terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Rememorando cinco anos de perturbação económica: azia ou ataque de coração?


por Zoltan Zigedy [*]
Quando mercados económicos significativos dos EUA se descontrolaram
durante o Verão e fins de 2008, um temor, mesmo um pânico, apossou-se dos
encarregados de desenvolver e aplicar a política económica. O pensamento
prevalecente – capitalismo desenfreado com confiança quase religiosa em
mecanismos de mercado – parecia estar em retirada irreversível.

O mercado habitacional esfriou, os valores das casas contraíram-se, e a
estrutura financeira construída em torno da propriedade habitacional
começou a entrar em colapso. Na medida em que o mercado de acções caía em
queda livre das alturas anteriores, levado pela implosão das acções de
bancos, os investidores retiravam-se dramaticamente do mercado. O crédito
congelou e o consumo diminuiu. Começou então uma espiral decrescente de
despedimentos colectivos, consumo reduzido, entesouramento de capital e
crescimento retardado, seguida por mais despedimentos, etc, etc.

Com o medo, decisores políticos mexiam-se para encontrar uma resposta à
crise que ameaçava aprofundar-se e propagar-se às mais remotas paragens da
economia global. Com taxas de juro próximas de zero, reconheceram por fim
que a caixa de ferramentas monetarista, em uso desde a administração
Carter, não apresentava resposta.

No fim da administração Bush, líderes bipartidários aprovaram a injecção
de centenas de milhares de milhões de dólares públicos no sistema
financeiro com a esperança de estabilizar o valor de mercado dos bancos
que estava em colapso, um movimento popularmente alcunhado como "bailout"
(salvamento externo).

No princípio da administração Obama, administradores do Partido Democrata
carpinteiraram um outro programa de recuperação que totalizava cerca de
três quartos de um milhão de milhões (trillion) de dólares, um programa
envolvendo uma combinação de cortes fiscais, projectos público-privados de
infraestrutura e alívio directo ampliado. A generalidade dos economistas
encarou este esforço como um programa de "estímulo" destinado a disparar
uma explosão de actividade económica para dar o arranque a um motor
económico enguiçado. Estimativas em dólar dos salvamentos federais e
estímulos federais destinados a ultrapassar a crise ascenderam a valores
tão altos quanto o Produto Interno Bruto de um ano nos anos iniciais após
o início da queda livre. A Reserva Federal continua a fazer uma transfusão
de US$75 mil milhões por mês para as veias da ainda enferma economia dos
EUA.

Má fé

As últimas três décadas do século XX produziram um novo consenso
económico: não meramente do primado do mercado, mas sim da total
governação da vida económica pelo mercado. Acreditou-se que a
regulamentação desestabilizava os mercado e não que o corrigia. A
propriedade pública e os serviços públicos eram vistos como ineficientes e
entraves inadmissíveis às forças do mercado. Tanto a vida pública como a
privada, para além do universo económico, foram sujeitas aos mercados,
medidas pelos mecanismos de mercado e analisadas através das lentes do
pensamento de mercado. Na verdade, a linguagem de mercado (market-speak)
tornou-se a língua franca unificadora de todas as ciências sociais e
humanas nesta era. Com a queda da União Soviética, o capital e seus
processos orientados pelo lucro penetraram todos os cantos do mundo. Só
movimentos independentes, anti-imperialistas, desconfiados do mercado,
como aqueles liderados por Hugo Chavez, Evo Morales e uns tantos outros
obtiveram algum êxito político contra a dominância global sem precedentes
da propriedade privada e dos mecanismos de mercado.

Enquanto o capitalismo na sua forma mais crua e agressiva desfrutava os
seus momentos de triunfo, estavam em actuação forças que minavam aquela
celebração. Aquelas forças estragaram a festa em 2000 sob a forma de um
grave arrefecimento económico, a chamada "Recessão Dot-com" caracterizada
por uma perda de valor no mercado de acções de US$5 milhões de milhões e o
desaparecimento de milhões de empregos. Economistas assombravam-se pela
lentidão com que os empregos estavam a retornar até os EUA e a economia
global serem atingidos em 2008 por outra bofetada ainda mais poderosa.
Claramente, a primeira década do século XXI será recordada como uma época
de crise económica e incerteza, uma perturbação que continua até o dia de
hoje.

Além do custo humano – milhões de empregos perdidos, pobreza, número de
sem abrigos, oportunidades perdidas, destruição de riqueza pessoal – o
século XXI infestado de crise desafiava a ortodoxia prevalecente dos
mercados sem peias e da propriedade privada. Mesmo advogados tão sólidos e
fervorosos daquela ortodoxia, como o Wall Street Journal, The Economist e
The Times foram abalados pela crise, questionando a validade de princípios
económicos clássicos. Nenhum princípio é mais querido e essencial para os
adeptos do livre mercado do que a ideia de que os mesmos são
auto-correctores. Apesar de poder haver desequilíbrios económicos de curto
prazo ou maus tempos nos negócios, os advogados do mercado livre acreditam
que o seu movimento tende sempre ao equilíbrio e à expansão no longo
prazo. Portanto, uma estagnação persistente e de longo prazo, ou declínio,
é considerada virtualmente impossível (com a condição de que não haja
restrições impostas ao mecanismo de mercado).

Assim, quando a era da mais ampla economia global de mercado aberto
experimentou o mais catastrófico colapso desde a Grande Depressão,
levantam-se sérias dúvidas acerca dos princípios fundamentais da ideologia
de mercado. E durante os dias mais negros de 2008 e 2009, um verdadeiro
pânico ideológico abateu-se sobre sabichões e peritos da direita e da
esquerda "respeitável". Alguns reabilitaram um economista fora de moda e
falaram de um "momento Minsky". Liberais proclamaram a morte do
neoliberalismo (a expressão popular para o retorno à respeitabilidade da
teoria económica clássica que começou no fim da década de 1970). E outros
ainda anteviram uma restauração dos intervencionistas teorias económicas
representados por John Maynard Keynes, teorias que guiaram a economia
capitalista através da maior parte do período do pós-guerra. Mesmo os
economistas mais conservadores admitiram que a supervisão do mercado, se
não mesmo a regulamentação, era tanto necessária como desejável.

Contudo, a mudança surgiu. Apesar de mais de cinco anos de declínio e
estagnação, apesar de um contínuo fracasso dos mercados para a
auto-correcção, a ideologia do livre mercado continua a dominar tanto o
pensamento como a política, claramente mais baseada na fé do que na
realidade. Em parte, a resiliência da filosofia do mercado aberto emana da
perspicaz fabricação do medo do endividamento por políticos e traficantes
de dívida das instituições financeiras. Ao levantar o grito estridente da
explosão da dívida e da catástrofe iminente, a atenção desviava-se dos
fracassos dos mercados sem peias e dirigia-se à austeridade governamental
e à redução da dívida maciça.

Diagnóstico?

É evidente que todos os modelos matemáticos vencedores do Prémio Nobel,
concebidos para apreender a actividade económica, fracassaram na previsão
e explicação do crash de 2008. Nenhuma quantidade de fé poderia disfarçar
o fracasso monumental dos mercados não regulamentados e das políticas que
os promoveram. Duas explicações simplistas e conflitantes, agudamente
contrastantes, são avançadas.

Os defensores dos mercados livres, desavergonhadamente e arrogantemente
argumentam que o governo se intrometeu e prejudicou a plena e livre
operação dos mecanismos de mercado, exacerbando portanto o que teria sido
uma correcção penosa mas que seria resolvida rapidamente. Seguindo a
metáfora mencionada no título deste artigo, a azia foi mal diagnosticada,
tratada com cirurgia radical, só para criar uma condição que põe a vida em
perigo.

