terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Crescimento e desenvolvimento


por Daniel Vaz de Carvalho

Dizer que os interesses do capital e os interesses dos
trabalhadores são os mesmos, equivale simplesmente a dizer que o
capital e o trabalho assalariado são dois aspetos de uma mesma
relação. E um se acha condicionado pelo outro, como o usurário pelo
devedor, e vice-versa.
C. Marx, Trabalho assalariado e capital

1- A FALÁCIA DO "CRESCIMENTO E EMPREGO"

O governo e os corifeus da tragédia neoliberal exultam apregoando os "bons
indicadores" do crescimento e do emprego. Mas a propaganda não passa de
uma bela embalagem sem nada lá dentro. O PIB regride relativamente a 2012,
cai para níveis de 2000 (há 14 anos!); o desemprego é mascarado com a
emigração e o subemprego – trabalho parcial, por exemplo, de 1 a 10 horas
semanais.

Em "Utopía 14", Kurt Vonnegut descreveu uma sociedade de alto nível
tecnológico, dominada por uma camada desfrutando de elevados padrões de
vida, face à grande maioria marginalizada e vivendo nos limites da
subsistência. Admitindo por hipótese que alguma estabilidade económica e
social fosse possível nesta fase do capitalismo, capitalismo senil, as
políticas atuais configuram como objetivo este modelo de sociedade: uma
elite tecnocrática, face a um proletariado na condição de "servo da
gleba". Diga-se que o livro termina com uma revolução.

No Portugal do salazarismo houve crescimento e emprego associado à
repressão, à miséria, a maior atraso relativo. [1] Na América Latina, em
países submetidos aos critérios do FMI e do neoliberalismo, impostos por
sangrentas ditaduras, também houve pelo menos de início, crescimento e
emprego com aumento da pobreza e da dependência externa.

Nos EUA, em dois anos da dita "recuperação económica", os 7% mais ricos
aumentaram em 27% a sua riqueza, mas para os restantes 93% caiu 4%. O
ganho acionista de 50% entre 2011 e 2013, à custa dos milhões pagos pelos
contribuintes, foi na sua grande maioria para as mãos dos 5% mais ricos.
[2] Porém, o sistema de saúde é para quem pode pagar e segundo a "Feeding
America" uma em cada seis pessoas passa fome.

Os instrumentos de gestão do Estado que democraticamente poderiam servir
para o desenvolvimento são eliminados e a sociedade entregue aos
"estabilizadores automáticos" dos "mercados", isto é, ao domínio da
especulação e dos monopólios".

O período pós-guerra constituiu de facto uma fase de desenvolvimento
económico nos principais países capitalistas, não se podendo ignorar que
muito disto se devia a relações coloniais e neocoloniais com países de
capitalismo dependente. Nessa altura o peso do Estado na economia atingia
50% ou mais do PIB e nos países mais avançados quase 60%; a FBCF por parte
do Estado e o sector empresarial do Estado eram relevantes e considerados
condição do desenvolvimento económico e social.

Tratava-se de mais uma das máscaras do estado capitalista. [3] A derrota
do nazi-fascismo, em que o grande capital tinha abertamente colaborado com
os agressores em muitos países e a luta popular, aliada ao prestígio da
URSS e das teses marxistas, obrigavam o sector capitalista a cedências
para conservarem o essencial do seu poder.

De facto, como dizem Marx e Engels no "Manifesto", em capitalismo "a
situação material do operário pode melhorar, mas à custa da sua situação
social" e do seu empobrecimento relativo.

O neoliberalismo pode, transitoriamente, entre as crises, permitir algum
crescimento, mas sem desenvolvimento. O desenvolvimento visa a máxima
satisfação das necessidades sociais e a sustentabilidade ecológica.
Necessidades sociais que serão tanto mais e melhor contempladas quanto
menor for a desigualdade na repartição do rendimento e o aumento da
produtividade social.

