia que
aquilo era ilegal e que era preciso que os trabalhadores denunciassem para o
Sindicato para que as providências pudessem ser tomadas.

O agronegócio e governo estão moendo pessoas



O mercado da laranja representa 70% de todo o agronegócio. Fatura milhões às
custas da exploração dos trabalhadores. Um verdadeiro cartel existe no mercado
em que três empresas atuam e subcontratam outras. São elas a Cutrale, Citrosuco
e Louis Dreyfus.

Segundo o dirigente da Feraesp (Federação dos Assalariados Rurais de São Paulo)
Aparecido Bispo, o Cido, o mercado da laranja está carteirizado, pois as
empresas não são concorrentes uma da outra, mas na realidade são parceiras que
criaram uma associação denominada CitrosBR, em que negociam para vender no
mercado internacional. “O Brasil hoje é um cartel da indústria de laranja que
explora o mercado de venda, explora os produtores de terra e os trabalhadores
assalariados e determina a regra do valor da caixa, do produto. No Brasil é
proibido, tem uma CPI que está rolando contra esse absurdo”.

Para Cido, outro drama que logo vai acometer o trabalhador será a mecanização,
que, segundo ele, daqui uns cinco anos será uma realidade, gerando desemprego e
mais exploração.

Sobre as mudanças nas leis trabalhistas, o dirigente só apontou mais
precarização para o trabalhador da laranja. “A safra dura de seis a oito meses,
então o trabalhador entra, faz a safra, é demitido, dá entrada com o seguro
desemprego que dura de três a quatro meses; nesse período ele se utiliza do
seguro até a alta da safra. Com essa nova lei, o patrão não vai querer demitir,
porque ele pode simplesmente mandar o trabalhador para casa e só chamar quando
precisar, então é vantagem para o patrão”, argumenta.

O dirigente culpa todos os governos sobre a atual situação dos trabalhadores do
campo. “Todos os governos foram parceiros dos latifundiários, do agronegócio e
não dos trabalhadores. Basta a gente ver a bancada ruralista e a força que tem.
Eu lembro quando o Lula foi presidente, ele chamou os usineiros de heróis,
infelizmente, podemos ver o resultado disso hoje, trabalhadores desempregados ou
trabalhando em condições precárias e os usineiros estão aí, muito bem,
obrigada”.

Não houve nenhuma política em prol dos trabalhadores, sobretudo quando se fala
em reforma agrária. “O que se tem é uma luta social de trabalhadores rurais, que
na falta de expectativa acabam se mobilizando nas ocupações de terra, e o
governo para tentar segurar a pressão acaba cedendo para aquele grupo, em uma
fazenda ou outra, mas no Brasil não tem uma política para atender os
trabalhadores rurais, porque os trabalhadores rurais trabalham com a terra,
então o governo deveria ter uma política para eles”, avalia.

Unidade campo e cidade
O trabalhador rural é dividido em pequeno produtor, assalariado rural e da
agricultura familiar. Pensando na unidade desses trabalhadores a luta pela
reforma agrária é central dentro do setorial do campo.  Além disso, a unidade e
fortalecimento dos trabalhadores do campo e da cidade é um desafio constante.

Como relacionar as pautas específicas, com as mais gerais, é o fio que conduz o
trabalho. “A luta precisa ser integrada entre o pessoal da roça e da cidade
porque os dois estão perdendo emprego e diretos, ambos estão ficando sem
moradia, sem terra. Nós temos que entender que nós fazemos tudo. A laranja nós
que plantamos, nós que colhemos, nós que moemos e enviamos para fora do Brasil.
O trabalhador é quem engarrafa isso, coloca nas lojas e vende, então estamos em
todo o processo de produção”, explica Abel. “Só defendendo o salário não damos
resposta. Temos que fazer um trabalho integrado”, disse.

Abel complementa dando o exemplo de como essa exploração é feita. “O sistema
corrupto rouba a gente de todas as formas. Um trabalhador ganha R$ 0,50 centavos
para colher uma caixa com 150 laranjas, vai tomar um suco que custa R$ 5 reais,
em que são utilizadas quatro laranjas, isso é mais do que um roubo, só que é
legalizado, é uma exploração vergonhosa que sofremos. É preciso se indignar. Só
tem um jeito que é nos unir e mudar, porque o dia em que nós falarmos basta e
não aceitarmos mais, acaba essa farra. Eu acredito na reação”, concluiu.
In
CSP CONLUTAS

http://cspconlutas.org.br/2017/09/retratos-dos-trabalhadores-da-laranja-em-duartina-sp-e-a-dura-realidade-de-quem-sobrevive-no-campo/
19/9/2017

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