Naturalmente, isto é uma insensatez dita em proveito próprio.

Seja o que for que possamos saber acerca de mercados, sabemos isto: desde
que o processo de desregulamentação de mercados começou no fim da década
de 1970, as crises têm ocorrido com mais frequencia, com maior amplitude e
com consequências humanas mais drásticas. Antes disso, e durante todo o
período anterior do pós guerra, a intervenção do governo e a
regulamentação tendiam a prevenir períodos maus, moderar o seu nadir e
suavizar os custos humanos. E um vislumbre do período anterior de política
favorável ao mercado – os primeiros anos da Grande Depressão – demonstra a
loucura de simplesmente esperar pela correcção prometida: as coisas só
ficam piores. Assim, tal como agora, a vida demonstrou ser um capataz
duro. Quando mecanismos de mercado realmente dão para o torto, ninguém
pode se dar a luxo de esperar por auto-correcção.

Os oponentes liberais e da esquerda suave ao mercado sem peias apresentam
um argumento diferente. Eles vêem a crise não na ausência de mercados
livres mas sim no fracasso em supervisioná-los e regulamentá-los
adequadamente. Nesta visão, partilhada por quase todos os liberais e a
maior parte da esquerda não comunista, os mercados são mecanismos
económicos fundamentais – essenciais, se quiser – mas melhor pastoreados
por controles do governo que os pilotam para porto seguro quando ameaçam
fugir ao controle.

Portanto, a crise de 2008 teria sido impedida, acreditam eles, se regras e
regulamentos permanecessem em vigor tal como haviam sido anteriormente
concebidos e implementados a fim de proteger a economia dos excessos do
mercado. Se não houvéssemos afrouxado as regras e regulamentos, nunca
teríamos experimentado o desastre de 2008.

Esta visão é história mal contada e análise económica ainda pior.

Se bem que os liberais gostem de acreditar que regulamentações e
instituições geradas pelo New Deal da década de 1930 estabilizaram o
capitalismo e domaram os mercados, a verdade é outra. O maciços gastos de
guerra iniciado algum tempo antes da entrada dos EUA na II Guerra Mundial
resolveram os problemas de crescimento e de excesso de mão-de-obra
associados à longa década de estagnação, recuperação hesitante, recuo e
nova estagnação que assolaram a economia desde 1929.

O capitalismo ganhou novo impulso com a reconstrução do pós guerra. Forças
produtivas foram restauradas onde haviam sido destruídas, renovadas quando
estavam gastas e melhoradas face aos novos desafios. Esta vasta
reestruturação do capitalismo produziu novas oportunidades tanto para o
lucro como para o crescimento. Ao mesmo tempo, a lição do gasto militar
maciço, socializado, público e planeado não foi perdida. Novas ameaças
foram conjuradas, novos temores construídos. A guerra quente na Coreia e a
Guerra-Fria sempre crescente alimentaram uma expansão dos EUA sem
precedentes. Não é inadequado caracterizar esta expansão do pós guerra
como um período de "keynesianismo militar". Por outras palavras, foi uma
era de politicas keynesianas de gastos governamentais planeados e extensos
acoplados a encomendas militares fora do mercado. Na medida em que
transferia uma fatia significativa da economia capitalista para um
comando, um sector extra-mercado, ela assinalou uma nova etapa do
capitalismo monopolista de estado, uma etapa que adoptava algumas das
características do socialismo.

Mas em meados da década de 1960 este "ajustamento" começou a perder a sua
vitalidade. O crescimento do lucro, a força condutora da expansão
capitalista, começou um declínio persistente (para uma ilustração gráfica
desta tendência, ver a página 103 de The Economics of Global Turbulence (
New Left Review, May/June 1998), de Robert Brenner.

