segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Um retrato do trabalho precário no Brasil


O sociólogo Ruy Braga fala das condições de trabalho no setor de telemarketing,
área que ele vem pesquisando em detalhes. Segundo ele, se somarmos os call
centers terceirizados e próprios, o Brasil deve fechar o ano com quase 1 milhão
e 700 mil trabalhadores nesse setor

Antônio David,

“O precariado é composto por aquele setor da classe trabalhadora permanentemente
pressionado pela intensifi cação da exploração econômica e pela ameaça da
exclusão social”. Essa caracterização é do sociólogo Ruy Braga, especialista em
sociologia do trabalho e autor do livro A política do precariado. Do populismo à
hegemonia lulista (Boitempo, 2012).Professor da USP, com pós-doutorado pela
Universidade da Califórnia, Ruy Braga concedeu entrevista exclusiva ao Brasil de
Fato.
Nela, o sociólogo fala das condições de trabalho do precariado brasileiro no
setor de telemarketing, área que ele vem pesquisando em detalhes. Face às
estratégias de recrutamento das empresas, que procuram subordinar os
trabalhadores ao despotismo das gerências, Braga alerta: “o feitiço está virando
contra o feiticeiro e uma experiência coletivamente compartilhada de
discriminação racial ou por orientação sexual, além das lições retiradas da
relação com o despotismo gerencial, empurram os teleoperadores na direção da
auto-organização nos locais de trabalho e dos sindicatos que atuam no setor”.
Brasil de Fato – Seu último trabalho de fôlego é o livro A Política do
Precariado. Gostaria de pedir para que você caracterizasse o precariado
brasileiro.
Ruy Braga – Trata-se, antes de tudo, de uma tentativa de atualização da
categoria de superpopulação relativa desenvolvida por Marx no capítulo 23 do
Livro I de O Capital à luz das características próprias à reprodução das
relações capitalistas de produção em países da semi-periferia do sistema
mundial. O precariado é o proletariado precarizado, ou seja, um grupo formado
por trabalhadores que, pelo fato de não possuírem qualifi cações especiais,
entram e saem muito rapidamente do mercado de trabalho. Além disso, devemos
acrescentar os trabalhadores jovens à procura do primeiro emprego, indivíduos
que estão na informalidade e desejam alcançar o emprego formal, e trabalhadores
submetidos ao manejo predatório do trabalho. O precariado é composto por aquele
setor da classe trabalhadora permanentemente pressionado pela intensifi cação da
exploração econômica e pela ameaça da exclusão social. Eu retirei do conceito de
proletariado precarizado os setores qualifi cados da classe trabalhadora, os
grupos pauperizados e o chamado lumpemproletariado por entender que aquilo que
caracteriza a reprodução contraditória das relações de produção capitalistas no
Brasil é menos a existência de uma massa de indivíduos pauperizados e rejeitados
pelo mercado de trabalho por invalidez, velhice ou que praticam ações ilícitas
para sobreviver, e mais a ampliação dessa massa formada
por trabalhadores jovens, desqualificados ou semiqualifi cados, subrremunerados
e inseridos em condições degradantes de trabalho.
O que diferencia o precariado do subproletariado, sobre o qual o cientista
político André Singer escreveu no livro Os Sentidos do Lulismo? Que ocupações
seriam típicas de cada fração?
O professor André Singer caracteriza o subproletariado como um amálgama das
frações pauperizada e estagnada da superpopulação relativa, em especial aqueles
que dependem do programa Bolsa Família e que se concentram nos bolsões de
miséria no interior do país ou aqueles inseridos em condições tão degradantes e
sub-remuneradas que se reproduzem em condições subnormais, como os trabalhadores
domésticos, por exemplo. Como disse, retirei a massa pauperizada e o
lumpemproletariado do conceito de precariado e concentrei-me nas frações “fl
utuante”, isto é, os que entram e saem muito rapidamente do mercado de trabalho
atraídos e repelidos pelas empresas conforme os ciclos econômicos, além da
população “latente”, ou seja, aqueles trabalhadores jovens à procura de um
primeiro emprego e os que estão transitando da informalidade para a formalidade.
Assim como André Singer, também incorporo a fração “estagnada”, no entanto,
enfatizo sua passagem para a população flutuante. Para simplificar, enquanto
André destaca a empregada doméstica, eu destaco a fi lha da empregada doméstica
que terminou o ensino secundário e foi contratada pela indústria do call center.
Neste sentido, gostaria de colocar algumas questões referentes à pesquisa que
você fez nos últimos anos, sobre o trabalho no setor de telemarketing. Qual é o
tamanho desse setor?
A indústria brasileira do call center cresce desde meados dos anos de 1990, em
grande medida, por conta do avanço do ciclo das terceirizações empresariais
associado ao processo de privatizações da era FHC. Já no início dos anos 2000, o
setor do telemarketing já havia se transformado na principal porta de entrada no
mercado formal de trabalho do jovem trabalhador à procura do primeiro emprego.
Uma característica interessante desse setor, desde meados da década de 2000, é
que hoje a região onde o telemarketing mais se expande é a região nordeste do
país. Estimativas realizadas pelos profi ssionais da própria indústria afi rmam
que, muito provavelmente, se somarmos os call centers terceirizados e próprios,
o Brasil deve fechar o ano com quase 1 milhão e 700 mil trabalhadores nesse
setor. Isto faz dos teleoperadores o segundo maior grupo ocupacional do país,
