quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Ganância, impunidade e pobreza sustenta escravidão


Ganância, impunidade e pobreza sustenta escravidão, diz especialista


Da IHU On-Line

A possível aprovação do Projeto de Lei 432/2013, que regulará a PEC57A,
conhecida como a PEC do trabalho escravo, prevista para quarta-feira, tem gerado
polêmica entre as entidades que defendem a Proposta de Emenda à Constituição. De
acordo com o jornalista Leonardo Sakamoto, há um equívoco no PL 432/2013, de
autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR).

“Segundo tal proposta, o confisco de terras se daria simplesmente por conta de
parte dos elementos que constituem o trabalho escravo, ou seja, cerceamento de
liberdade e trabalho forçado. Mas a proposta ignoraria outros elementos que
estão previstos na definição de trabalho escravo no Brasil: a dignidade do
trabalhador, as condições degradantes de trabalho e a jornada exaustiva”,
explica, em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.

Sakamoto esclarece que “a bancada ruralista nunca gostou do conceito de trabalho
escravo, especialmente no que se refere à questão da dignidade do trabalhador.
Uma vez mudando a regulamentação para este PL, a bancada irá utilizar esse
conceito aprovado para a regulamentação como justificativa para mudar o conceito
geral do trabalho escravo no Brasil. Por isso ela é preocupante: pelo que causa
num primeiro momento e pelo que pode vir a causar em um segundo momento”. E
acrescenta: “A grande discussão é como fazer a aprovação da regulamentação sem
voltar atrás nesse conceito, utilizando um conceito que já está previsto na
legislação”.

Leonardo Sakamoto é jornalista graduado pela Universidade de São Paulo - USP,
onde também realizou mestrado e doutorado em Ciência Política. É coordenador da
ONG Repórter Brasil e representante na Comissão Nacional para a Erradicação do
Trabalho Escravo - Conatrae. Também escreveu Trabalho escravo no Brasil do
Século XXI (Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2006).

Em que medida a aprovação do Projeto de Lei do Senado (PLS 432/2013) regularia a
PEC57A?

A ideia do projeto é regulamentar a PEC57A/99. A maioria das emendas
constitucionais precisa de um projeto e de um regulamento que digam como ela vai
funcionar. Então, um projeto de lei já era previsto, porque sem PL a PEC não
funciona. O problema não é a regulamentação existir, o problema é o jeito como
ela foi estruturada. Tal estruturação pode gerar um retrocesso no combate ao
trabalho escravo.

A discussão é referente ao jeito como o senador Romero Jucá – que ficou como
relator da comissão mista formada para discutir a regulamentação da proposta da
emenda constitucional 57A/99 – colocou a discussão. Segundo tal proposta, o
confisco de terras se daria simplesmente por conta de parte dos elementos que
constituem o trabalho escravo, ou seja, cerceamento de liberdade e trabalho
forçado.
Mas a proposta ignora outros elementos que estão previstos na definição de
trabalho escravo no Brasil: a dignidade do trabalhador, as condições degradantes
de trabalho e a jornada exaustiva. Então, não só a Comissão Pastoral da Terra -
CPT, mas a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura - CONTAG e
outras dezenas de Instituições e entidades da sociedade civil estão apontando
que, do jeito que a proposta de regulamentação está, considera apenas os
elementos ligados à liberdade do trabalhador e ignora os elementos relacionados
à dignidade. Portanto, a PEC pela qual se lutou tanto desde 1995 poderá ser um
grande retrocesso.

Como o PL redefine o conceito de trabalho escravo previsto no Código Penal?

A regulamentação, para efeito dessa lei, considera metade do artigo 149 do
Código Penal, que define o que é trabalho escravo. O artigo 149 do Código Penal
define trabalho escravo a partir de quatro elementos definidores. A
regulamentação proposta pelo senador Romero Jucá considera apenas os dois
primeiros elementos e ignora os outros dois. Isso muda a concepção para trabalho
escravo no Brasil? Não, não muda. O que muda é o preceito da PEC.

A bancada ruralista nunca gostou do conceito de trabalho escravo, especialmente
no que se refere à questão da dignidade do trabalhador. Então, uma vez mudando a
regulamentação para este PL, a bancada irá utilizar esse conceito aprovado para
a regulamentação como justificativa para mudar o conceito geral do trabalho
escravo no Brasil. Por isso ela é preocupante: pelo que causa num primeiro
momento, e pelo que pode vir a causar em um segundo momento.

Esta PEC57A está tramitando no Congresso há quase 15 anos. Que mudanças foram
feitas na proposta desde então?

Em 1995, a PEC foi apresentada no Senado pelo Deputado Paulo Rocha. Aí o projeto
tramitou na Câmara, mas sem muito sucesso, até que foi proposto um projeto muito
semelhante no Senado. Esse projeto tramitou e foi aprovado em dois turnos no
Senado na década passada, então voltou para a Câmera dos Deputados para que
fosse votado em dois turnos e aprovado. Contudo, o texto ficou parado.

Em 28 de janeiro de 2004 ocorreu o que ficou conhecido como a chacina de Unaí,
quando quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego foram mortos em
uma fiscalização de rotina no Noroeste de Minas Gerais. O caso de Unaí, que teve
repercussão nacional e internacional, serviu para forçar o trâmite da PEC.

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Então, ela foi aprovada, na Câmera, em primeiro turno, e sofreu uma modificação.
Antes, era previsto apenas o confisco dos imóveis rurais e sua destinação para
reforma agrária, entretanto, foi acrescentada a destinação de imóveis urbanos
para programas de moradia popular. De agosto de 2004, quando foi aprovada, até
maio de 2012, a PEC ficou transitando na Câmara.
Em 2012 finalmente foi aprovada em segundo turno na Câmara e voltou para o
Senado. Nesse retorno ao Senado, ficou combinado que seria criada uma comissão
mista para discutir um projeto de regulamentação da PEC para que, no momento em
que ela fosse aprovada, tivesse um projeto para regulamentá-la.

Os ruralistas começaram a fazer jogo de palavras, começaram a falar que tinha
sido combinado discutir o conceito de trabalho escravo, o que não é verdade.
Também queriam aprovar a regulamentação antes de aprovar a PEC, o que
tecnicamente é impossível, porque não se pode regulamentar algo que não existe.
Então, foi criado o PL da regulamentação, o qual está previsto para ser votado
no Senado Federal juntamente com a PEC do trabalho escravo, na próxima
quarta-feira.

Tentou-se, na semana passada, no Senado, colocar a votação da regulamentação
antes da PEC. Muitos senadores se insurgiram, acharam isso um absurdo e,
portanto, a regulamentação será votada depois da PEC.
O ponto é que muitos senadores já propuseram emendas à proposta de
regulamentação; tem mais de 50 emendas à proposta de regulamentação. Inclusive o
governo federal, junto com sua base, já tem uma proposta de emenda substitutiva
total, que substituiria a sugestão do Romero Jucá por outra regulamentação que
inclua todos os elementos caracterizadores de trabalho escravo.
A grande discussão é como fazer a aprovação da regulamentação sem voltar atrás
nesse conceito, utilizando um conceito que já está previsto na legislação.

Que razões favorecem a continuidade do trabalho escravo no país? O que
caracteriza o trabalho escravo contemporâneo? Quem são os atores envolvidos
nesta prática?

A manutenção do trabalho escravo é consequência de um tripé: ganância,
impunidade e pobreza. O trabalho escravo não é decorrência da maldade do coração
humano, mas é decorrência de um cálculo econômico de cortar custos visando ao
aumento da competitividade.
A impunidade é outro fator que contribui, uma vez que há certeza de que as
pessoas podem usar trabalho escravo e raramente irão para a cadeia. A pobreza, a
falta de oportunidades, a má qualidade de vida faz com que as pessoas acabem
caindo na rede de gatos, fazendeiros, empresários, que, no intuito de cortar
custos, acabam utilizando essa forma de exploração.

O trabalho escravo, gosto de fazer esta analogia, não é uma doença, mas é um
sintoma, é um indicador de que algo não está bem, ou seja, de que há um modelo
de desenvolvimento extremamente excludente, concentrador.
Para combatê-lo é preciso fazer a reforma agrária, gerar empregos, melhorar a
qualidade de vida das pessoas, atuar na melhoria da situação dos trabalhadores
em geral, atuar na formação dos trabalhadores, no desenvolvimento social, punir
efetivamente, aprovar leis que ajudem na punição das pessoas que utilizam o
trabalho escravo.
O Brasil é uma referência para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, é uma
referência para a Organização Internacional do Trabalho, para outros países no
que tange ao combate ao trabalho escravo, mas ainda temos muito a avançar nesta
questão.

Quais são as principais rotas de aliciamento de trabalhadores no Brasil? Há
dados de em quais estados esta atividade é mais recorrente?

Existem rotas internas de Norte a Sul, de Leste a Oeste. O estado que tem o
maior aliciamento de trabalhadores escravizados é o Maranhão, o segundo Estado
com o pior Índice de Desenvolvimento Humano - IDH do Brasil, e com péssimos
índices de renda.
Em contrapartida, o principal estado que utiliza mão de obra escrava é o Pará,
mas nos últimos tempos São Paulo também está despontando como grande mediador de
trabalho escravo, justamente pelo aumento de fiscalizações urbanas no Pará e no
Maranhão.
Há muito trabalho escravo na pecuária, nas siderúrgicas, e em São Paulo tem
trabalho escravo em oficinas de costura, que costuram para grandes marcas, e na
construção civil. Tem uma série de rotas, mas o que importa é que as pessoas
aliciadas saem de áreas pobres para áreas que estão entrando em expansão.

Qual a relevância da Lista Suja do trabalho escravo, atualizada pelo Ministério
do Trabalho e Emprego e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República?

Hoje ela é um dos principais instrumentos brasileiros de combate ao trabalho
escravo. Ela foi criada em 2003 e traz o nome dos empregadores flagrados como
reutilizando mão de obra escrava, e que tiveram direito de se defender em
primeira e em segunda instância administrativa.
Então, a Lista Suja é um instrumento de transparência importantíssimo, que tem
servido aos trabalhadores do Brasil, mas também ao sistema econômico
empresarial, porque os empresários acabam utilizando a lista - apesar do
Ministério do Trabalho não obrigar - no sentido de se precaver, de fazer
gerenciamento de risco, de evitar parcerias com empresas que utilizam trabalho
escravo.

A Lista Suja é reconhecida internacionalmente como um grande instrumento de
combate ao trabalho escravo, e no Brasil ela acabou ajudando muitos
trabalhadores, porque ao cortar produtores que se utilizam desse tipo de
exploração, você está forçando não apenas aquele produtor a se adequar, mas
também todos os produtores que trabalham em volta a seguir a lei e a adotar
critérios responsáveis, como o trato com seus funcionários.

A Cosan, quando entrou na lista, caiu mais de 5% na Bolsa de Valores de São
Paulo. A MRV, que é uma grande construtora, quando entrou na lista, também caiu
na Bolsa de Valores, porque o mercado está se precavendo. Bancos públicos
federais também não emprestam dinheiro para quem está na lista.

Deseja acrescentar algo?

É importante as pessoas acompanharem a atuação dos senadores. As pessoas
esquecem em quem votam. É importante que os cidadãos enviem e-mails para os
senadores cobrando que a PEC do trabalho escravo seja aprovada, que a
regulamentação seja aprovada sem extorsão. Essas ações podem ter um retorno
positivo e isso ajudará muito nesse processo de aprovação da PEC57A.

In
http://www.mst.org.br/node/15436
12/11/2013

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