A queda da taxa de lucro emparelhou-se à enorme inflação de meados da
década de 1970. As soluções militar-keynesianas para a crise capitalista
estavam gastas, exauridas, demonstrando-se inadequadas para tratar uma
nova expressão da instabilidade do capitalismo. Talvez nada tenha
assinalado mais a bancarrota da ortodoxia (keynesiana) prevalecente do que
a desesperada campanha WIN ( Whip Inflation Now, Bata a inflação agora) da
presidência Gerald Ford, uma tentativa impotente para deter a crise com
determinação em massa.

Ao contrário das afirmações de liberais, sociais-democratas e outros
salvadores do capitalismo voltados para reformas, a resultante mudança na
ortodoxia não foi meramente um golpe político, uma vitória da ideologia
retrógrada, mas ao invés disso um desmanchar das fracassadas políticas
keynesianas da época. Portanto, a "revolução" de Thatcher/Reagan foi
apenas o veículo para um ajustamento dramático da rota do capitalismo a
afastar-se de um paradigma gasto, ineficaz.

Com Paul Volker assumindo a presidência do Federal Reserve e os princípios
da desregulamentação sistemática, a administração Carter plantou as
sementes do abandono das velhas receitas. Volker, com o seu crescimento
sufocante das taxas de juro, assegurou uma recessão que afastaria qualquer
vontade de resistir ao aperto de cinto. Mas foi preciso a eleição de
Ronald Reagan orientado pelo dogma para emular a Margaret Thatcher do
Reino Unidos e utilizar a ocasião para estripar salários e benefícios a
fim de abrir o caminho para o crescimento do lucro.

O custo de devolver a vida à moribunda economia capitalista foi arcado
pela classe trabalhadora. Loucamente, a impassível e complacente liderança
[sindical] confiou na continuação do contrato tácito da Guerra Fria: O
trabalho apoia a campanha anti-comunista e as corporações honram a paz
trabalhista com salários firmes e crescimento de benefícios. Ao invés
disso, o crescimento do lucro foi restaurado pela supressão dos padrões de
vida do trabalho – cortando "custos". Seguiu-se uma odiosa ofensiva
anti-trabalho.

Se bem que a leal oposição insista em retratar a ruptura com a teoria
económica keynesiana como algo novo (habitualmente alcunhado
"neoliberalismo"), ela foi, de facto, uma capitulação à antiga. A
bancarrota da teoria económica burguesa não podia oferecer nada de novo,
nenhuma resposta criativa à crise capitalista; ela só podia abandonar uma
abordagem fracassada e restaurar lucros pelo esmagamento implacável do
mercado de trabalho.

Esta resposta só podia ter êxito devido à extraordinária fraqueza do
movimento trabalhista. Quando a taxa de lucro começou a recuperar, faltou
ao trabalho liderança e vontade para não só assegurar uma fatia dos
aumentos de produtividade, mas mesmo para defender seus ganhos anteriores.


Portanto, o capitalismo adquiriu um segundo fôlego ao recuar do consenso
económico do pós guerra e renegar o implícito tratado de paz com o
trabalho. O crescimento do lucro retornou e o sistema navegou.

Mas o contínuo avanço da desregulamentação e da privatização trouxe
consigo um retorno à anarquia drástica dos mercados. A crise das Caixas
Económicas (Savings e Loan) das décadas de 1980 e 1990 e o crash do
mercado de acções de Outubro de 1987 foram os arautos do que estava para
vir e reflexos de instabilidade mais profunda.

Com a queda União Soviética e do socialismo na Europa do Leste, foi
entregue um enorme novo mercado ao sistema capitalista global, um mercado
que mais uma vez revigorou as oportunidades para acumulação de capital e
expandiu lucros. Milhões de trabalhadores educados, recém "libertos"
(libertos da estabilidade de emprego, de condições de trabalho seguros, de
protecção legal e de organização) juntaram-se aos trabalhadores com
salários reduzidos e mal pagos do resto do mundo para constituir um vasto
manancial de trabalho barato. Portanto, uma guerra de classe imensa e
unilateral e a integração de milhões de trabalhadores com salários
deprimidos estabeleceram o capitalismo num saudável caminho de recuperação
do lucro, colocando a agora impotente ortodoxia keynesiana no espelho
retrovisor. Poucos imaginariam que esta viagem duraria menos de duas
décadas, até o capitalismo deparar-se outra vez com crises graves.

Crescimento económico significativo num período de trabalho fraco
necessariamente produz desigualdade galopante. Com políticas fiscais
amistosas para com as corporações e a riqueza, muitos mecanismos de
redistribuição do governo são exauridos ou desmantelados. O fluxo de
riqueza acelera-se para as corporações e os super-ricos e afasta-se
daqueles que trabalham para viver. Os cofres da classe investidora incham
com dinheiro ansioso por um retorno significativo sobre o investimento.
Quando o processo de acumulação de capital se intensifica, cada vez menos
seguro, surgem oportunidades de investimento produtivo de alto rendimento
para absorver a vasta acumulação de riqueza sempre em expansão
concentradas nas mãos de uma pequena minoria.

Num capitalismo maduro, novas e mais arriscadas avenidas – tipicamente
removidas do sector produtivo – se abrem para oferecer um lar para o
capital e prometendo um retorno. Banqueiros e outros "magos" financeiros
competem ferozmente para construir dispositivos geradores de lucro que
prometem cada vez mais. Estes instrumentos crescem gradualmente a partir
da actividade produtiva. Além disso, seus "lucros" resultantes são mais
uma vez removidos do valor real, tangível, material. Ao invés, eles
existem virtualmente como capital "hipotético", ou capital
"contra-factual", ou capital "direccionado ao futuro", ou capital
"contingente". Alguns marxistas apressam-se a etiquetar este produto da
especulação como "fictício", mas isso obscurece a sua origem fundamental
em actos exploradores no processo mercadoria-produção. É esta expansão de
capital promitente que alimenta volta após volta o investimento
especulativo lubrificado com dívida cada vez maior.

Abundam metáforas do fim de jogo deste processo: "bolhas", "castelo de
cartas", etc. Mas em última instância a causa da crise é o fracasso em
satisfazer a infindável busca do retorno. Por outras palavras, a causa da
crise reside no processo de acumulação intrínseco ao capitalismo e à
incapacidade para sustentar um retorno viável ao sempre crescente mar de
capital e capital promitente. Os capitalistas medem o seu êxito pelo modo
como os seus recursos são plena e efectivamente postos em uso para gerar
novos excedentes. Por outras palavras, o mais profundo e o mais
impressionante sendo da "taxa de lucro". É o critério que guia o
capitalista – uma taxa de lucro efectiva com base nos activos acumulados.
Além das medidas oficiais e forçadas das taxas de lucro, o crescimento do
capital acumulado, ponderado contra as oportunidades de investimento
disponível, conduz o investimento futuro e determina o curso da actividade
económica.

Em 1999, a lucratividade do sector tecnológico caiu precipitadamente em
resultado do investimento irrealizável de milhares de milhões de dólares à
procura de rendimento nas companhias marginais Dot.com e de serviços
internet. Em resposta ao problema da super-acumulação, investir nas
fantasias de jovens génios de 20 anos demonstrou-se ser tão irracional
quanto observadores lúcidos pensam ser. Seguiu-se o crash.

E mais uma vez os dias estonteantes de 2005, a comprar pacotes de títulos
bizarros com os destroços de hipotecas marotas parecia um meio de
encontrar um lar para vastas somas de capital "improdutivo". Afinal de
contas, o capital não pode permanecer ocioso; tem de encontrar um meio
para reproduzir-se. Mas o que fazer com os rendimentos da revenda de
títulos conduzidos pela procura? Mais do mesmo? Mais risco? Mais dívida? E
repetir?