Numa economia sem desenvolvimento, como a neoliberal, o social é
considerado ineficiente visto que não produz lucro visível a curto prazo e
não reverte diretamente para o sector capitalista. As despesas do Estado
só são consideradas eficientes se o sector capitalista tiver nelas
interesse direto. Os apoios sociais, para além da retórica de propaganda,
só não são totalmente retirados com receio das reações da opinião pública.


Numa visão de futuro para o planeta e no interesse de todos os povos, os
países mais ricos e de alto nível tecnológico deveriam concentrar os seus
esforços não na corrida armamentista e no "crescimento" sobretudo à custa
dos mais pobres, mas no desenvolvimento de tecnologias que reduzissem os
impactos ambientais e na melhoria das condições económicas e sociais de
todos os povos. Mas esta evidência e exigência para a própria
sobrevivência da humanidade, mais que uma utopia, trata-se de uma
impossibilidade teórica em termos capitalistas, por muito que tal custe a
ser reconhecido pela social-democracia/socialismo reformista.

2 -OS MITOS DO CRESCIMENTO

A decadência do sistema capitalista nesta fase neoliberal, derradeiro
recurso para a queda da taxa de lucro, torna-se evidente ao verificarmos
que apenas se fundamenta em mitos, negados pela realidade objetiva. A
existência social destes mitos fica apenas a dever-se a intensa propaganda
e à deliquescência ideológica da social-democracia/socialismo reformista.
Destacamos alguns, sem a pretensão de análise exaustiva que pode ser
encontrada em vários textos deste espaço.

O mito dos "mercados" corresponde à financeirização da economia, à sua
entrega à especulação e usura, apoiada em paraísos fiscais, percorrida
pela corrupção e pela fraude, suportada pelos bancos centrais (BCE, FED,
etc.). Os "mercados" servem de arma de agressão social e opressão contra
os povos por eles dominados, concretizada na chantagem dos juros e nos
planos de austeridade, com ou sem troikas.

A eficiência capitalista , erroneamente dita privada, é outro mito. As
grandes empresas mundiais são monstros burocráticos que só sobrevivem
devido ao poder militar do imperialismo, suas agências económicas (FMI,
BM, OMC, CE, BCE) e serviços conspirativos (CIA, agencias e ONG sob seu
controlo, outros serviços secretos).

As grandes empresas não correm riscos de depender do mercado, por isso
deslocam-se para áreas de lucro garantido – na energia, telecomunicações,
distribuição alimentar, imobiliário e turismo de luxo. Tudo muito longe
dos riscos que teoricamente o capital corre e que servem de argumento para
os privilégios obtidos.

O grande capital não vai à falência, as empresas podem desaparecer,
deslocalizar-se, serem absorvidas, vendidas por partes no interesse
exclusivo dos principais acionistas, com indemnizações milionárias para os
gestores Na banca, os governos assumiram a responsabilidade pela
irresponsável gestão financeira, e fazem-na pagar aos trabalhadores. Os
riscos de mercado estão reservados para as MPME.

Aqui radica a decantada eficiência capitalista, que acarreta despedimentos
e degradação do nível de vida dos trabalhadores. O capital permanece
intacto, reage à taxa ROE (taxa de lucro das ações) transforma capital
produtivo em capital fictício.

Se a economia dita de mercado é tão eficiente, então como explicar as
crises, por que não deixam falir os bancos insolventes, porquê a fraude e
a corrupção, a promiscuidade com o dinheiro sujo do crime organizado,
porquê oferecer rendas monopolistas ao grande capital?

Com o álibi do "crescimento e do emprego" são concedidos perdões fiscais,
redução de impostos, benefícios fiscais e "incentivos" ao grande capital,
que o PS apoia e a UGT aplaude. A falsa eficiência destes incentivos,
resgates financeiros e outros processos de drenar a riqueza criada para os
bolsos de uma ínfima minoria, está bem patente nos EUA.

