segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Brasil: existe ameaça fascista?

     

 Anita Leocadia Prestes  

A experiência histórica mundial revela que as classes dominantes têm sempre
preocupação com a possibilidade de uma insurgência popular e tratam de adoptar
medidas preventivas para salvar o regime capitalista, mesmo quando não existe a
ameaça iminente da revolução. O fascismo é uma arma à qual os sectores mais
reacionários do capital financeiro recorrem para assegurar os seus interesses. O
panorama europeu actual é revelador nesse sentido.


Diante do fenômeno “Bolsonaro” que se explicitou com as eleições deste ano,
parte das “esquerdas” se depara com a seguinte questão: podemos afirmar que
existe uma ameaça fascista em nosso país? Seria correto identificar esse
fenômeno com o fascismo?
Enquanto alguns empregam o termo fascismo como sinônimo de autoritarismo,
identificando qualquer forma de regime autoritário com essa designação, outros a
associam exclusivamente a regimes que se estabeleceram na Europa, durante os
anos de 1920/1930, em especial os que contaram com as lideranças de Hitler na
Alemanha e Mussolini na Itália.
Entre os últimos é comum recorrer à definição, proposta, em 1935, por Jorge
Dimitrov, conhecido dirigente da Internacional Comunista, para afirmar que o
avanço atual da direita no Brasil não deve ser associado ao fascismo. Segundo
Dimitrov, o fascismo no poder se caracteriza por ser “a ditadura terrorista
aberta dos elementos mais reacionários, mais chovinistas e mais imperialistas do
capital financeiro” (1). Os críticos da adoção dessa definição para a situação
que vem se configurando atualmente em nosso país não só questionam sua aplicação
à nossa realidade, como, para justificar sua rejeição, recorrem a outros traços
do fascismo europeu dos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial - a
existência de partidos de massa, o expansionismo militar, o racismo declarado,
etc. -, os quais não estariam presentes no Brasil.
Cabe lembrar que Jorge Dimitrov escrevera também que é tarefa do fascismo
“assegurar no sentido político o êxito da ofensiva do capital, da exploração e
do saque das massas populares pela minoria capitalista e garantir a unidade da
dominação dessa minoria sobre a maioria popular” (2) . Para o dirigente
comunista, o recurso ao fascismo se explica pela necessidade do capitalismo
assegurar sua sobrevivência e sua continuidade em momentos de crise – algo que,
tudo indica, está acontecendo no Brasil de hoje.
Ao buscar explicação para os regimes autoritários que se estabeleceram na
América Latina durante os anos 1960/1970, o dirigente comunista de El Salvador,
Schafik Handal, deu valiosa contribuição ao lembrar que “o fascismo acima de
tudo é uma contrarrevolução”, afirmação que tanto pode ser entendida no sentido
de salvar o capitalismo dos efeitos da Revolução Cubana, como afirma esse
dirigente referindo-se ao período citado (3), quanto no sentido de salvar o
capitalismo da grave crise que atravessamos agora no Brasil e em nosso
continente e, em particular, do perigo potencial constituído pela possibilidade
de revolta das massas frente às sérias consequências dessa crise, e das
políticas adotadas pelos governos burgueses, para suas vidas e seu futuro.
Shafik Handal destacava o papel modernizador do fascismo na América Latina, em
comparação com a função dos “regimes tradicionais”, “conservadora, visando
favorecer as oligarquias latifundiárias e burguesas”, acrescentando:
a função do fascismo é salvar o capitalismo dependente frente à revolução e
modernizá-lo, favorecendo os consórcios transnacionais e os burgueses locais
seus associados, salvar e consolidar a hegemonia política e militar do
imperialismo ianque, ameaçada de colapso em nossa região. (4)
Pode-se argumentar que hoje não existe no Brasil a ameaça de uma revolução.
Entretanto, a experiência histórica mundial revela que as classes dominantes têm
sempre preocupação com a possibilidade de uma insurgência popular e tratam de
adotar medidas preventivas para salvar o regime capitalista. O fascismo é uma
arma à qual os setores mais reacionários do capital financeiro recorrem para
assegurar seus interesses. O panorama europeu atual é revelador nesse sentido.
Não seria atitude coerente com uma análise marxista encaixar dogmaticamente a
situação de hoje em esquemas elaborados para a Europa de oitenta anos atrás.
Trata-se de captar a essência do fenômeno fascista para alcançar sucesso em
possíveis analogias, que contribuam para o esclarecimento do momento atual.
Uma eventual vitória eleitoral de Jair Bolsonaro significaria a opção pelo
fascismo de setores da extrema direita do capital financeiro internacionalizado
na busca de uma saída anti-povo para a grave crise que afeta o Brasil nos
últimos anos. Certamente, não é por acaso que o economista Paulo Guedes, seu
principal assessor e provável ministro da Fazenda do seu governo, é um dos
fundadores do Instituto Millenium (Imil), entidade que sabidamente defende e
difunde os valores e os interesses do grande capital. (5)
Se o grande capital optou na Alemanha, em 1933, pela entrega do poder a Hitler,
o grande capital internacionalizado pode hoje, no Brasil, sem outra opção,
entregar o poder a Bolsonaro, da mesma forma que o fez com Hitler, através de
processos eleitorais, reveladores da grande insatisfação de numerosos setores
sociais. Num país como o Brasil, onde inexiste tradição partidária, isso pode
acontecer sem partido fascista, sem uniformes fascistas e sem a mística fascista
dos anos 1930, sem expansionismo militar declarado e sem racismo explicito. As
formas são outras, mais elaboradas, com a utilização em larga escala dos meios
fornecidos pela informática, mantendo sempre o discurso anticomunista e
propagando a violência contra todos que se opõem aos seus objetivos, inclusive
por meio da ação de hordas fascistas. Vale lembrar como exemplo desse emprego
“moderno” da informática a colaboração com a campanha de Bolsonaro de Steve
Bannon, estrategista de Donald Trump e especialista em desinformação. (6)
Se a eleição de Bolsonaro representa uma ameaça fascista, o que pode ser feito
para impedi-la?
É necessário ter presente que a atual campanha eleitoral adquiriu
características especiais: não estamos diante de uma campanha “normal”; ela
acontece no bojo de grave crise econômica, social e política, marcada pela
presença de um altíssimo índice de desemprego, de crescente deterioração das
condições de vida de milhões de brasileiros, de acentuada insatisfação popular
com a chamada “classe política” tanto pela sua inoperância quanto pelas
denúncias de corrupção – expediente utilizado pela direita contra o PT, mas que
contribuiu para o desgaste da maior parte dos partidos e dos políticos.
Frente a tal situação, existe o risco de as forças de esquerda voltarem a
incorrer nos erros “ultraesquerdistas” condenados por Lenin em seu tempo, apesar
de suas intenções, devido ao dogmatismo livresco que, em vez de acelerar o
processo revolucionário, contribui para seu retrocesso. Como escreve Atílio
Boron, cientista político marxista e comunista,
(…) a derrota de Bolsonaro é um imperativo categórico para as forças genuína e
realisticamente empenhadas na construção de uma alternativa anticapistalista.
Uma vez consumada, as forças de esquerda deverão aprofundar seus esforços para,
afinal, construir uma maioria política e social - coisa que atualmente está
muito atrasada – que impulsione a necessária radicalização de um eventual
governo do PT e seus aliados. Sei que toda esta argumentação pode soar como
inaceitável, ou o “menos pior”, para alguns setores do trotskismo, do anarquismo
pós-moderno e do autonomismo da antipolítica. Mas, como dizia Gramsci, só a
verdade é revolucionária, e na hora da eleição essa verdade se imporá com a
inexorabilidade da lei da gravidade para impulsionar as forças populares do
Brasil a impedir o triunfo de um fascista. Salvo, está claro, se os companheiros
do gigante sul-americano me convencerem de que estão em condições de conquistar
o poder de Estado e impor o socialismo pela via insurrecional, deixando de lado
as manobras e maquinações da democracia burguesa. Seria uma grande notícia, mas
falando com a franqueza que deve caracterizar o diálogo entre revolucionários,
creio que essa alternativa é, no momento, absolutamente ilusória e fantasiosa.
E, além disso, paralisante e suicida. (7)
No momento atual, caracterizado pela inexistência no país de um movimento
popular organizado – consequência em grande medida das políticas adotadas pelos
governos do PT -, diante da ameaça fascista, a única alternativa possível para
as esquerdas é o voto em Fernando Haddad, no esforço conjunto com outras forças
sociais e políticas para derrotar a candidatura fascista de Jair Bolsonaro.
Neste momento, trata-se do embate entre fascismo e democracia burguesa, cuja
defesa era assumida por V. I. Lenin com a argumentação de que tal democracia,
apesar das grandes limitações que impõe aos trabalhadores, apesar de ser uma
garantia para os interesses burgueses, sempre é melhor para o avanço da
organização popular que os regimes autoritários e, certamente, que o fascismo –
último recurso do capital, quando a democracia burguesa deixa de ser uma
garantia para seus lucros. V. I. Lenin escrevia em 1919:
(…) A democracia burguesa representa historicamente um avanço enorme em relação
ao czarismo, à autocracia, à monarquia e a todas as sobrevivências do
feudalismo. Certamente, devemos utilizá-la e então vamos levantar a questão de
maneira que, enquanto não se colocar na ordem do dia a luta da classe operária
por todo o poder, a utilização de formas de democracia burguesa é obrigatória
para nós. (8)
Seria um erro fatal, para as esquerdas e as forças populares, embarcar na
concepção do “quanto pior, melhor”, tendo como consequência um gravíssimo
retrocesso de todo o movimento popular no Brasil e na América Latina.

