quarta-feira, 3 de outubro de 2018

ONU : nascimento do mundo post-ocidental


Thierry Meyssan

A Administração da ONU esperava por um choque entre os pró e os anti-Trump
durante a Assembleia Geral. O que aconteceu foi completamente diferente.
Enquanto vários Estados, entre os quais a França, denunciavam os métodos do
hóspede da Casa Branca, a Rússia dedicou-se a uma análise da aliança ocidental.
Segundo Moscovo, a grande maioria dos problemas actuais é devida a uma vontade
das antigas potências coloniais em conservar, custe o que custar, o seu domínio
sobre o resto do mundo. Para os ultrapassar uma formidável coligação viu a luz
do dia.

  A audiência da 73ª sessão da Assembleia Geral da ONU.
Apesar das aparências, o desfile de chefes de Estado e de governo ou de
ministros dos Negócios Estrangeiros (Relações Exteriores-br) pela Assembleia
Geral das Nações Unidas não é inútil. Claro, não tendo a maior parte de entre
eles nada a dizer acabam a falar para a sua opinião pública interna, fustigando
a incúria da ONU e apelando portanto ao respeito pelo Direito. No entanto,
várias outras intervenções vão ao fundo do debate : como resolver os litígios
entre Estados e garantir a paz ?
Os três primeiros dias foram marcados pelo discurso de Donald Trump (Estados
Unidos) e as respostas de Emmanuel Macron (França) e de Hassan Rohani (Irão).
Mas, ao quarto dia toda esta problemática voou em estilhaços durante a
intervenção de Serguei Lavrov, (Rússia) o qual apresentou o mapa do mundo
post-ocidental.
A viragem do mundo segundo Donald Trump
O Presidente Trump, cujos discursos são habitualmente extremamente improvisados,
preparara desta vez um texto muito estruturado [1]. Distinguindo-se dos seus
predecessores, ele afirmou privilegiar «a independência e a cooperação», mais do
que «a governança, o contrôlo e a dominação internacionais» (por outras
palavras: os seus interesses nacionais mais do que os do «Império americano»).
Prosseguiu assim enumerando os reajustamentos do sistema aos quais procedeu.
 Os Estados Unidos não declararam guerra comercial à China, mas estão em vias de
recuperar a sua balança de pagamentos. Simultaneamente, tentam restaurar um
mercado internacional baseado na livre concorrência, tal como o prova a sua
posição em matéria energética. Eles tornaram-se grandes exportadores de
hidrocarbonetos e teriam, portanto, interesse em preços elevados, mas contestam
a existência de um cartel intergovernamental, a OPEP, e defendem preços mais
baixos.
 Eles opõem-se às estruturas e tratados da globalização (quer dizer, do ponto de
vista da Casa Branca, o imperialismo financeiro transnacional), nomeadamente o
Conselho de Direitos do Homem, o Tribunal Penal Internacional e o UNRWA. Não se
trata, obviamente, de advogar a tortura (que foi legitimada à época por George
Bush Jr.) ou o crime, nem de matar à fome aos Palestinos, mas de quebrar as
organizações que instrumentalizam os seus interesses para alcançar outros fins.
 Em relação às migrações da América Latina para os Estados Unidos, e dentro do
próprio continente sul-americano, eles pretendem por-lhe fim cortando o mal pela
raiz. Para a Casa Branca, o problema resulta das regras impostas pelos Tratados
da globalização, nomeadamente o Alena. O Presidente Trump negociou assim um novo
acordo com o México que vincula as exportações ao respeito pelos direitos
sociais dos trabalhadores mexicanos. Ele entende voltar à Doutrina Monroe
original: as multinacionais não mais poderão interferir na governança do
continente.
A referência à Doutrina Monroe merece uma explicação, tanto mais que esta
expressão sugere o colonialismo norte-americano do início do século XX. Donald
Trump é um admirador da política externa de duas personalidades muito
controversas, os Presidentes Andew Jackson (1829-1837) e Richard Nixon
(1969-1974). A Doutrina Monroe (1823) foi elaborada durante a intervenção
daquele que à época era apenas o General Jackson, na colónia espanhola da
Florida. Na altura, James Monroe desejava proteger o continente americano do
imperialismo europeu. Foi a «era dos belos sentimentos». Ele comprometeu-se pois