Entre o final de 2007 e meados de 2010 o Fed proporcionou 16 milhões de
milhões de dólares para "resgates" ao sistema bancário e grandes empresas
nos EUA e na UE. Um roubo de US$16 milhões de milhões. É ingénuo esperar
que a minoria responsável por um sistema que para ela funciona bem
democratize a economia e a política. Esta é a tarefa central dos 99%. [4]

O investimento externo é outro mito numa economia sem planeamento e com
livre transferência de capitais e lucros para paraísos fiscais. Tem sido
uma forma das transnacionais absorverem concorrentes (muitas vezes para os
fecharem) num processo de concentração e monopolização em que de qualquer
forma o país perde o controlo sobre os processos de desenvolvimento. As
privatizações têm servido para o grande capital transnacional se alojar em
sectores estratégicos da economia e em monopólios naturais exportando
lucros, depauperando o país.

Um outro aspeto é a subcontratação a empresas que podem ser ou passar a
ser do mesmo grupo, baseada na troca desigual, na sub e sobrefaturação. A
estes subcontratos, embora por vezes consistam na fase mais importante do
processo produtivo, cabe apenas uma percentagem mínima do preço de venda.
Num caso estudado (telemóvel Nokia), esse valor não ia além dos 2%. [5]

A flexibilidade laboral é um argumento a que a
social-democracia/socialismo reformista e o sindicalismo colaboracionista
se agarram para justificar em nome do crescimento e do emprego a redução
de direitos laborais e salários reais. A flexibilidade representa o
trabalhador sem direitos, sem autonomia, sem garantias nem no emprego nem
no desemprego. O objetivo da flexibilidade é baixar salários, mas baixos
salários provocam a estagnação económica. A ausência de "crescimento e
emprego" resulta, sim, da falta de investimento produtivo e de
desenvolvimento económico e social, consequência de uma sociedade
hipertrofiada pelo grande capital monopolista, pela usura e pela
especulação.

A ilusão tecnocrática é um outro mito pelo qual os problemas e
contradições do capitalismo podem ser resolvidos pela tecnologia. Não é a
tecnologia que define ou muda o padrão e o modo de funcionamento de uma
sociedade – refira-se por exemplo, o nazismo ou as condições sociais nos
EUA – mas sim as leis fundamentais da economia política que vigoram nessa
sociedade.

O consumismo é outra ilusão propagandeada, a "modernidade" com
precariedade, estagnação ou redução dos salários reais e consequente
endividamento. Representa uma das formas mais evidentes das contradições
do sistema capitalista, sem dúvida uma das mais perversas, baseada na
alienação da consciência social e ambiental das pessoas. A contradição
entre um crescimento constante, guiado pela maximização do lucro, num
mundo de recursos finitos.

A sociedade espelho desta ideologia são os EUA: com 5% dos habitantes do
planeta consome 25% dos recursos mundiais disponibilizados anualmente e
polui na mesma proporção. Na realidade, "o capitalismo não tem compromisso
com o progresso social, não será capaz de satisfazer as necessidades da
população". [6]

O free-trade, o mito da concorrência "livre e não falseada" (com
monopólios!) obriga os países à exportação. Aos países tecnologicamente
menos avançados resta a competição em nichos de mercado praticamente
saturados, na base de baixos salários e trabalho sem direitos. O
significado deste processo é exemplarmente definido por Marx em "Teorias
da Mais Valia": "O comércio externo determina a forma social das nações
atrasadas".

O "exportar mais" não passa de uma comodidade de raciocínio, um simplismo
para semear ilusões. No estado de (não) desenvolvimento económico que
Portugal atingiu, não se obtém "crescimento e emprego", isto é, aumento do
mercado interno, com base nas exportações, mas é a partir do
desenvolvimento do mercado interno que se desenvolvem as exportações.

A solidariedade europeia é outro mito, a que se agarrou a
social-democracia/socialismo reformista para tentar mascarar a sua
decadência ideológica. Mas não passa de uma ilusão, a "solidariedade
europeia" está apenas ao serviço dos "mercados", não dos povos.

