quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Porque cresce o fascismo no Brasil?




   


 Carlos Serrano Ferreira*   

«O que é preciso é aprofundar o estudo do fascismo, entender o seu significado
histórico, bem como os factores estruturais e conjunturais que possibilitam o
seu enorme crescimento no Brasil e no mundo todo. Não podemos restringir-nos à
espuma do processo político brasileiro, e devemos procurar inclusive a nova
correlação de forças entre as classes na sociedade brasileira. Principalmente, é
preciso sair de análises que se fixam na aparência do fascismo, e entender a sua
natureza, a sua essência».


Nestes últimos dias meus colegas cientistas sociais vem falando que seria
necessário refundar a ciência social brasileira para explicar o crescimento do
fascismo no Brasil. A surpresa se deve em particular à adesão de massas
empobrecidas, negros, mulheres e homossexuais a este projeto, logo setores que
são já atacados discursivamente por esse movimento e que sofreriam mais
fortemente com um governo fascista. A surpresa é ainda maior por este tsunami
eleitoral fascista ocorrer uma semana depois das enormes manifestações
feministas do “Ele Não”. Uma análise destas por si só necessitaria um artigo
extenso e profundo, mas que esboço alguns comentários, tendo em vista sua
importância para a discussão do tema em tela.
O “Ele Não” faz parte de sucessivas, explosivas e recorrentes manifestações de
massas que ocorreram no Brasil desde os anos 80: as ‘Diretas Já!’, as greves
gerais, o ‘Fora Collor!’, a Marcha dos Cem Mil em Brasília pelo ‘Fora FHC!’ e as
manifestações de 2013. Contudo, desde estas últimas, cinco anos atrás,
incluindo-as, não há classe trabalhadora organizada e setores populares
organizados como participantes expressivos. E se o ‘Ele Não’ foi progressista em
relação à afirmação feminista, teve debilidades importantes e que explicam muito
sobre o cenário político-social atual. Foram centradas na luta contra o
machismo, mas não se ligaram às lutas gerais de classe e mesmo contra o fundo do
fascismo. Isto aponta que um fascismo com roupagem mais ‘moderna’, que ao menos
não seja abertamente machista, teria como resultado a inexistência de
mobilizações de massas antifascistas, pois mesmo os demais setores de luta
contra opressão, como homossexuais e negros, não têm a capacidade de mobilizar
da mesma forma. E isto não é impossível. Pois, como se mostrará, o fascismo
precisa construir inimigos, mas o único obrigatório, pois é o central e causa de
sua existência, é a classe trabalhadora organizada e a esquerda. Exemplos claros
desta versão mais ‘moderninha’ do fascismo já ocorreram na Europa, como a Alice
Weidel, líder lésbica do partido fascista alemão AfD ou o falecido líder do
partido neofascista austríaco Partido da Liberdade, Jörg Haider, gay também,
para ficar em apenas dois dos mais famosos exemplos. Além disso, as mobilizações
acabaram por se tornar explosões catárticas, não se materializando em
organização concreta para o futuro.
Não creio no entanto que seja necessário recriarmos nada na ciência social
brasileira, não mais do que a criatividade normalmente exigida para a tarefa
científica. O que é preciso é aprofundar o estudo do fascismo, entender o seu
significado histórico, bem como os fatores estruturais e conjunturais que
possibilitam o seu enorme crescimento no Brasil e no mundo todo. Não podemos nos
restringir à espuma do processo político brasileiro, e devemos procurar
inclusive a nova correlação de forças entre as classes na sociedade brasileira.
Principalmente, é preciso sair de análises que se fixam na aparência do
fascismo, e entender sua natureza, sua essência. É como uma primeira
contribuição neste sentido que escrevo este artigo, que precisará ser
aprofundado, inclusive pelo debate coletivo. Sempre se pensa melhor
coletivamente que isoladamente.
Qual é a essência do fascismo? Aqui podemos ter a ajuda das análises marxistas,
que já produziram muito material sobre o tema. Uma definição que sintetizaria o
debate é que o fascismo é o regime dos setores mais reacionários da burguesia,
que se utiliza de métodos de guerra civil para destruir a democracia operária e
os organismos da classe trabalhadora. Se é verdade que precisamos distinguir o
fascismo-enquanto-movimento do fascismo-enquanto-regime (Dos Santos, 1978;
Villaverde Cabral, 1982, entre outros), isto ocorre primordialmente pois o
primeiro é essencialmente um movimento pequeno-burguês, das classes médias, e o
segundo é um regime burguês, do grande capital, em particular o financeiro. Essa
passagem de um para o outro é produto de duas realidades.
A primeira é que a pequena burguesia, ou em sentido mais lato – pois inclui
setores da aristocracia proletária e setores burgueses de baixo calado – as
classes médias, não são uma classe essencial do capitalismo, não representam os
pólos centrais em luta. Por isso não são capazes nem de dirigir o capitalismo,
como a burguesia, nem podem propor uma alternativa social superior, como o
proletariado. Consequentemente, podem se juntar em certos momentos ao projeto
proletário, quando este demonstra força e está em avanço, ou à contra-revolução
burguesa, quando esta é mais forte e afirmativa. Quando tenta elaborar um
projeto próprio, produz um pastiche, que amalgama fragmentos dos programas
burgueses e proletários, e mesmo resquícios pré-capitalistas, formando uma
bizarra composição. Como o fascismo-enquanto-movimento precisa elaborar um
programa, e o máximo que consegue é essa bizarrice inconsequente, e enquanto
regime baseia-se em métodos de guerra civil, ele é sempre e essencialmente
irracionalista. Faz o culto da força, da morte e da guerra, habita no
sobrenatural. O fascismo rejeita os valores racionalistas, iluministas e
humanistas, que foram característicos do capitalismo em ascensão e dos períodos
de crescimento – ainda que estes valores se convertam em realidade cada vez mais
no elogio da técnica e da burocracia, bem como a defesa do humanismo se converte
em mero discurso hipócrita a justificar intervencionismos externos e
filantropias internas lucrativas. O fascismo nega mesmo conquistas científicas
que contrariem sua visão de mundo irracionalista, chegando às raias da loucura,
como a atual defesa de muitos deles da “Teoria” da Terra Plana, a negação do
Holocausto ou a afirmação de que o nazismo era de esquerda. As teorias
conspiratórias também são um dos passatempos preferidos dos fascistas.
É por isso que o fascismo pode assumir um discurso nacionalista econômico e
mesmo de defesa da autarquia em um momento, e atualmente defender programas
antinacionalistas econômicos e ultraliberais; pode usar uma retórica
anticapitalista em um momento, e em outro ser o defensor aberto do capitalismo;
pode ser racista em generalidade, como era o nazismo, ou admitir negros,
inclusive líderes, como Abdias do Nascimento e João Cândido, membros do
integralismo brasileiro; pode ser antissemita, como muitos foram no passado e
alguns ainda o são, ou deixarem de ser e passarem a ser islamófobos e mesmo
defensores de Israel; podem assumir um discurso imperialista, expansionista,
como nos anos 1930 e 1940, ou de Estado de Contra-Insurgência, voltado para o
inimigo interno, como as ditaduras militares latino-americanas a partir dos anos
1960… O fascismo assume a forma e se apropria de partes das tendências de uma
sociedade em uma dada época, inclusive o ódio a setores que já são
tendencialmente oprimidos em cada momento. É por isso que os seguidores do
candidato fascista brasileiro ficam confusos quando tomam a forma pelo conteúdo
e, ao verem o nome de Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães,
acreditam que o nazismo era de esquerda, quando na verdade o nazismo apenas
parasitou a aparência do comunismo para poder alcançar trabalhadores em um
momento em que o comunismo tinha influência na Alemanha e na Europa em geral.
Porém, o nazismo, como qualquer estudioso ou mesmo um cidadão bem informado
saberá, é o oposto do comunismo, é seu inimigo mortal. O nazismo, ao utilizar o
termo socialismo, utiliza um expediente de propaganda hipócrita. Na conjuntura
das democracias de massas e de ascenso socialista do início do século XX, alguns
dos regimes contra-revolucionários tiveram de mimetizar as manifestações
revolucionárias. Por exemplo, “o movimento na Alemanha é no essencial análogo ao
italiano. É um movimento de massas, cujo dirigentes usam e abusam de demagogia
socialista. Tal é necessário para a criação do movimento de massas” (Mandel,
1976, 1986). Aqui é válida a frase de François de La Rochefoucauld: “a
hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”.
Mesmo em sua forma de organização, ela pode variar em relação ao componente de
mobilização. Em países em que a política de massas era ou é presente, o fascismo
enquanto movimento assume formas mobilizadores, como emulação. Em países onde
isto não ocorre, esta característica é menor, como no caso do fascismo português
ou do fascismo espanhol (este por sua origem e suporte militar), em que pode se
valer simplesmente do apoio de massa silencioso, em sociedades aonde a política
não é ativa publicamente. O que não torna o peso desse apoio menos forte e
esmagador para os opositores, pois deixa as mãos livres para o regime ditatorial
atuar sem preocupações. Lembre-se o caso português, aonde silenciosamente muitos
foram parte da rede de informadores da famigerada PIDE/DGS.
Talvez seja quando há o elemento mobilizador mais claro é que se pode notar a
maior diferença entre as duas fases, o fascismo-enquanto-movimento e o
fascismo-enquanto-regime. A mobilização em ambos se dá sob o domínio de uma
estrita hierarquia, e não como atividade livre, criativa e participativa, mas
como o seu oposto, pois intenciona a supressão da liberdade e a desmobilização
dos setores ativos da sociedade:
“Trata-se da natureza intensamente mobilizadora do fascismo. Ora, já foi quanto
a nós convincentemente argumentado, por Organski por exemplo, que tal
mobilização, mais episódica e instrumental do que animada de qualquer estratégia
a longo-prazo, já antes da tomada do poder se transforma depois da tomada do
poder em mero ritual ratificatório, sem qualquer incidência sobre o processo de
tomada de decisões ao nível do Estado. Além disso, tal mobilização é de ordem
estritamente política e tem por objectivo e limite a desmobilização social do
proletariado, o qual possuía, sim, uma estratégia e visava a transformação da
sociedade burguesa. Em nossa opinião, são estes efectivamente o objectivo e o
limite da mobilização fascista. E não resisto a citar as sábias palavras de
Samuel Barnes a este respeito: ‘Alguns sistemas de mobilização totalitária
surgem como reacção contra outras estruturas de mobilização. Tais sistemas são,
efectivamente, muito mais negativos do que ideológicos e, embora tenham uma
pseudo-ideologia formal, esta não é um guia para a acção, e só é levada a sério
pelos jovens, pelos ignorantes e pelos universitários’. [Grifos no original.]”
(Villaverde Cabral, 1982, p.7-8).
Mesmo estas mobilizações se tornam ainda mais ritualizadas. Isto é assim pois o
objetivo dos fascistas quando no governo é restringir a liberdade, desfazer os
avanços, o que em si significam restrições. Logo, para estes as restrições
externas – inclusive externas ao Estado – ao seu campo de ação são menores. A
história demonstra que, ao menos no médio prazo, a redução da liberdade é sempre
mais simples, pois conta principalmente com a apatia generalizada e a inércia,
do que é a expansão da liberdade, que exige ação e atuação consciente e
enérgica. As forças da inércia atuam para reforçar a retração da liberdade.
Ainda que os condicionantes externos possam determinar a forma como se manifesta
essa restrição da liberdade.
O outro motivo para a passagem de movimento à regime é a aceitação a partir de
certo momento pela burguesia. Normalmente, a burguesia não adota o fascismo como
meio principal. Porém, não há lugar aonde o fascismo tenha chegado ao poder sem
que para isto contasse com o apoio econômico dos pesos-pesados do grande capital
e sem a colaboração dos partidos burgueses – fossem conservadores ou liberais.
Na verdade, a forma normal, convencional, de passagem para o fascismo, foi a
conversão interna do regime, a partir de um processo de aprofundamento do Estado
de Exceção, que leva em em certo momento a um salto qualitativo para o fascismo.