Rio de Janeiro, outubro de 2018
Notas
 (1) Jorge Dimitrov, “La ofensiva del fascismo y las tareas de la Internacional
Comunista en la lucha por la unidad de la classe obrera, contra el fascismo”, em
Jorge Dimitrov, El frente único y popular (Sofia [Bulgária], Sofia-Press, 1969),
p. 117. (Tradução do espanhol desta autora)
 (2) Jorge Dimitrov, “El frente único y la reaccion burguesa”, em El frente
único y popular, cit., p. 11. (Tradução do espanhol desta autora).
 (3) Shafik Handal, “El fascismo en América Latina”, em América Latina (Moscou,
Progreso, 1976), n. 4, p. 121-46; tradução desta autora.
 (4) Idem; grifos do autor.
 (5) Ver, por exemplo,
https://www.infomoney.com.br/mercados/politica/noticia/7109305/quem-e-paulo-guedes-o-ministro-da-fazenda-se-bolsonaro-for-presidente,s
consulta realizada em 9 out. 2018.
 (6) Ver, por exemplo, https://www.youtube.com/watch?v=B8u64kzj4FQ, consulta
realizada em 9 out. 2018.
 (7) Atílio A. Boron, “¿TIENE CURA EL “IZQUIERDISMO”?”, em
http://www.atilioboron.com.ar/2018/09/tiene-cura-el-izquierdismo.html ,
consultado em 12 out. 2018..; tradução da autora.
 (8) V. I. Lenin, “Informe no II Congresso dos Sindicatos de toda a Rússia”
(1919), em Obras Completas (em russo), t. 37 (Moscou, Ed. de Literatura
Politica, 1974), p. 438; tradução da autora.


In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/brasil-existe-ameaca-fascista/
15/10/2018

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