a que os Estados Unidos não interviriam na Europa se os Europeus cessassem de
intervir nas Américas. Apenas três quartos de século mais tarde é que,
nomeadamente com Theodore Roosevelt (1901-1909), a Doutrina Monroe serviu de
cortina ao imperialismo dos Estados Unidos na América Latina.
A defesa do antigo mundo por Emmanuel Macron e Hassan Rohani
Numa estranha inversão de papéis, o Presidente francês, Emmanuel Macron,
apresentou-se como o “Barack Obama” europeu face ao “Charles De Gaulle”
norte-americano, que é Donald Trump. Simbolicamente, ele declarou-lhe guerra
afirmando assim: «Não assinemos mais acordos comerciais com as potências que não
respeitam o Acordo de Paris» (portanto, não mais com os Estados Unidos); uma
maneira muito estranha de defender o multilateralismo!
O Presidente francês começou com a constatação implícita de Donald Trump: a
crise da «ordem liberal westphaliana» actual [2]. Ou seja, a crise dos
Estados-nações, pressionados pela globalização económica. Mas para melhor
contestar a solução da Casa Branca, que ele qualificou de «a lei do mais forte».
Promoveu, portanto, a solução francesa «em torno de três princípios: o primeiro,
é o respeito pelas soberanias, o próprio fundamento da nossa carta; o segundo, é
o reforço das nossas cooperações regionais; e o terceiro sendo a defesa de
garantias internacionais mais robustas».
Depois, o seu discurso deu um giro para terminar com uma exaltação lírica.
Emmanuel Macron dedicou-se a um exercício de hipocrisia juvenil, no limite da
esquizofrenia.
 Como exemplo do «respeito das soberanias», ele apelou a que não «se
substituíssem ao povo sírio» quanto a decidir sobre quem deve ser seu
dirigente... ao mesmo tempo que interditava ao Presidente Assad apresentar-se a
sufrágio dos seus concidadãos.
 A propósito do «reforço das cooperações regionais», citou o apoio da União
Africana à operação antiterrorista francesa no Sahel. Mas esta não é senão, na
realidade, mais do que a parte terrestre de um plano mais amplo, dirigido pelo
AfriCom, e do qual o exército dos EUA assegura a componente aérea. A União
Africana, em si mesma, não tem exército propriamente dito, ela intervém
unicamente para legalizar uma operação colonial. Da mesma forma, as somas
investidas para o desenvolvimento do Sahel, que o Presidente francês citou não
em euros mas em dólares, misturam verdadeiros projectos africanos com uma ajuda
estrangeira ao desenvolvimento da qual toda a gente pode constatar a ineficácia.
 Em relação ao «aporte de garantias internacionais mais robustas», ele anunciou
o trabalho de luta contra as desigualdades à qual se consagraria a cimeira do G7
de Biarritz. Na realidade, tratava-se, para ele, de afirmar um pouco mais a
liderança ocidental sobre o resto do mundo, Rússia e China incluídas. Assim,
assegurou que «os dias em que um clube de países ricos podia definir sozinho os
equilíbrios do mundo acabou há muito tempo», e empenhou-se em ... apresentar um
registo das decisões tomadas pelos Grandes ocidentais perante a próxima
Assembleia Geral. Ou, ainda, proclamou ele, o «G7 deverá ser o motor» da luta
contra as desigualdades empreendida pela ONU.
Intervindo por sua vez, o Presidente iraniano, Xeque Hassan Rohani, descreveu em
detalhe a maneira como a Casa Branca destruiu, um a um, os princípios do Direito
Internacional [3].
Ele lembrou que o acordo dos 5 + 1 (JCPoA) tinha sido validado pelo Conselho de
Segurança, que havia apelado a numerosas instituições para o apoiar (resolução
2231). Depois que os Estados Unidos de Donald Trump se retiraram dele,
contradizendo a assinatura do seu antecessor e o princípio de continuidade do
Estado. Ele sublinhou que, conforme o atestam 12 relatórios consecutivos da
AIEA, o Irão tinha cumprido e continua a respeitar as suas obrigações. Ele
indignou-se com o apelo do Presidente Trump ao desrespeito da resolução onusina
e a ameaça que ele dirigiu aqueles que a respeitam.
Ele terminou recordando alguns factos: o Irão combateu Saddam Hussein, os
Talibãs e o Daesh (E.I.) antes dos Estados Unidos (que os apoiavam então); uma
maneira, como qualquer outra, de sublinhar que desde há muito tempo as