Foi assim na Alemanha e na Itália, por exemplo, por dentro das estruturas
democráticas. Em Portugal houve várias crises internas no parlamentarismo da
Primeira República, o crescimento da centralização com a ‘República Nova’ de
Sidónio Pais, depois o golpe de 28 de Maio de 1926 e a Ditadura Nacional
(1926-1933) e finalmente um regime abertamente fascista, com Salazar e o Estado
Novo, a partir de 1933. Entre os casos mais importantes a grande exceção foi o
franquismo, que foi uma ruptura aberta com a institucionalidade vigente desde o
início, por um golpe militar, como também ocorreu no Chile de Pinochet. Esse
caminho regressivo e faseado ao Estado Fascista mostra como não é só a classe
trabalhadora que aposta em processos sem ruptura: esta, em sua evolução,
primeiro busca reformas, até que só lhe resta o caminho da revolução; já a
burguesia aposta primeiro em medidas reacionárias, até que adota o regime
contra-revolucionário do fascismo. Isto remete ao caso brasileiro, aonde a
burguesia apostou inicialmente em um golpe institucional, com a
instrumentalização e partidarização da luta contra a corrupção – o que também é
típico do fascismo, o discurso da “regeneração moral da nação”, ainda que sejam
na prática corruptos até à alma – e o impeachment de Dilma Rousseff e a
imposição de Michel Temer, para só à frente avançar com o apoio ao candidato
fascista, para aprofundar a reação. Colabora no processo a incapacidade dos
representantes tradicionais da burguesia em se apresentar como agentes
capacitados de cumprir essa tarefa, como o falhanço político de Geraldo Alckmin.
Contudo, a burguesia só aposta em última instância no fascismo não por ser
preferencialmente democrática, pois nunca foi e ainda não é. Cita-se muito a
Revolução Francesa, mas esta só alcançou a radicalidade que teve pois o processo
foi levado aos limites do possível pelas massas populares, não seguindo os
desejos da burguesia. Esta preferia um modelo inglês moderado e conciliador. A
democracia liberal seria atualmente, não fossem as mobilizações socialistas e
operárias, uma democracia censitária, como era no início do século XIX. Seria
apenas um regime de homens de posse, cidadãos de bens (note-se o eco com o
‘cidadão de bem’ atual). Seria uma plutocracia (governo dos ricos) escancarada.
Ela teve que incluir as mulheres, negros e trabalhadores em geral devido às
lutas dos de baixo contra os de cima. Só por isto a ditadura de classe não
assumiu a forma de um regime democrático abertamente dos ricos e uma ditadura
aberta contra os trabalhadores. A universalização do sufrágio só não realizou os
temores da burguesia de perda de controle, pois esta conseguiu trazer para seu
campo setores de direção das classes populares (a social-democracia). Contudo,
se a ameaça do sufrágio fosse concreta, a burguesia buscaria suprimi-lo
universalmente, como já o fez em vários países, em muitos momentos. A democracia
liberal permite uma circulação intra-elites, entre as frações burguesas, o que
acalma as tensões entre estas, ao menos em geral, e por isso é até certo ponto
útil. Porém, mais do que isso: não se recorre à métodos de guerra aberta
permanentemente, pois isto fragilizaria a hegemonia da própria classe dominante.
Por isso o fascismo é para ser “consumido com moderação” pela burguesia, apenas
de tempos em tempos.
E aqui chego à outra conclusão importante, e que explicará muito do crescimento
do fascismo no Brasil e no mundo no último período: o liberalismo e o fascismo
não são antagônicos. Pelo contrário, o fascismo é a continuação do liberalismo
por outros meios, parafraseando Carl von Clausewitz, que afirmava que “a guerra
é a continuação da política por outros meios”. Esta percepção já está indiciada
na excelente obra de João Bernardo, Labirintos do fascismo, com o qual não
concordo em sua integralidade, mas que traz elementos importantes a serem
refletidos. Ele afirma neste livro que
“É a partir daqui que podemos analisar as formas específicas de organização que
os fascistas implantaram nas suas milícias, nos seus partidos e nos seus
sindicatos, em que a ausência de qualquer capacidade de iniciativa da base
correspondia à sua fragmentação e à sua redução aos indivíduos, assegurando o
prevalecimento incontestado das hierarquias. Do mesmo modo, nos festivais e
desfiles […] cada indivíduo não era mais que um figurante, como que um espelho
do modelo geral, multiplicando todos eles, até ao infinito, essa imagem
singular, enquanto a coreografia do conjunto se organizava em função da figura
central e exclusiva do chefe. Este foi um dos aspectos em que o fascismo esteve
mais próximo dos liberais do que dos conservadores. Com efeito, para os
conservadores o povo constituía uma totalidade orgânica, irredutível à soma de
individualidades idênticas que constitui a massa. Foi o modelo liberal do
cidadão – o indivíduo consumidor da economia ou o indivíduo eleitor da política
– que presidiu à noção fascista de massas.” (Bernardo, 2003, p.28-29)
A burguesia, enquanto classe exploradora, precisa defender a hierarquia, como
todos os regimes de exploração do passado o fizeram. Porém, devido à natureza do
regime capitalista, tal qual o mercado que esconde atrás de sua aparência de
espaço de livre-competição de unidades econômicas uma brutal concentração de
riqueza em enormes e cada vez mais gigantescos monopólios, o Estado capitalista
esconde a hierarquia real da sociedade, a desigualdade, sob a forma de uma
aparente igualdade “cidadã”. Como já apontava Nicos Poulantzas (2007,
p.358-359), “la estructura real de las relaciones de producción — separación del
productor directo y de los medios de producción — conduce a una prodigiosa
socialización del proceso del trabajo. Ese aislamiento, efecto sobredeterminado
pero real, lo viven los agentes a la manera de la competencia y lleva a la
ocultación, para esos agentes, de sus relaciones como relaciones de clase”. Isto
engendra um processo de individualização que se materializa na dissolução
ideológica da organização de classe e sua substituição pelo individualismo da
cidadania. O que faz por um lado que se suponha que “[…] ese Estado representa
el interés general, la voluntad general y la unidad politica del pueblo y de la
nación” (Poulantzas, 2007, p.361). Estamos assim “en presencia del conjunto
normativo institucional de la democracia política [acrescentaria eu, burguesa]
[Grifos no original]” (Poulantzas, 2007, p.361).
Normalmente, esta forma política individualista convive com a existência de
organizações de classe, econômicas e políticas. Se as organizações da classe
trabalhadora avançam, elas podem substituir o Estado Capitalista e construir um
novo Estado, Operário, uma democracia socialista. Isto ocorreu em muitos países
ao longo do século XX, tendo refluído, como parte dessa luta de classes
internacional, ao final do século passado e início deste. Por outro lado, quando
se avança a dissolução da organização dos trabalhadores, dos organismos de poder
popular, nos aproximamos do fascismo, que visa precisamente a destruição de toda
a democracia proletária, incluindo os seus partidos e sindicatos. Nesse
processo, a ação clara, com métodos de guerra civil, acaba por romper o
invólucro ideológico do regime democrático capitalista, mostrando à luz do dia
as entranhas do regime capitalista, seu caráter plutocrático e hierárquico.
O fascismo pretende converter a classe trabalhadora em massa, pois “as massas
populares assentam a sua existência, enquanto massas, na desorganização da
classe trabalhadora. A perda de consciência sociológica da classe trabalhadora e
a sua redução a uma entidade meramente económica é caracterizada, no plano
político, por uma conversão da classe em massas. Foi este um dos objectivos
básicos do fascismo” (Bernardo, 2003, p.28). Essa diluição em massas precisa de
um anteparo ideológico, que é a nação. Não a nação em sua substância histórica e
material, mas em sua abstração ideal. Por isso, o fascismo, mesmo quando possui
programas antinacionalistas, como o atual fascismo brasileiro, recorre à sombra
do nacionalismo, para aquela parte de dissolução das diferenças – o oposto da
realidade de quase todas as nações – em particular a dissolução do elemento de
alteridade que afirma o caráter classista, ou seja, o comunismo, ou o substituto
imediato de organizador da classe trabalhadora, até mesmo a social-democracia.
E, como diluidor, por sua vez, das diferenças própria internas das nações, apela
para um político “regenerador”, um líder carismático que seria a personificação
do modelo de nação (mesmo que em realidade sejam todos estes exemplares abjetos
de depravação, sadismo e corrupção).
Por isso, o liberalismo, e sua versão radicalizada contemporânea, o
neoliberalismo, são sempre as antessalas do fascismo, desbravadores do mesmo.
Por sua política econômica e social, destrói na prática o tecido social e
econômico dos países, levando à ampliação brutal da desigualdade social, da
miséria popular e da violência generalizada, o que leva à disseminação da
angústia e incerteza existencial, o que, por sua vez, abre espaço para todas as
formas de obscurantismos e irracionalismos. O medo é o berço do fascismo, é o
mar em que navega, é o norte de sua bússola. Não é por acaso que as políticas
austeritárias vigentes na Europa tem estimulado o avanço das forças fascistas.
Contudo, é por sua ideologia de individualismo extremista que o neoliberalismo
prepara o terreno para as hordas fascistas. Como disse uma das maiores apóstolas
dessa religião laica, Margaret Thatcher, “[…] there’s no such thing as society.
There are individual men and women and there are families” [‘não existe tal
coisa, a sociedade. Existem homens e mulheres individuais e há famílias’ em
tradução livre]. Nessa sociedade individualizada não há solidariedade, mas é um
mundo da competição total, com uma moral que admite qualquer comportamento para
ascensão e sobrevivência, o mundo estadunidense dos vencedores e perdedores. A
violência na competição social se converte, cada vez mais, no culto da violência
como meio de vida. A brutalidade é valorizada. É o tempo em que a maior diversão
de massas esportiva é o vale tudo, e em que há a generalização universal da
brasileira Lei de Gérson (“Gosto de levar vantagem em tudo, certo?”) e do
“jeitinho”. Não há luta coletiva, mas a luta de indivíduos contra indivíduos
pela ascensão social, com vagas cada vez mais limitadas.
O fascismo é a tendência radicalizada do neoliberalismo, que por sua vez é
próprio da natureza da burguesia na etapa atual de decadência sistêmica quando
não possui freios impostos pelas organizações dos trabalhadores. Nos termos de
Marx, o bonapartismo no século XIX era um equilíbrio catastrófico da luta de
classes, pois equilíbrio entre organismos de poder da classe operária e burguesa
paralisados pela incapacidade de lutar, pelo esgotamento (e a impossibilidade
naquele momento histórico de ascensão do capitalismo da passagem ao socialismo).
A verdade é que a democracia liberal é uma realidade precária, um equilíbrio
pela afirmação ativa das organizações burgueses e proletárias, marcante
principalmente nos países centrais nas três décadas posteriores à Segunda Guerra
Mundial. Isto ocorria principalmente pela presença de um forte campo socialista
internacional. Não se pode entender a correlação de forças única e
exclusivamente em nível nacional, mas pela influência internacional.
Quando é possível à burguesia avançar, desorganizando a classe trabalhadora, o
que se inicia como um liberalismo ou neoliberalismo ativo acaba por se
converter, se não tiver uma forte oposição, em fascismo. E a burguesia
necessita, devido à lei de tendência à queda da taxa de lucro, derivada do
próprio funcionamento capitalista normal, de avançar sobre as condições de vida
e trabalho dos trabalhadores, para ampliar a mais-valia e tentar contrariar esta
tendência. Para isso precisa exatamente desarticular as resistências dos
trabalhadores. Isto é uma necessidade particularmente severa, quando as margens
são ainda mais reduzidas durante as fases B dos ciclos de Kondratiev, de
descenso, e é exponenciada nos períodos conturbados de decadência do ciclo de
uma potência hegemônica.
O que assistimos desde o início dos anos oitenta no mundo é a imposição do
neoliberalismo, que serve fundamentalmente para transferir riqueza para o setor
financeiro e assim gerar um desemprego massivo e estrutural, que destrói com as
organizações da classe trabalhadora. Isto, somado ao retrocesso produzido pelo
fim da União Soviética e das democracias populares – irresponsavelmente
comemorado por setores da esquerda –, possibilitou um avanço descontrolado das
tendências fascistizantes.
Esta dinâmica ter se instalado após às contra-revoluções no Leste Europeu
contraria o discurso liberal e dos revisionistas históricos que afirmam que o
fascismo é uma resposta ao perigo revolucionário. Pelo contrário. O fascismo só
foi capaz de surgir e vicejar aonde a revolução já tinha sido derrotada, como na
Alemanha, após a derrota do ciclo revolucionário de 1918-1923, ou na Itália,
após a derrota do Biénio Rosso de 1919-1920, para quedarmos apenas nos exemplos
mais conhecidos. Mesmo nos golpes fascistas contra processos revolucionários,
como no caso espanhol e chileno, só foram possíveis suas vitórias devido à
dubiedade e tibiez de seus dirigentes, que congelaram o avanço revolucionário e,
por isso, os levaram à derrota, o que abriu o caminho para a ofensiva fascista.
A República Espanhola não avançou para a resolução dos problemas das
nacionalidades, não fez a reforma agrária generalizada, não libertou o Marrocos,
etc; Salvador Allende se prendeu aos limites da institucionalidade burguesa e
não avançou ao socialismo, apesar de suas importantes reformas. Aonde a marcha
da revolução avançava, como na Rússia de 1917, a intentona fascista de Kornilov
é derrotada, bem como o Exército Branco na guerra civil. Uma derrota da
Revolução Russa teria levado inelutavelmente ao fascismo de imediato ou quase de
imediato. Por isso os que afirmam que o fascismo não pode vencer no Brasil atual
pois inexiste um perigo revolucionário, ou desconhecem as lições do passado ou
agem ideologicamente orientados, como os historiadores revisionistas ao tratarem
dos fascismos do Entreguerras (sobre isto sugiro a leitura da brilhante resposta
do recentemente falecido marxista italiano, Domenico Losurdo, em seu livro
Guerra e Revolução).
Lembremos também que o fascismo tem convivido normalmente com a economia
liberal. O nazismo teve à frente de sua política econômica, durante boa parte de
seu governo, um liberal ortodoxo, Hjalmar Schacht. Este só contrariou com
medidas práticas os princípios econômicos que defendia para afastar, como ele
afirma em suas memórias, ‘o perigo comunista’ (Schacht, 1999). Sintomaticamente,
seu Plano Helferich será estudado por Gustavo Franco e será a inspiração para o
Plano Real, que asfalta o caminho para o choque neoliberal profundo dos anos
FHC. Será Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, então do PSDB,
dirigente do Instituto Millenium (ultraneoliberal) e atual militante do Partido
Novo (também ultraneoliberal), que prefaciará a edição brasileira das memórias
do economista de Hitler. Também é fundador do Instituto Millenium o Paulo
Guedes, atual mentor econômico do candidato fascista brasileiro e o seu possível
Ministro da Fazenda. Ele também é a ponte entre o fascismo brasileiro com a
experiência fascista que, não só melhor se combinou com o neoliberalismo, como
inaugurou a ofensiva neoliberal, a ditadura de Pinochet (1974-1990). Não é de se
estranhar, pois para impor o choque neoliberal em uma sociedade altamente
mobilizada e em avanço progressista só com o recurso ao fascismo. Paulo Guedes
lecionou durante um período dessa ditadura na Universidade do Chile. Ele é PhD
pela Universidade de Chicago, que não só formou importantes ultraneoliberais,
como Milton Friedman, como forneceu os assessores econômicos à Pinochet, os
famosos Chicago Boys.
No Brasil, a fascistização começará a trilhar seu caminho com a derrota da greve
dos petroleiros em 1995, no início do governo FHC, que possibilitou o início de
um violento programa neoliberal. Nem mesmo os governos social-democratas do PT
reverteram esse processo, pois não mexeram com os fundamentos econômicos
neoliberais, ainda que se beneficiando de uma conjuntura internacional
favorável. Sua política distributiva, ainda que acessória e extremamente
importante, como o Bolsa-Família, não rompeu com a lógica liberal, pois não
passava pelo fortalecimento das organizações da classe trabalhadora, mas
reforçava a dinâmica cidadã, ou seja, centrada no fortalecimento dos direitos
dos indivíduos isolados, ainda que com algumas exigências ao nível das famílias,
como o comparecimento das crianças nas escolas. Ao abordar isto não significa
que desconheçamos ou neguemos a importância do programa. Apesar de limitado em
recursos, colaborou para o resgate de milhões da indigência e gerou um impacto
positivo na economia. Ao contrário do “Bolsa-Banqueiro”, dos juros da dívida e
das transferências financeiras, que gera o enriquecimento de uma minoria
reduzidíssima, e não têm nenhum retorno positivo para a economia, pelo
contrário, tem feitos deletérios. Note-se que ao não realizar uma política
governamental que passasse essencialmente pelo fortalecimento das organizações
da classe trabalhadora, o PT produziu uma situação curiosa: em meio à hegemonia
ideológica neoliberal, os ganhos que grandes parcelas da população obtiveram em
seus governos foram enxergados posteriormente não como produto dessa época, mas
do esforço individual desses trabalhadores e pequeno-burgueses. Obviamente, eles
se esforçaram, mas sem o ambiente criado não teriam conseguido ir tão longe.
Contudo, esse processo de construção da hegemonia neoliberal e fascistização não
foi produto apenas de inciativas a partir do Estado, mas contou com o suporte
das organizações privadas da burguesia e de seus aparelhos ideológicos, como os
monopólios dos meios de comunicação. A principal organização a educar as
gerações de jovens que crescerão nos anos noventa será a Rede Globo. Veja-se o
caráter dos programas voltados para esses públicos, como a série ‘Malhação’, que
durante muitos anos apresentou toda uma concepção neoliberal, individualista e
competitiva, imoral. Também foi ajudado pelo grupo Abril, que publica entre
outros o semanário Veja, aonde encontramos novamente a sombra de Paulo Guedes,
que investiu na Abril Educação, dos irmãos Civita.
Essa fascistização das massas brasileiras é um diferencial em relação à ditadura
militar (1964-1985), quando o Estado era então fascista, de tipo
contra-insurgente, mas não conseguiu disseminar uma cultura fascista. E um
elemento que facilitou esse processo foi o crescimento das seitas
convencionalmente chamadas de evangélicas, mas que são sobretudo
neopentecostais. Estas ocuparam, principalmente, o vazio deixado entre os mais
pobres pela quase destruição total da Teologia da Libertação durante os papados
ultrareacionários de João Paulo II e Bento XVI. É preciso entender o diferencial
destas seitas para as igrejas protestantes tradicionais, bem como em relação às
outras igrejas e religiões, como o judaísmo, o catolicismo, o cristianismo
ortodoxo, o islamismo e o hinduísmo e as religiões de matriz africana, por
exemplo. Estas tem origens pré-capitalistas ou, no máximo como os protestantes
tradicionais, emergiram na transição para o capitalismo, por isso possuem
contradições com o capitalismo, tendo assistido ao longo de tempo a emergência
de ramos progressistas. O neopentecostalismo, porém, surge já no período de
decadência capitalista, nos anos 1960 e 1970, na grande potência imperialista de
nosso tempo, os Estados Unidos. O neopentecostalismo é a religião do
imperialismo: congrega ao mesmo tempo uma Teologia da Prosperidade e uma defesa
do individualismo econômico e social com movimentos de diluição dos indivíduos
em grandes massas; possui práticas marcadamente irracionalistas, como o
curandeirismo, a glossolalia (“falar em línguas”), profecias, batalha
espiritual, com o “enfrentamento” direto dos demônios, e um mundo repleto e
dominado diretamente pela influência de seres sobrenaturais, além de um forte
discurso moralista conservador. Como se nota é, também, claramente, a única
religião intrinsecamente fascista. Sua estrutura organizacional reproduz as
estruturas fascistas, como o líder carismático, a forte hierarquia e o domínio
total do líder, e mesmo a formação de milícias, como a “Gladiadores do Altar”,
de uma das maiores e mais poderosas seitas, a Igreja Universal do Reino de Deus.
Como o fascismo, também estabelece relações com o lumpenproletariado e há vários
indícios apontados pela imprensa de conexões com o submundo do crime. E é no uso
dos meios de comunicação de massa, e contando com a conivência do Estado, que
eles foram penetrando e ocupando governos, criando uma das maiores bancadas
parlamentares. Com uma visão fundamentalista do cristianismo, destilam o ódio
contra os homossexuais, feministas e contra qualquer traço de modernidade, em
particular contra as organizações sindicais e a esquerda (ainda que parte da
social-democracia tenha coabitado durante algum tempo com essas seitas). Tendo
em vista que ela inicialmente se espraiou entre setores mais empobrecidos –
atualmente chegando até à classe média – ela incorporou algumas características,
realizando um sincretismo doutrinário com as religiões de matriz africana, em
particular pela incorporação de elementos animistas. Contudo, por sua dinâmica
fascista, não aceita conviver com a diferença, e passa a satanizar e perseguir,
inclusive violentamente, essa religiões, e a reboque, ataca toda a cultura
popular negra e favelada. Desta forma, assume conotações também racistas e serve
à desarticulação das organizações populares nessas comunidades. Não é por acaso
que a IURD e sua emissora, a Record, embarcaram na campanha do fascista.
Por outro lado, a hegemonia neoliberal terá resultados inclusive sobre a
dinâmica da oposição ao neoliberalismo. A partir dos anos noventa, frente ao
retrocesso das organizações de classe, e apoiado por uma ofensiva ideológica
emanada dos Estados Unidos, a esquerda começa a migrar do debate de classe, e
mesmo do debate classista de luta contra as opressões, para uma posição
identitarista, liberal, de luta contra as opressões. Também migra da afirmação
da posição classista de mundo para uma posição “cidadã” (liberal), e como um eco
tardio do eurocomunismo, esbate a diferença entre democracia liberal e a
democracia operária, e dilui tudo na defesa de uma democracia – sem corte de
classe ou definição – como valor universal, tentando esconder sua adesão
enquanto ala esquerda do neoliberalismo e do regime. A forma liberal de debater
as opressões, além de vender falsas ilusões de superação das diversas opressões
dentro do capitalismo, é de corte individualista, biologizante, irracionalista
em alguns casos, e que se torna um instrumento de desorganização das
organizações da classe trabalhadora. Divide os explorados e oprimidos e explode
a realidade em múltiplas e fragmentadas identidades, deixando de lado a
identidade que as unificava, exatamente a de explorados e oprimidos, a
identidade de classe. É a era do pós-modernismo, do “fim das grandes
narrativas”, tudo se transforma em discurso, em batalhas semânticas. Muitos
destes movimentos são claramente contrários à esquerda e criam um ambiente
irracionalista favorável ao fascismo, pois levam a disputa política para o campo
que o fascismo brasileiro quer disputar, o dos costumes e o da moral. A esquerda
liberalizada não consegue oferecer uma identidade unitária que congregue todas
as lutas de opressão casando-as com a luta anticapitalista, classista, e se vê
desarmada frente à identidade nacionalista – ainda que essencialmente
antinacionalista –, de extrema-direita, militarista e fundamentalista cristã,
que unifica todo o fascismo brasileiro.
Tendo em vista todo esse processo, ainda falta responder algumas questões
centrais sobre o processo fascista atual: quem na classe dominante brasileira
apoia o fascismo e porquê? Para isso é preciso entender a dinâmica da economia e
da composição da classe dominante e de suas frações hegemônicas: passamos de uma
coalizão liderada pelo setor industrial, suportada pelo setor financeiro e
secundada pelo setor do agronegócio (nome ‘modernoso’ para os velhos coronéis e
latifundiários), para uma coalizão dominada pelos setores financeiro e do
agronegócio, secundado pelo setor industrial. Essa composição tem como resultado
um retrocesso nas forças produtivas nacionais e uma inserção cada vez mais
dependente do país no mercado mundial.
O gigante agrícola se baseia em uma estrutura predatória e superexploradora de
caráter profundamente desigual, incapaz de gerar renda que sustente a elevação
do nível de consumo das massas e que possa ter efeitos positivos sobre os
restantes setores econômicos. Um vislumbre do último Censo Agropecuário (2006)
revela a continuidade desses padrões: a agricultura de pequena escala
representava 80% das propriedades, empregava três quartos da mão de obra rural,
mas representava apenas 25% das terras agrícolas, enquanto a pecuária ocupava
metade da área e as monoculturas da soja, cana e milho representavam 60% das
áreas plantadas. A agricultura tem servido para desperdiçar e esgotar nosso
potencial hídrico e reduzir importante fonte de riquezas em tempos de
florescimento da biotecnologia, que é a nossa biodiversidade, ameaçada pela
expansão irracional e criminosa da fronteira agrícola.
O peso desse setor cresce enquanto o setor industrial tem visto sua participação
no PIB encolher desde seu auge em 1985 (21,6%), e a desnacionalização dos
setores estratégicos se aprofunda, onde a venda da Embraer foi apenas mais um
triste capítulo (defendida pela equipe do fascista). O peso do setor primário
levou a que o Brasil se associasse à pujança chinesa quase que exclusivamente
por exportações agrícolas e de minérios, em uma dinâmica tipicamente
semicolonial, apesar da enorme demanda de produtos industrializados por parte
desse país. Este processo, por sua vez, fragiliza obviamente a classe
trabalhadora, pois reduz a sua vanguarda, o operariado industrial.
Um dos bloqueadores ao desenvolvimento é a concentração bancária: em 2016, os
quatro maiores bancos (Caixa, BB, Bradesco e Itaú) concentraram 79% do mercado
de crédito nacional e dos depósitos e 73% dos ativos do sistema financeiro,
segundo o BC. Além disso, a dinâmica de atendimento governamental ao setor
financeiro internacional e nacional, que retroalimenta a ampliação das dívidas
interna e externa para auferir lucros, mina o desenvolvimento nacional e
possibilita que em 2015 o gasto com juros e amortizações da dívida pública
tragasse 42,43% do Orçamento Geral da União. É aqui que está o grande quinhão do
setor financeiro.
Este processo de desindustrialização é ainda mais perverso, pois agrava os já
graves limites às políticas de redistribuição de renda e de concessões. Os
governos do PT, sem se enfrentar com os fundamentos econômicos desse processo,
foram capazes, durante os anos de crescimento, de distribuir uma parte
minoritária, mas ainda assim importante, da riqueza. Porém, isto não se coaduna
com a crise econômica e, principalmente, com os planos do novo (velho) bloco
dominante. As reformas progressistas se tornam inviáveis e a superexploração se
torna o único caminho, em definitivo, para o capitalismo dependente brasileiro,
o que a Teoria Marxista da Dependência já afirmava, mas é necessário dar novos
saltos, saltos brutais, no nível de superexploração. O país toma feições cada
vez mais parecidas com o Brasil da República Velha (1889-1930). Contudo, fazer a
história retroceder em um século necessita um esforço hercúleo. Um ajuste deste
só se torna possível com o uso da força, só se torna possível com um método de
guerra civil, só se torna possível com o fascismo. É impossível impor esse nível
de retrocesso aos direitos sociais e às condições de vida e de trabalho da
classe trabalhadora brasileira sem destruir por completo qualquer tipo de
organização desta enquanto classe.
E é aí que vai de roldão mesmo o PT, que assumiu ao longo do período de
redemocratização, em particular a partir dos anos 1990, o papel de ala esquerda
de sustentação do regime democrático liberal. Este se sustentava com uma perna
esquerda, sindical-política, o PT, e uma perna direita, industrial-financeira
(cada vez mais a segunda), o PSDB. Isto era possível dentro de um equilíbrio
ativo de forças. Este foi rompido pelo processo de retrocesso econômico
estrutural. O PT pôde, dentro de uma política de conciliação, nos marcos de um
ambiente internacional favorável, recuperar a credibilidade da democracia
liberal brasileira após o descrédito que esta caíra após o nefasto choque
neoliberal dos governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Fez inclusive
concessões à burguesia, como a (contra)reforma da previdência e a lei de
terceirizações, pois atingiam no primeiro caso setores organizados periféricos
para as bases petistas, o funcionalismo público, e no segundo caso, os setores
desorganizados, mais precarizados, que escapam à estrutura burocrática
tradicional do movimento sindical. Mas, quando exigido pelo novo bloco dominante
burguês agrário-financeiro que fizesse medidas mais profundas, como a
(contra)reforma trabalhista, aprovada por Temer, que retrocedeu a legislação
trabalhista ao nível pré-CLT (1943), não podia realizá-las. A essa altura, já
tinha perdido o apoio de extensos setores da classe trabalhadora e das classes
médias, ao adotar uma política econômica neoliberal austeritária, e perdeu o
suporte dos setores dominantes.
Esse novo bloco foi então apostando na destruição institucional do PT, dentro
dos marcos da ordem. Contudo, ao não enfrentar resistências à sua ofensiva por
parte da classe trabalhadora, derivado da confusão que se instalou com o golpe
de 2016 nas principais lideranças da classe, e estando estas já desacostumadas
ao papel de mobilizadoras – tendo atuado no sentido oposto por mais de uma
década – o bloco dominante continua a avançar contra o PT, a esquerda e o
conjunto das organizações da classe trabalhadora. É aí que encontra, ansioso
para realizar a tarefa, o candidato fascista e seus seguidores. Com
contradições, com o passar do tempo, o conjunto dos setores dominantes embarcam
em sua candidatura, abandonando os políticos mais tradicionais e seus partidos.
Nesse processo o PSDB será reduzido quase à pó, deixando de ser um partido em
escala nacional – ainda que não nacional no sentido político-programático, pois
refletiu sempre interesses do capital internacional – e sobreviverá enquanto um
partido de poderes locais, em particular em São Paulo. Mais uma característica
que aproxima o período que vivemos do retorno à República Velha: guiados pelas
mãos do fascismo o PSDB se converte cada vez mais em um Partido Republicano
Paulista (PRP).
A hegemonia desse novo bloco rentista-latifundiário pode ser notada também
culturalmente, quando o sentido da produção cultural, em particular musical, se
inverte, e ao invés de partir do Rio de Janeiro e do litoral do país para o
interior, passa a ser dominado pelo sertanejo (não nacional, mas uma versão
abastardada do country estadunidense) em direção ao litoral. Vê-se o culto do
agrário, do latifúndio, inclusive na campanha publicitária da Globo, que
afirmava que “O Agro é POP”, que “O Agro é bom”.
O ódio de classe das elites brasileiras e das classes médias, estas
historicamente a base de massas do fascismo, servirá a esse processo em curso. É
um ódio seletivo, que dois anos atrás busquei explicar em artigo (Ferreira,
2016, s.p.):
“Porque a classe média – com notáveis e escassas exceções – odeia tanto? Odeia o
Lula, odeia o PT, odeia os sindicatos, e odeia a esquerda (ao confundi-la toda
com o PT)? O exercício de explicação não pode passar pelo seu discurso, que tal
como em 1964, se fantasia da luta anticorrupção. Afinal, a corrupção não nasceu
com o PT, nem alcançou seus píncaros sob os governos do mesmo. As panelas que
batiam contra a Dilma silenciaram mesmo diante das sucessivas denúncias que
atingem, como uma estaca, o coração do governo golpista, inclusive a figura
sombria que o encabeça. Reina o silêncio […]. As castigadas panelas e os ouvidos
sensíveis agradecem, mas a democracia não. Na verdade, essa parcialidade dos
panelaços é histórica. Se contarmos apenas o período de redemocratização e sobre
o tema de corrupção, onde estavam os batedores de panelas quando do escândalo do
contrabando das pedras preciosas ou das concessões de rádios e TVs no governo
Sarney? Onde estavam quando os jovens saíam às ruas contra Collor? Quando os
trabalhadores lutavam contra as privatizações tucanas, escandalosas e corruptas,
que entregaram as riquezas nacionais aos piratas corporativos estrangeiros que,
ao invés de canhões, usavam moedas podres e contatos privilegiados? Onde estavam
no escândalo do SIVAM? Onde estavam as panelas, que permaneceram incólumes,
quando num golpe se mudava as regras no meio do jogo, com a compra da emenda da
reeleição de FHC? Ou na maxidesvalorização, maxi-estelionato eleitoral? Ou no
escândalo do BANESTADO? Onde estava quando do Tremsalão ou da Máfia da Merenda?
O ódio seletivo precisa ser explicado. E, esta explicação está no que é a atual
classe média brasileira e sua posição na sociedade brasileira. […] A sua posição
se define fundamentalmente por sua posição intermediária entre as classes
extremas da sociedade brasileira, estando espremidos entre uma reduzida
burguesia monopólica de grande riqueza e altíssima renda e uma massa proletária,
subproletária e lumpenproletária, do campo e das cidades, completamente
miserável. Mas, afirmar que estão numa posição intermediária não significa que
estão eqüidistantes entre o topo e a base. Não. […] a desigualdade brasileira é
tão grande que a classe média, ao não ver a elite acima, se crê no topo da
pirâmide, se crê ela própria elite. É a “síndrome da Atlântica” [… ,] a classe
média vê como ameaça a si mesma qualquer ameaça à elite. Como não pode mais se
diferenciar das massas pela propriedade, a classe média passa a se diferenciar,
como forma de diminuir seu medo da decadência social, pelo consumo. Aí está a
raiz da “goumertização” de tudo, do rechaço a viajar em aviões com setores
populares, e do ódio elitista à cultura popular. Aí está a origem de seu
reacionarismo feroz e de sua rejeição à democratização social. A classe média
defenderá com unhas e dentes a ordem que garante a desigualdade e as
diferenciações. Aí está a raiz do ódio da classe média.”
Também engrossam esta base fascista os fiéis seguidores das seitas evangélicas
fascistas, e mesmo outros setores populares, que enxergam erroneamente o PT como
o único responsável de todos os males, deslocando seu justo ódio aos efeitos que
a longa hegemonia neoliberal produziu no país, contra a esquerda, contra a
sociabilidade moderna, contra os setores progressistas. É assim que as massas
oprimidas se convertem em seguidores dos opressores e passam, pois
desorganizadas enquanto classe e organizadas enquanto massa pelo fascismo, a
odiar os outros oprimidos. A máscara progressista sob a qual o país profundo e a
reação foram escondidos em anos recentes caiu e revelou a face mais abjeta
fascista.
O processo de fascistização que vemos estará em curso vencendo ou sendo
derrotado o candidato fascista. O resultado apenas definirá a forma dessa
fascistização: no primeiro caso, seguirá a via italiana/alemã, no segundo caso,
a via espanhola/chilena. O que é certo é que as expectativas de grande parte da
esquerda brasileira de reverter eleitoralmente o fascismo são vãs. Quando o
processo de fascistização entra em curso, por mais que se mantenha a forma
democrática aparente, ela será apenas isso, aparência. O que existe é de fato
uma guerra civil. A tragédia brasileira é que, até agora, só um lado entrou em
campo para lutar: e não é o lado dos trabalhadores e do progresso.
* É Chefe do Departamento de Estudos Latino-americanos do Instituto para o
Desenvolvimento Inovativo (Институт Инновационного Развитияm, de Moscou),
vice-coordenador e investigador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e
Contra-Hegemonia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LEHC – UFRJ) e
doutorando en Ciência Política no Instituto de Ciências Sociais e Políticas
(ISCSP) da Universidade de Lisboa.
Bibliografia:
 Bernardo, João. Labirintos do fascismo. Na encruzilhada da ordem e da revolta.
Porto: João Bernardo e Edições Afrontamento, 2003.
 Dos Santos, Theotonio. Socialismo o fascismo. El nuevo carácter de la
dependencia y el dilema latinoamericano. México, D.F.: Edicol, 1978.
 Ferreira, Carlos Serrano. O ódio e a classe média. 2016. Disponível em:
https://www.brasil247.com/pt/colunistas/geral/271244/O-%C3%B3dio-e-a-classe-m%C3%A9dia.htm.
 Mandel, Ernest. Sobre o fascismo. Lisboa: Antídoto, 1976.
 Poulantzas, Nicos. Poder político y clases sociales en el Estado capitalista.
México, D.F.: Siglo XXI, 2007.
 Schacht, Hjalmar. Setenta e seis anos de minha vida. São Paulo: Editora 34,
1999.
 Villaverde Cabral, Manuel. O fascismo português em perspectiva comparada.
Lisboa: A regra do Jogo Edições, 1982.
O original encontra-se em:
http://www.lehc.com.br/texto-para-discussao-no16-porque-o-fascismo-cresce-no-brasil-por-carlos-serrano-ferreira/.

In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/porque-cresce-o-fascismo-no-brasil/
25/10/2018

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