perdendo apenas para os trabalhadores domésticos.
Ao analisar o setor, você diferencia “profi ssão” de “emprego de empreitada”. No
que consiste a diferença?
Na realidade, uma profi ssão supõe certas características em termos de
qualificação, prestígio, estabilidade e remuneração, que, em linhas gerais,
estão ausentes no telemarketing. Uma “profi ssão” implica a existência, em algum
grau, de uma “carreira”, isto é, de possibilidades reais de progresso
ocupacional. O telemarketing é uma atividade que, por suas características
estruturais, bloqueia ou dificulta enormemente a progressão ocupacional, assim
como se trata de um setor que paga muito mal e não exige qualificações
especiais. Como as taxas de rotatividade são muito elevadas na indústria do call
center, entendo ser mais correto falar em uma atividade realizada por meio da
“empreitada”, ou seja, intermitente, terceirizada e precária.
Em seu livro, você mostra que as empresas do setor de telemarketing adotam
estratégias de recrutamento de trabalhadores considerados “problemáticos ou
diferenciados”, “mais sensíveis e pacientes” e com “certa inclinação a
subordinar-se ao despotismo”. Qual é o perfi l dos trabalhadores inseridos nesse
setor e quais são as estratégias que as empresas utilizam para recrutá-los?
A indústria do call center há tempos tem recrutado preferencialmente jovens, não
brancos, mulheres e gays. Trata-se de uma estratégia cuja fi nalidade é promover
um comportamento mais dócil no tocante ao ajuste do trabalhador ao regime de
mobilização permanente do trabalho apoiado em altas taxas de rotatividade, na
estratégia da terceirização, no controle despótico do trabalho e na pressão das
metas sempre mais difíceis de serem alcançadas. Quando o grupo de trabalho é
formado majoritariamente por jovens arrimos de família, por exemplo, ou por
aqueles que historicamente ocupam os postos mais discriminados ou
sub-remunerados do mercado de trabalho brasileiro, como gays e mulheres negras,
a expectativa das empresas é que estes trabalhadores comportem-se de maneira
mais dócil, subordinando- se ao despotismo das gerências. Trata-se de uma
situação instrumentalizada pela indústria do call center e cuja característica
menos visível, porém mais “enraizada” na subjetividade operária, é a reprodução
de um poder simbólico fortemente associado ao reforço da condição de
subalternidade oriunda da discriminação racial, sexual ou da orientação sexual.
No entanto, esta situação tem sido revertida desde 2008, ao menos, quando greves
passaram a eclodir com muita frequência na indústria de call center
protagonizadas por mulheres negras e por grupos discriminados. De certa maneira,
o feitiço está virando contra o feiticeiro e uma experiência coletivamente
compartilhada de discriminação racial ou por orientação sexual, além das lições
retiradas da relação com o despotismo gerencial, empurram os teleoperadores na
direção da auto-organização nos locais de trabalho e dos sindicatos que atuam no
setor.
Então, como se dá o assédio moral no telemarkentig?
O problema do assédio moral está diretamente associado ao problema do manejo
degradante da força de trabalho. Como o setor trabalha por metas e estas tendem
a se tornar cada vez mais duras é muito comum que coordenadores de operação ou
supervisores descontrolemse com os teleoperadores, cobrando-os aos berros. Além
disso, existe um assédio mais dissimulado que se esconde por trás de
brincadeiras, como o nariz de palhaço, o martelinho de plásticos ou a camiseta
de mico, cujos alvos preferenciais são aqueles que não alcançaram as metas. Isso
sem mencionar a humilhação do tempo exíguo do intervalo e as negativas pra ir ao
banheiro etc.
Ao estudar o setor, você conclui que parte dos riscos recai sobre os
trabalhadores. Por que e como?
Por força do despotismo empresarial que vigora no setor, os ajustes anticíclicos
à fl utuações recaem sempre sobre os trabalhadores que são sumariamente
demitidos e percebem sua remuneração variável cair. Ou seja, como não há
praticamente nenhum obstáculo sério à demissão dos teleoperadores, é o trabalho
que assume a maior parte dos riscos do negócio...
Nesse mesmo artigo, você afirma haver uma “tendência de despolitização geral do
mundo do trabalho”. Gostaria que você explicasse no que consiste essa tendência.
Esta tendência é produto da consolidação de um tipo de regime fabril que se
apoia sobre a desconstrução das formas de solidariedade classistas tipicamente
fordistas. Quando o desmanche do grupo operário fordista efetivou-se por meio
das terceirizações, do aumento da concorrência entre os próprios trabalhadores,
das reestruturações da base técnica das companhias, da informatização domeio
ambiente fabril, das privatizações, da crise do sindicalismo militante, do
aumento do desemprego (anos de 1990) etc. Durante os anos FHC, a formação de um
novo proletariado pós-fordista acantonado no setor de serviços e composto por
jovens, mulheres, não brancos etc., representou uma descontinuidade política em
relação à classe trabalhadora do período do nacional-desenvolvimentismo.
No entanto, não devemos exagerar neste argumento, pois, este grupo pós-fordista
está se politizando rapidamente e já alcançou um patamar respeitável em termos
de conquistas sindicais expressas pelo número de greves que ocorrem no país
desde 2008.

In
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22307
21/11/2013

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