A porção dos lucros das corporações estado-unidenses "ganha" pelo sector
financeiro cresceu dramaticamente desde 1990 até o crash de 2008,
atingindo aproximadamente os 40% em meados dos anos 2000 e demonstrando a
explosão de veículos de investimento alternativo que ocupava capital
ocioso. É crucial ver uma ligação, uma necessidade evolucionária, entre a
restauração da lucratividade, a intensa acumulação de capital e a
tendência para a lucratividade ser desafiada pela falta de oportunidades
de investimento prometedoras. Não é o capricho de banqueiros ou a
esperteza de empreendedores que conduz este processo, mas o imperativo
lógico do capital para produzir e reproduzir-se.

Alguns comentários e observações

Há outras teorias da crise apresentadas pela esquerda. Uma teoria,
abraçada por muitos Partidos Comunista, sustenta que a crise emerge da
super-produção. Naturalmente, num sentido a super-acumulalação é uma
espécie de super-produção, uma super-produção de capital a que falta um
destino para investimento produtivo. Mas muitos à esquerda entendiam algo
diferente. Eles argumentam que o capitalismo põe mais mercadorias no
mercado do que trabalhadores empobrecidos, mal pagos, podem comprar. Há
duas objecções a isto: uma teórica, uma ideológica.

Primeiro, a evidência mostra que uma queda no consumo ou um aumento na
produção de facto não antecede o declínio económico na nossa era. Se a
super-produção ou o seu primo, o sub-consumo, fossem a causa da retracção
económica de 2008, os dados necessariamente mostrariam algum desvio
anterior dos padrões de produção/consumo. Mas não há nenhum. Ao invés,
verifica-se o inverso: a própria crise provocou um fosso maciço entre a
produção e o consumo, exacerbando-a. A ameaça de oferta excessiva
prolonga-se na enorme pressão deflacionária que agita a economia global.
Apesar do facto de o gasto do consumidor ser uma grande componente da
economia dos EUA, os efeitos da sua estagnação secular ou declínio têm
sido em grande medida atenuados pela expansão do crédito ao consumidor e a
existência, embora ténue, de programas de bem-estar social como o seguro
de desemprego.

Segundo, se consumo retardado ou inadequado fosse a causa de crises, então
políticas redistributivas ou políticas fiscais proporcionariam uma solução
simples para retracções, ambas impedem-nas e revertem-nas. Portanto, o
capitalismo podia avançar no seu alegre carrossel com pouco temor de
crise. Certamente esta é a atracção ideológica de explicações de crises
pela super-produção: elas permitem a liberais e sociais-democratas
apregoar sua capacidade para administrar o capitalismo através de
políticas governamentais.

Contudo, eles não podem administrar o capitalismo porque as crises estão
localizadas não na arena da circulação (compatibilizando produção e
consumo), mas sim no mecanismo gerador de lucro do capitalismo, a sua
própria alma.

Devido à centralidade do lucro, a explicação da super-acumulação tem uma
afinidade com outra teoria da crise: o argumento de Marx para a tendência
de queda da taxa de lucro. De facto, pode ser encarada como uma versão
contemporânea do argumento sem as suposições do século XIX.

Felizmente, muitos comentadores de hoje revisitaram a teoria esboçada no
Volume III de O Capital, descobrindo uma relevância ignorada ao longo da
maior parte do século XX. Somente um punhado de admiradores do trabalho de
Marx manteve a teoria viva naquela era, autores como Henryk Grossman, John
Strachey e Paul Mattick. Infelizmente, admiradores de hoje, como os
antecessores acima mencionados, partilham o viés acriticamente ao tomar o
esquema de Marx como o Santo Graal. Na maior parte das vezes, Marx usava
formalismo muito ocasional como ferramenta de exposição e não como os
axiomas de um sistema formal. Aqueles treinados na análise económica
moderna são inclinados a saltar sobre estas fórmulas com um fervor de
discípulo. Eles debatem a resistência de um modelo que descreve a economia
global como uma colecção de empresas a devorarem capital constante a uma
taxa maior do que o emprego de trabalho e mecanicamente deprimindo a taxa
de lucro. Isto é confundir a simplificada exposição de Marx com explicação
robusta. Pode-se aprender muito da exposição de Marx sem que se faça disto
um exercício escolástico.

Entre os nossos amigos de esquerda, tornou-se popular falar da crise e
desta era como de "financiarização". Isto é sobretudo inútil. Na verdade,
a crise tem muito a ver com o sector financeiro; este desempenhou e
desempenha um papel maior na economia global, especialmente nos EUA e
Reino Unido. Mas recorrer a um novo nome nada faz para expor ou explicar o
papel da finança. Tal como "globalização" num momento anterior, a palavra
"financiarização" pode ser emocionante, elegante e conveniente, mas
normalmente esconde os mecanismos em funcionamento. É uma palavra
preguiçosa.





Há um ponto nesta algo extensa, mas apenas esboçada, jornada ao longo do
capitalismo do pós guerra. Esperançosamente, a jornada demonstra ou sugere
fortemente que os eventos do passado económico não foram nem aleatórios
nem simplesmente conduzidos pela política. Eles foram, ao invés, o produto
da lógica interna do capitalismo; eles brotaram de barreiras e de
ajustamentos na trajectória do capitalismo. Quando direcções se mostraram
infrutíferas, novas direcções foram tomadas. Se bem que não seja possível
descartar novas manobras que tratem o problema inerente da
super-acumulação, o problema não irá embora. Ele retornará para assombrar
qualquer tentativa que presuma conquistá-lo de uma vez por todas. E se o
capitalismo carrega este gene, então seria sábio procurar um melhor
sistema económico que prometa tanto maior estabilidade como maior justiça
social. Naturalmente, encontrar essa alternativa começa por revisitar a
ideia com duas centenas de anos há muito favorecida pelo movimento da
classe trabalhadora: o socialismo. Ligado a esse projecto está a tarefa de
reconstruir o movimento, a organização política necessária para alcançar o
socialismo.

Como as coisas estão no mundo de hoje, há apenas duas magras opções no
menu habitual: uma, é salvar e manter o capitalismo com os sacrifícios dos
trabalhadores e de outros, a outra é salvar e manter o capitalismo com os
sacrifícios dos trabalhadores e um simbólico sacrifício de uma "quota
justa" por parte das corporações e dos ricos. Nenhuma delas é muito
animadora.

A primeira opção é baseada na papa fina da teoria económica do
"gotejamento" ("trickle down") e na visão para embalar crianças de que
"uma subida da maré eleva todos os barcos". É a receita dos dois
principais partidos políticos dos EUA, do Abe do Japão, dos partidos
europeus do centro e dos Trabalhistas do Reino Unidos.

A segunda opção também promete salvar o capitalismo, mas através de uma
falsa distribuição justa da adversidade por todas as classes. Esta é a
rota apresentada pela maior parte dos partidos da esquerda europeia e
mesmo por alguns Partidos Comunistas.

Mas um sistema – o capitalismo – que está geneticamente propenso à extrema
distribuição de riqueza e à crise persistente não contribui para uma
refeição apetitosa. Precisamos, ao invés, dispensar programas que prometem
melhor gestão do capitalismo, como os comunistas gregos (KKE) gostam de
dizer. Isso é para outros que estão em paz com o capitalismo ou subestimam
seus fracassos inevitáveis.

A única resposta para a insuficiência cardíaca do capitalismo é mudar a
dieta e colocar o socialismo no menu.

23/Dezembro/2013
Do mesmo autor:

Nuvens tempestuosas?
A tirania dos títulos

[*] Economista, zoltanzigedy@gmail.com

O original encontra-se em
zzs-blg.blogspot.pt/2013/12/looking-back-on-five-years-of-economic.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .


31/Dez/13

http://www.resistir.info/crise/crise_23dez13.html#asterisco

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