Maurice Allais [7] criticou as políticas de mercado livre da UE, o tratado
de Maastricht, previu a bolha imobiliária, opôs-se ao consenso de
Washington e a todas as teses do neoliberalismo e monetarismo. Para M.
Allais, contrariando as políticas da UE, "o mercado livre só é benéfico em
circunstâncias especiais e os seus efeitos só são favoráveis entre regiões
com níveis de desenvolvimento comparáveis". É uma evidência que mostra
como na UE "o rei vai nu". Foi, apesar do seu prestígio, silenciado. A
então jovem "estrela" do PSF, Jacques Atalli, conselheiro especial de
Mitterrand, depois de Sarkozy, e algo parecido com F. Hollande (!); ele
próprio se tornou financeiro, considerou estas ideias "estúpidas" e que
"todos os obstáculos ao mercado livre são um fator que leva à recessão".
[8] Na realidade, com estes "inteligentes" a UE apenas conheceu recessão
ou estagnação, desemprego e pobreza para níveis inqualificáveis.

3 – COMO CONCLUSÃO

Todas estas falácias soçobram perante as várias crises que simultaneamente
o sistema traz ao mundo: a económica e financeira, a social, a ambiental,
a militarista.

A eficiência capitalista é feita à custa da exploração imperialista e da
troca desigual, da insegurança dos trabalhadores e da repressão,
conduzindo a um processo de irreversível decadência; depredação ambiental
e a expansão parasitária, estreitamente interrelacionadas.

As anémicas recuperações são seguidas de recaídas, a pobreza aumenta, os
países capitalistas considerados mais ricos são Estados cada vez mais
insolventes.

A social-democracia/socialismo reformista pretende resolver a crise
económica e financeira – e apenas esta! – pelo empobrecimento da classe
trabalhadora e a opção pelo militarismo (vide recentes resoluções na UE
sobre o tema e a sua participação na agressão e desestabilização da Líbia,
Síria, Ucrânia, para só mencionar estes).

O conceito de desenvolvimento opõe-se ao crescimento capitalista,
baseia-se na maximização da eficiência económica tendo em conta os custos
e benefícios sociais e não a maximização do lucro, o que só é possível com
uma política não capitalista, visando a construção do socialismo.
Notas
1 – Ver De Carmona a Cavaco e à "salvação nacional"
2 – Recuperação para os 7 por cento , Paul Craig Roberts
3 – As máscaras do Estado capitalista, Avelãs Nunes, Ed. Avante, 2013.
4 – Atilio A. Boron, Socialismo para os ricos, mercado para os pobres ,
5 – European Competitiveness Report 2010, Brussels, 28.10.2010, SEC (2010)
1276, p.82.
6 – A crise económica mundial, a globalização e o Brasil, Edmilson Costa,
Ed. ICP, 2013, p. 179.
7 – Maurice Allais (1911-2011) foi um liberal que se opôs totalmente ao
neoliberalismo, sendo por isso marginalizado. Notável académico, recebeu o
prémio (dito) Nobel de economia em 1988. Porém, praticamente, a partir
daquela data apenas periódicos progressistas como o L' Humanité,
publicaram seus textos. Allais opôs à especulação, à criação monetária
pela banca, etc, no geral a todas as políticas económicas que hoje vigoram
na UE. Sendo um defensor da comunidade europeia nunca admitiu a supressão
sistemática das barreiras alfandegárias, atendendo aos desníveis
económicos existentes. Nos seus estudos económicos fez entrar aspetos
psicológicos, demonstrando a falsidade dos axiomas neoliberais. Uma das
suas ideias interessantes foi a de opor-se ao "custo de oportunidade",
mostrando que não se pode falar (em termos macroeconómicos) no custo de um
bem ou de um serviço, mas sim do custo de uma decisão. O que nos leva,
obviamente à avaliação no cálculo económico dos custos e benefícios
sociais das decisões políticas. (ver mais em
http://fr.wikipedia.org/wiki/Maurice_Allais#mw-navigation )
8 – The Death of Economics, Paul Ormerod, Faber and Faber, Londres, 1994,
p.8

Acerca deste tema ver também:

Reindustrializar…dizem eles

Acerca do desenvolvimento industrial



Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
11/Fev/14
http://www.resistir.info/v_carvalho/cresc_desenv_09fev14.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário