segunda-feira, 11 de novembro de 2013

o mundo não pode ser um grande supermercado

Política alimentar: o mundo não pode ser um grande supermercado

Por João Pedro Stédile*

Do Vermelho

Entre a população que consegue se alimentar, nos foi imposto uma padronização
dos alimentos. Há quatrocentos anos, antes do advento do capitalismo, os humanos
se alimentavam com mais de 500 espécies diferentes de vegetais. Há cem anos, com
a hegemonia da revolução industrial, reduziu-se para 100 espécies diferentes de
alimentos, que depois da lavoura passavam por processos industriais. E há trinta
anos, depois da hegemonia do capitalismo financeiro em todo o mundo, hoje, a
base de toda alimentação da humanidade está representada em 80% na soja, milho,
arroz, feijão, cevada e mandioca.

O mundo virou um grande supermercado, único. As pessoas, independentemente do
lugar onde moram, se alimentam com a mesma ração básica, fornecida pelas mesmas
empresas, como se fôssemos uma grande pocilga a esperar passivos e dominados a
distribuição da mesma ração diária.

Uma tragédia, escondida todos os dias pela mídia a serviço da classe dominante,
que se locupleta com o banquete de juros, lucros, contas bancárias, champagne,
lagosta. Cada vez mais obesos e desumanizados. Empanturrados de injustiças e
iniquidade. Por que chegamos a essa situação?

Porque o capitalismo, como modo de organizar a produção, a distribuição dos bens
e a vida das pessoas baseada no lucro e na exploração, tomou conta de todo o
planeta. E os alimentos foram reduzidos à mera condição de mercadoria. Quem
tiver dinheiro pode comprar a energia para seguir vivendo. Quem não tiver
dinheiro não pode continuar sobrevivendo.

E para ter dinheiro é preciso vender sua força de trabalho, se tiver quem
compre. Porque, ao redor de 100 empresas agroalimentárias transnacionais (como
Cargill, Monsanto, Dreyfuss, ADM, Syngenta, Bungue, etc.) controlam a maior
parte da produção mundial de fertilizantes, agroquímicos, agrotóxicos, as
agroindústrias e o mercado de venda desses alimentos.

Porque agora, os alimentos são vendidos e especulados em bolsas de valores
internacionais, como se fosse uma matéria-prima qualquer, como minério de ferro,
petróleo, etc. e grandes investidores financeiros se transformam em
proprietários de milhões de toneladas de alimentos, que especulam e aumentam os
preços propositalmente para aumentar seus lucros. Milhões de toneladas de soja,
milho, trigo, arroz, até as safras vindouras e ainda nem plantadas de 2018, ou
seja 5 anos adiante, já foram vendidas. Esses milhões de toneladas de grãos, que
não existem, já têm dono.

A fixação dos preços dos alimentos não segue mais as regras do custo de
produção, somados os meios de produção e a força de trabalho. Agora são
determinados pelo controle oligopólico que as empresas fazem do mercado, e
impõem um mesmo preço para o produto, em todo mundo, e em dólar. E quem tiver um
custo superior a isso, vai à falência, pois não consegue repor seus gastos.

Porque, nessa fase de controle do capital financeiro, fictício, sobre os bens,
que circula no mundo em proporções 5 vezes maiores do que seu equivalente em
produção (255 trilhões de dólares em moeda, para apenas 55 trilhões de dólares
em bens anuais) transformou os bens da natureza, como a terra, água, energia,
minérios, em meras mercadorias sob seu controle. Daí se produziu uma enorme
concentração da propriedade da terra, dos bens da natureza e dos alimentos. E
qual é a solução?

Em primeiro lugar precisamos repactuar em todo o planeta o princípio de que
alimento não pode ser mercadoria. Alimento é a energia da natureza (sol mais
terra, mais água, mais vento) que move os seres humanos, produzidos em harmonia
e parceria com os outros seres vivos que formam a imensa biodiversidade do
planeta. Todos dependemos de todos, nessa sinergia coletiva de sobrevivência e
reprodução. Alimento é um direito de sobrevivência. E portanto, todo ser humano
deve ter acesso a essa energia para se reproduzir como ser humano, de maneira
igualitária e sem nenhuma condicionante.

Os governos têm adotado o conceito de segurança alimentar, para explicar esse
direito, e assim dizer que os governos devem suprir de comida os seus cidadãos.
É um pequeno avanço em relação à subordinação total ao mercado. Mas nós, dos
movimentos sociais, dizemos que o conceito é insuficiente, porque não resolve o
problema nem da produção dos alimentos, nem da distribuição e muito menos do
direito. Porque não basta os governos comprarem comida, ou distribuírem dinheiro
em "bolsas-famílias” para que as pessoas comprem os alimentos. Os alimentos
seguem tratados como mercadorias e dando muito lucro às empresas que fornecem
aos governos. E as pessoas seguem dependentes, subalternas, antes do mercado,
agora dos governos.

Defendemos o conceito de soberania alimentar, que é a necessidade e o direito de
que, em cada território, seja uma vila, um povoado, uma tribo, um assentamento,
um município, um Estado e até um país, cada povo tem o direito e o dever de
produzir seus próprios alimentos. Foi essa prática que garantiu a sobrevivência
da humanidade, mesmo em condições mais difíceis. E está provado biologicamente
que em todas as partes do nosso planeta é possível produzir a energia –
alimentos – para reprodução humana, a partir das condições locais.

A questão fundamental é como garantir a soberania alimentar dos povos. E para
isso devemos defender a necessidade de que em primeiro lugar todos os que
cultivam a terra e produzem os alimentos, os agricultores, camponeses, tenham o
direito à terra e à água. Como um direito de seres humanos. Daí a necessidade da
política de repartição dos bens da natureza (terra, água, energia) entre todos,
no que chamamos de reforma agrária.

Precisamos garantir que haja soberania nacional e popular sobre os principais
bens da natureza. Não podemos submetê-los às regras da propriedade privada e do
lucro. Os bens da natureza não são frutos de trabalho humano. E por isso o
Estado, em nome da sociedade, deve submetê-los a uma função social, coletiva,
sob controle da sociedade.

Precisamos de políticas públicas governamentais que estimulem a prática de
técnicas agrícolas de produção de alimentos, que não sejam predadoras da
natureza, que não usem venenos e que produzam em equilíbrio com a natureza e a
biodiversidade, e em abundância para todos. Essas práticas adequadas é que
chamamos de agroecologia.

Precisamos garantir o direito de que as sementes, as diferentes raças de animais
e seus melhoramentos genéticos feitos pela humanidade, ao longo da história,
sejam acessíveis a todos os agricultores. Não pode haver propriedade privada
sobre sementes e seres vivos, como a atual fase do capitalismo nos impõe, com
suas leis de patentes, transgênicos e mutações genéticas. As sementes são um
patrimônio da humanidade.

Precisamos garantir que em cada local, região, se produzam os alimentos
necessários que a biodiversidade local provê, e assim mantermos os hábitos
alimentares e a cultura local, como uma questão inclusive de saúde pública. Pois
os cientistas, médicos e biólogos nos ensinam que a alimentação dos seres vivos,
para sua reprodução saudável, deve estar em convivência com o habitat e a
energia do próprio local.

Precisamos que os governos garantam a compra de todos os alimentos excedentes
produzidos pelos camponeses e usem o poder do Estado para garantir-lhes uma
renda adequada e ao mesmo tempo a distribuição dos alimentos a todos os
cidadãos.

Precisamos impedir que as empresas transnacionais continuem controlando qualquer
parte do processo de produção dos insumos agrícolas, da produção e distribuição
dos alimentos.

Precisamos desenvolver o beneficiamento dos alimentos (no que se chama de
agroindústria) na forma cooperativa sob controle dos camponeses e trabalhadores.

Precisamos adotar práticas de comércio internacional de alimentos entre os povos
baseadas na solidariedade, na complementariedade e na troca. E não mais no
oligopólio das empresas, dominadas pelo dólar americano.

O Estado precisa desenvolver políticas públicas que garantam o princípio de que
o alimento não é uma mercadoria, é um direito de todos os cidadãos. E as pessoas
só viverão em sociedades democráticas, com seus direitos mínimos assegurados, se
tiverem acesso ao alimento-energia necessário.

O alimento não é mercadoria, é um direito!

*Brasileiro, cidadão do mundo e membro da Vía Campesina e do MST

In
http://www.mst.org.br/node/15428
11/11/2013

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