sábado, 23 de maio de 2015

A anatomia do Estado sob o neoliberalismo


por Prabhat Patnaik [*]



A mudança da natureza do Estado sob o neoliberalismo tem sido muito
discutida. Posicionando-se a princípio aparentemente acima da sociedade e
fazendo mediação entre as diferentes classes, assim como sob o dirigismo
(apesar de ser um Estado conduzido também pela grande burguesia), sob o
neoliberalismo o Estado passa a promover primariamente os interesses da
oligarquia corporativo-financeira (a qual está integrada ao capital
financeiro internacional), sob a alegação de que o que é bom para esta
oligarquia é ipso facto bom para a nação. A completa unanimidade entre
Arun Jaitley e P. Chidambaram, numa cerimónia recente em Delhi onde ambos
estiveram presentes, acerca da questão da "tributação retroactiva", à qual
ambos se opunham porque reduzia "incentivos" para os capitalistas, só vem
confirmar esta tese.

Da mesma forma, a mudança nas feições do Estado sob o neoliberalismo tem
sido muito discutida. O enorme aumento em despesas eleitorais que assegura
que partidos de trabalhadores pobres tenham maior dificuldade em obterem
representação nos parlamentos, os quais portanto são preenchidos cada vez
mais por bilionários ou por eleitos corporativos, constitui uma mudança
óbvia. Narendra Modi, que segundo se diz gastou mais do que Obama na sua
campanha para primeiro-ministro, não podia ter avançado tanto sem apoio
corporativo maciço, o qual não surpreendentemente tem agora de retribuir
uma vez no poder: em suma, as feições do segmento eleito do governo
experimentam uma mudança sob o neoliberalismo, com favoritos corporativos
ficando melhor representados.

E mesmo a burocracia experimenta um mudança, não apenas pelas razões
discutidas por Hilferding e Lenine, a saber, sua "união pessoal" com a
oligarquia financeira, que se deve entre outras coisas a boas ofertas de
emprego pós (ou mesmo pré) aposentação por parte do sector corporativo,
mas também por uma razão adicional: a burocracia obtém cada vez mais
"treino" directamente de agências como o Banco Mundial, ou através de
arranjos efectuados por agências como o Banco Mundial em universidades
metropolitanas "de prestígio" como Harvard e Yale onde absorvem a
ideologia neoliberal in totum.

Entretanto, além desta mudança na natureza e feições do Estado, também se
verifica uma mudança na sua anatomia, isto é, na sua organização interna e
na distribuição de poderes. Há pelo menos cinco diferentes aspectos aqui
envolvidos, os quais discutiremos em sucessão.

A primeira mudança é a introdução da autonomia do banco central. Isto
ainda não aconteceu formalmente na Índia, mas o facto de que a mesma
pessoa nomeada como governador pelo governo anterior continue a manter o
posto ainda agora, fazendo o que estava a fazer anteriormente e o que a
sua própria preferência determina, é sugestivo da sua autonomia de facto e
a da instituição que chefia. Em outros países tal autonomia foi
institucionalizada mais formalmente, o que significa que todo um conjunto
de políticas que o banco central tem a prerrogativa de definir é decidido
independentemente da vontade dos parlamentos e portanto dos representantes
do povo. O povo pode eleger um novo governo, mas este nada terá a dizer
sobre a política cambial, a política monetária e a política de crédito, as
quais têm um impacto vital sobre as vidas das pessoas. E mais ainda: uma
vez que uma economia neoliberal está exposta a fluxos de capitais mais ou
menos livres, estas políticas são determinadas pelo banco central autónomo
a fim de atender às exigências da finança globalizada.

Por outras palavras, as políticas do banco central são isoladas das
vontades do povo e definidas de acordo com as exigências do capital
financeiro. Isto, sem dúvida, seria o caso pouco importando se o banco
central desfruta ou não de autonomia, enquanto a economia permanecesse
aberta a fluxos financeiros globais. Por que então, pode-se perguntar,
faria alguma diferença a autonomia do banco central? A razão é que tal
autonomia torna ainda mais difícil a imposição de controles de capitais,
colocando um fardo adicional, na forma de um banco central autónomo, a ser
ultrapassado antes que tais controles possam ser postos em prática.

A segunda mudança é uma transformação completa nos poderes relativos dos
departamentos do governo, com o ministro das Finanças a emergir como um
super-ministro, o qual adquire um poder de veto sobre as propostas dos
outros ministros e cujos representantes tomam parte em todo comité
decisório de todos os outros ministérios. Na Índia, a Comissão de
Planeamento desfrutara de um status proeminente desde os dias do
planeamento nehruano e a sua continuação era um desafio à emergência e uma
estrutura neoliberal do Estado. Este desafio foi ultrapassado sob o
governo Manmohan Singh ao conseguir que um empregado do Banco Mundial que
anteriormente fora o ministro das Finanças indiano encabeçasse a Comissão
de Planeamento. Sob o actual governo isto foi ultrapassado pela abolição
da Comissão de Planeamento, a qual tem pouco a ver com excentricidades de
Modi – faz parte da formação de uma estrutura de Estado neoliberal.

A terceira e mais significativa característica da estrutura de Estado
neoliberal é que tanto o banco central, que se torna autónomo, como o
Ministério das Finanças, que emerge como super-ministério, são encabeçados
e manejados por empregados do Banco Mundial, do FMI ou de bancos
multinacionais. O que isto implica, em suma, é que dentro do Estado como
um todo, surge uma entidade núcleo, um Estado dentro de um Estado, o qual
está especialmente preocupado com assuntos económicos, mas não apenas com
tais assuntos (uma vez que "segurança" e relações com o imperialismo e o
capital financeiro internacional também caem dentro do seu âmbito).

Esta entidade é todo-poderosa; ela não responde ao povo; ela não é
removível pelo voto popular; e ela está estreitamente ligada ao
imperialismo. (Não é de surpreender que o vice-presidente da Comissão de
Planeamento sob o governo Manmohan Singh, cujas responsabilidades oficiais
têm pouco a ver com o assunto, estivesse envolvido, presumivelmente como
membro deste "Estado núcleo", nas negociações com os EUA sobre o acordo
nuclear indo-estado-unidense.

Muitos, no contexto dos EUA, escreveram acerca de um "Estado Profundo"
("Deep State"), o qual é perigosamente todo-poderoso, não responde a
ninguém, invisível para quem está do lado de fora e ligado a poderosos
interesses dos negócios, estando embebido dentro do Estado. Não importando
como se encare o conceito específico do chamado "Estado Profundo" dentro
dos EUA, existe dentro de todo Estado neoliberal uma tendência para a
cristalização de uma entidade núcleo, a qual é todo-poderosa, infensa a
qualquer controle democrático e ligada ao big business e interesses
financeiros.

A quarta mudança relaciona-se à tendência para entrar em tratados externos
sobre questões económicas cruciais ligadas ao comércio, fluxos de capital
e direitos de propriedade intelectual, os quais, afirma-se, não têm de ser
ratificados pelo parlamento. O país, por outras palavras, sempre que tais
tratados entram em vigor, é apresentado diante de um facto consumado
acerca do qual os representantes eleitos do povo pouco podem fazer mas que
têm uma influência importante sobre as vidas do povo.

Foi o que aconteceu em relação à Lei Indiana de Patentes de 1970, a qual
tinha de ser tornada compatível com o TRIPS , muito embora numerosos
comités parlamentares tenham recomendado especificamente que o regime de
patente estabelecido sob essa lei, a qual fora louvada internacionalmente
por pensadores progressistas independentes como modelar, não deveria ser
mudada. Mas ela teve de ser alterada porque o país entrou no acordo TRIPS
por uma decisão unilateral do executivo, o qual em momento algum pediu
qualquer aprovação parlamentar porque dizia não ser preciso.

HEGEMONIA IRRESTRITA DA OLIGARQUIA CORPORATIVO-FINANCEIRA

O Acordo Nuclear Índia-EUA foi outro exemplo de um tratado assinado
unilateralmente pelo executivo sem que o assunto fosse ao parlamento e
sendo apresentado ao país um facto consumado elaborado pela entidade
núcleo dentro do Estado neoliberal.

A quinta mudança agora é iminente na forma de acordos internacionais tais
como o Trans Pacific Partnership ( TPP ) e Transatlantic Trade and
Investment Pact ( TTIP ). Estes tratados específicos não consideram a
Índia directamente, mas representam um novo aspecto do Estado neoliberal
de que deveríamos ter consciência uma vez que acordos semelhantes
provavelmente irão confrontar-nos nos próximos tempos. Eles retiram todo
um conjunto de assuntos completamente fora do âmbito do Estado-nação e
delegam-nos a corpos supranacionais formados especificamente para o
efeito. Uma nação signatária de um tal acordo terá de abandonar toda
jurisdição nacional em matérias como tratar o investimento estrangeiro e
terá de ficar prisioneira de decisões dos corpos judiciais supra-nacionais
estabelecidos sob o acordo.

Se se supõe que nem mesmo a entrada num acordo como esse precise da
ratificação parlamentar do país, então temos um exemplo perfeito da
entidade núcleo dentro de um Estado neoliberal a dirigir um golpe de
estado contra a "soberania popular" tal como lavrada na Constituição. Ele
teria transferido poderes soberanos para um corpo supranacional sem o
consentimento dos representantes do povo, muito embora tal transferência
colida fortemente com a vida do povo.

Mas mesmo que seja considerada necessária a ratificação parlamentar, não
seria difícil obter tal ratificação na base de "manobras de bastidores",
uma vez que envolveria um mero voto apenas uma vez: num caso assim a
Constituição do país teria sido reduzida através de uma simples votação
única no parlamento obtida através de "manobras de bastidores".

O Estado neoliberal, ou o Estado na era da hegemonia do capital financeiro
internacional, é cada vez mais moldado de uma maneira que restringe a
"soberania popular" de todos os modos concebíveis. Sua tendência essencial
é para reduzir a democracia e estabelecer, mesmo que forçosamente dentro
de um envoltório aparentemente democrático, a hegemonia irrestrita da
oligarquia corporativo-financeira. Para atingir esta finalidade muda
também a estrutura interna, a anatomia, do Estado. Um ressuscitar da
própria democracia exige a transformação da estrutura de Estado criada
pelo neoliberalismo.

16/Novembro/2014
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2014/1116_pd/anatomy-state-under-neo-liberalism

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

http://www.resistir.info/patnaik/neoliberalismo_17mai15.html

17/Nov/14

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