reviravoltas dos Estados Unidos não respondem à lógica do Direito, mas, antes à
dos seus interesses ocultos.
Serguei Lavrov apresenta o mundo post-ocidental
Este debate, não a favor ou contra os Estados Unidos, mas a favor ou contra
Donald Trump, ordenava-se em torno de dois argumentos principais :
• A Casa Branca destruiu o sistema que tão bem aproveitou às elites financeiras
internacionais (Macron).
• A Casa Branca não mais finge sequer respeitar o Direito Internacional
(Rohani).
Para o Ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov, este debate
mascara um problema muito mais profundo. «Por um lado, vemos o fortalecimento de
princípios policêntricos da ordem mundial, (...) a aspiração dos povos em
preservar a soberania e modelos de desenvolvimento compatíveis com as suas
identidades nacionais, culturais e religiosas. Por outro lado, vemos o desejo de
vários Estados ocidentais em conservar o seu estatuto de auto-proclamados
«líderes mundiais» e de abrandar o processo objectivo irreversível de
estabelecimento da multipolaridade», sentenciou ele. [4].
A partir daí, já não se tratava para Moscovo de atacar o Presidente Trump, nem
mesmo os Estados Unidos, mas os Ocidentais em geral. Serguei Lavrov chegou ao
ponto de traçar um paralelo com os Acordos de Munique (1938). À época, a França
e o Reino Unido fizeram aliança com a Alemanha e a Itália. Claro, este
acontecimento é actualmente considerado na Europa Ocidental como uma covardia
franco-britânica face às exigências dos nazistas, mas ele ficou gravado na
memória russa como o passo decisivo que desencadeou a Segunda Guerra Mundial.
Enquanto os historiadores da Europa ocidental buscam estabelecer quem tomou essa
decisão e quem lhe deu seguimento, os historiadores russos vêem apenas uma
coisa: nenhum dos Europeus Ocidentais assumiu as suas responsabilidades.
Estendendo a sua crítica, Lavrov denunciou já não mais os atentados ao Direito,
mas às estruturas internacionais. Ele observou que os Ocidentais entendem forçar
os povos a entrar contra a sua vontade em alianças militares e ameaçam certos
Estados que reivindicam escolher, eles próprios, os seus parceiros. Fazendo
alusão ao caso Jeffrey Feltman. [5], ele denunciou as tentativas para controlar
a administração da ONU, fazê-la jogar o papel reservado aos Estados-membros e,
em última análise, utilizar o secretariado-geral para os manipular.
Ele observou o carácter desesperado destas tentativas, salientando, por exemplo,
a ineficácia de cinquenta anos de bloqueio norte-americano a Cuba. Ele
estigmatizou a vontade britânica de julgar, e condenar, sem processo, usando
apenas a sua retórica do «altamente provável».
Serguei Lavrov concluiu sublinhando que todas as alterações ocidentais não
impediam o resto do mundo de cooperar e de se desenvolver. Ele lembrou a
«Parceria da Eurásia Alargada», evocada no Fórum Valdai, em 2016, pelo
Presidente Putin para completar a «Cintura e a Rota» do Presidente Xi. Esta
ampla iniciativa, à partida prontamente acolhida pela China, é agora apoiada
pela Organização do Tratado de Segurança Colectiva, a União Económica
Euroasiàtica, a Comunidade de Estados Independentes, os Brics e a Organização de
Cooperação de Xangai. As contrapropostas da Austrália, do Japão e da União
Europeia acabaram mortas à nascença.
Enquanto os responsáveis ocidentais têm o costume de anunciar antecipadamente os
seus projectos e de os propagandear, os diplomatas russos só os anunciam quando
já foram lançados e estão seguros de os concretizar.
Em resumo, a estratégia de cerco da Rússia e da China, imaginada pelo deputado
britânico Halford J. Mackinder [6] e explicitada pelo Conselheiro Segurança
Nacional norte-americano Zbigniew Brzeziński [7], falhou. O centro de gravidade
do mundo desloca-se para o Leste, não contra os Ocidentais, mas, provocado por
sua culpa [8].
Tirando as primeiras conclusões práticas destas análises, o Vice
Primeiro-ministro sírio, Walid al-Muallem, exigia no dia seguinte, na tribuna da
Assembleia Geral, a retirada imediata das tropas de ocupação norte-americanas,
francesas e turcas [9].
Thierry Meyssan
Tradução
Alva


      



  O seu endereço email
  
  Destinataire :
  
  Texto da sua mensagem:
  

/* <![CDATA[ */ (function($){ $(document).ready(function(){
 $("div#formulaire_recommander").hide().css("height","");
 $("#recommander>a.menu-titre, #recommander_bouton").click(function(){
 $("div#formulaire_recommander:visible").slideUp("slow");
 $("div#formulaire_recommander:hidden").slideDown("slow"); return
false})})}(jQuery)); /* ]]> */
[1] “Remarks by Donald Trump to the 73rd Session of the United Nations General
Assembly”, by Donald Trump, Voltaire Network, 25 September 2018.
[2] « Discours d’Emmanuel Macron devant la 73e séance de l’Assemblée générale
des Nations unies », par Emmanuel Macron, Réseau Voltaire, 25 septembre 2018.
[3] “Remarks by Hassan Rohani to the 73rd Session of the United Nations General
Assembly”, by Hassan Rohani, Voltaire Network, 25 September 2018.
[4] “Remarks by Sergey Lavrov to the 73rd Session of the United Nations General
Assembly”, by Sergey Lavrov, Voltaire Network, 28 September 2018.
[5] “A Alemanha e a ONU contra a Síria”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, 28 de
Janeiro de 2016. “Como é que a Administração da ONU organiza a guerra”, Thierry
Meyssan, Tradução Maria Luísa de Vasconcellos, Rede Voltaire, 4 de Setembro de
2018.
[6] “The geographical pivot of history”, Halford J. Mackinder, The Geographical
Journal, 1904, 23, pp. 421–37.
[7] The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives,
Zbigniew Brzeziński, Basic Books. 1997.
[8] “The Geopolitics of American Global Decline”, by Alfred McCoy, Tom Dispatch
(USA) , Voltaire Network, 22 June 2015.
[9] “Remarks by Walid Al-Moualem to the 73rd Session of the United Nations
General Assembly”, by Walid Al-Moualem, Voltaire Network, 29 September 2018.
Fonte : “ONU : nascimento do mundo post-ocidental”, Thierry Meyssan, Tradução
Alva, Rede Voltaire, 2 de Outubro de 2018,
www.voltairenet.org/article203267.html
 
Thierry Meyssan
 Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis
for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa
árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du
11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2,
Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada
em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en
los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

In
VOLTAIRENET.ORG
http://www.voltairenet.org/article203267.html
2/10/2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário