sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Descobrir o poder da história do povo – e porque hoje ela é temida


por John Pilger

A Inglaterra é dois países. Um é dominado por Londres, o outro permanece
na sua sombra. Quando cheguei da Austrália pela primeira vez, parecia que
ninguém ia ao Norte de Watford e aqueles que haviam emigrado do Norte
esforçavam-se arduamente por mudar suas pronúncias, encobrir suas origens
e aprender os maneirismos e códigos das satisfeitas classes sulistas.
Alguns zombavam da vida que haviam deixado para trás. Estavam a mudar de
classe, ou assim pensavam.

Quando o Daily Mirror enviou-me em reportagem ao Norte, na década de 1960,
meus colegas em Londres divertiram-se com o meu desterro para os
antípodas, o seu equivalente da Sibéria. Na verdade, foi o pior Inverno em
200 anos e eu nunca usara um cachecol ou possuira um casaco. Tente
imaginar o que é aquilo como a mais sombria Leeds e Hull, advertiram.

Era um tempo em que, segundo se dizia, os trabalhadores na Inglaterra
"falavam alto", até mesmo "tomavam o comando". Filmes realistas estavam a
ser rodados e pronúncias que antes não eram bem vindas nos media e em
secções do negócio do entretenimento agora aparentemente eram procuradas,
embora muitas vezes como caricaturas.

Durante aquela primeira viagem ao Norte, quando parei para abastecer de
gasolina, não consegui entender o que disse o homem; dentro de semanas, o
que as pessoas diziam parecia-me perfeitamente claro. Eles eram uma outra
nação com uma história diferente, diferentes lealdades, humor diferente,
mesmo valores diferentes. No cerne disto estava a política de classe.
Transpondo os Pennines [1] , o Império vinha abaixo. As paixões imperiais
do Sul mal se manifestavam. Em Merseyside e Tyneside, excepto entre os
notáveis habituais, ninguém se importava com a realeza. Havia o
um-por-todos-e-todos-por-um de uma sociedade da classe trabalhadora – a
menos, como se tornou penosamente claro em anos posteriores – que
acontecesse você ser negro ou mulato. Aquela solidariedade era, para mim,
a notícia, como se fosse o capítulo em falta no património político da
Inglaterra, uma história do povo dos tempos modernos, omitida por Thatcher
e Blair e ainda temida pelas suas repercussões.

Eu já havia vislumbrado o poder desta solidariedade no lugar onde
cresceram meus pais e conhecia-a enquanto rapaz: a região mineira do
Hunter Valley, no Novo País de Gales [2] . Aqui, todos os mineiros do
carvão haviam sido despedidos de Yorkshire, Tyneside e Durham.
"Observe-os, eles são comunistas", ouvi alguém dizer. Eles eram
combatentes pela decência da classe trabalhadora: pagamento adequado,
segurança e solidariedade. Os galeses eram iguais. Traziam consigo os
sofrimentos físicos e mentais e a raiva daqueles que haviam
industrializado o mundo e ganhavam pouco excepto a perdurável
solidariedade de uns com os outros.

O Mirror publicou minhas reportagens de vidas de trabalhadores: mineiros a
trabalharem em poços de menos de um metro, trabalhadores do aço no calor
inimaginável. Eu encontrava uma rua, virtualmente qualquer rua, e batia às
portas. O que me intrigava então era que tal calor humano e auto-domínio
pudessem sobreviver no trabalho monótono das cidades nortistas. Além
disso, a grande tradição radical de resistência no Norte – desde os
trabalhadores do algodão do século XIX até a Grande Greve dos Mineiros de
1984-85 – sempre ameaçou o jogo que em Londres é conhecido como "o
consenso".

Isto foi o arranjo feito às escondidas entre os governos Trabalhista e
Conservador e os cinco por cento que possuíam metade da riqueza de todo o
Reino Unidos. O deputado trabalhista que se tornou homem dos media, Brian
Walden, descreveu como isto funcionou. "Os das poltronas da frente [no
Parlamento] gostavam uns dos outros e não gostavam dos seus pares nas
poltronas de trás", escreveu ele. "Nós éramos filhos do famoso consenso...
ir da oposição para o governo fazia pouca diferença, pois acreditávamos
nas mesmas coisas".

Meu segundo filme para a televisão, feito para a Granada TV em Manchester,
chamou-se "Conversações com um trabalhador". Era a história de Jack
Walker, trabalhador do tingimento de Keighley, no Yorkshire, cujo trabalho
era monótono, sujo e maléfico para a sua saúde, mas ele daí retirava um
orgulho em "fazer isto bem". Jack acreditava apaixonadamente que o povo
trabalhador deveria permanecer unido. Que a um sindicalista eloquente era
permitido exprimir seus pontos de vista sem a intromissão daqueles que
muitas vezes afirmam falar por ele, e preocupar-se em alta voz acerca da
democracia costurada em Westminster [3] ia além dos limites. A expressão
"classe trabalhadora", diziam-me, tinha "implicações políticas" e não
seria aceitável para a Independent Television Authority. Teria de ser
mudada para "património dos trabalhadores" ("working heritage"). A seguir
havia o problema da palavra "o povo". Isto era uma "expressão marxista" e
também tinha de ser afastada. E o que era este "consenso"? Certamente, a
Grã-Bretanha tinha um vibrante sistema de dois partidos.

Ao ler recentemente que 600 mil residentes na Grande Manchester estavam a
"experimentar os efeitos da pobreza extrema" e que 1,6 milhão estavam a
cair na penúria, recordei-me de como o consenso político ficou imutável.
Dirigido agora pela classe sulista dos proprietários de terra
(squirearchy) de David Cameron, George Osborne e os seus colegas etonianos
[4] , a única mudança é a ascensão da classe administradora de
corporações, exemplificada pelo apoio de Ed Miliband à "austeridade" – o
novo jargão para a pobreza imposta.

Na Clara Street, em Newcastle-upon-Tyne, no escuro invernal da madrugada,
andei colina abaixo com pessoas que trabalhavam mais de 60 horas por
semana por uma ninharia. Eles descreveram seus "ganhos" como o Serviço de
Saúde. Tinham visto apenas um político na rua, um liberal que veio, afixou
cartazes e disse algo inaudível do seu Land Rover e apressou-se a ir
embora. A cantilena de Westminster era então "pagar nossas despesas como
nação" e "produtividade". Hoje, seus lugares de trabalho e sua protecção
sindical, sempre ténue, foram-se. "O que está errado", disse-me um homem
na Clara Street, "é do que os políticos não querem mais falar. Os governos
não se importam de como vivemos, porque não somos parte do seu país".

28/Novembro/2013
NT
[1] Pennines: cadeia de montanhas na Inglaterra.
[2] New South Wales: distrito no Sudeste da Austrália.
[3] Westminster: bairro onde está o Parlamento e o palácio da rainha.
[4] Etonians: os que frequentaram o Eton College, da elite britânica.

O original encontra-se em New Statesman e em johnpilger.com/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

04/Dez/13

http://www.resistir.info/pilger/pilger_28nov13.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário