sábado, 30 de maio de 2015

Mészáros: A disputa pelo Estado




Entrevista com István Mészáros, por Leonardo Cazes
30.Mai.15 :: Outros autores

István Mészáros é um dos mais destacados pensadores marxistas da actualidade.
Nesta entrevista, a reflexão de fundo é muito mais importante do que esta ou
aquela apreciação conjuntural. Publicada em Fevereiro, é possível que a
valorização que fazia então de Syriza e Podemos não fosse hoje a mesma. Mas o
essencial é o que afirma, com lapidar ironia: à frase de Rosa Luxemburg
“socialismo ou barbárie” pode hoje acrescentar-se: “barbárie…se tivermos sorte”.




No contexto do lançamento de seu novo livro, A montanha que devemos conquistar:
reflexões acerca do Estado, o filósofo marxista húngaro István Mészáros concedeu
uma longa entrevista a Leonardo Cazes para o jornal O Globo, em que discutia
alguns aspectos centrais da obra, como sua concepção de Estado, de democracia e
da crise estrutural do capital, à luz de alguns dos protestos e mobilizações
políticas que se vêm alastrando mundo afora. O resultado foi publicado
parcialmente em fevereiro deste ano. A entrevista, contudo, supera em mais de
três vezes o espaço disponibilizado pelo jornal. A pedido do autor, o Blog da
Boitempo publica agora a versão integral da entrevista, enviada a nós
diretamente pelo jornalista e revisada pelo tradutor Nélio Schneider. Também a
pedido de Mészáros, a entrevista deve se somar ao apêndice das próximas edições
ampliadas de A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado.
***
Por que o senhor, no título de seu novo livro, comparou o Estado que se deve
conquistar a uma montanha?

No sentido mais simples e direto, porque a estrada que devemos seguir para
garantir nossa sobrevivência e nosso avanço está bloqueada por um obstáculo
gigante – muitos Himalaias, um em cima do outro –, representado pelo poder de
decisão global do Estado. E não podemos dar a volta nessa montanha, nem passar
por cima dela. O perigo de fato consiste em que alguns poucos Estados nacionais
têm o poder de destruir a humanidade inteira, um poder zelosamente defendido por
eles como sua “segurança” e “autodefesa” nos seus confrontos, reais e
potenciais, uns com os outros.
E, enquanto os Estados e a sua necessária rivalidade sobreviverem, a esmagadora
maioria da humanidade não pode fazer absolutamente nada contra isso. Nada pode
ser mais absurdo do que isso.
A ideia de que, na tentativa de superar as desigualdades estruturalmente
arraigadas e saná-las de uma forma duradoura, as pessoas poderiam usar a
“sociedade civil” contra o poder do Estado é extremamente ingênua, para dizer o
mínimo. Tal como a presunção de chamar de “ONGs”, isto é, “Organizações Não
Governamentais” essas organizações pateticamente limitadas que dependem, para o
seu financiamento e funcionamento, dos recursos concedidos pelo Estado.
Essas mitologias autocontraditórias não podem oferecer soluções para os nossos
piores problemas. O Estado é a estrutura política global de comando do sistema
do capital em qualquer uma das suas formas conhecidas ou concebíveis. Sob as
condições atuais não pode ser de outra maneira. É por isso que a ordem social
reprodutiva do capital é antagônica ao seu núcleo e precisa da problemática
função corretiva do Estado para transformar, num todo coeso, as partes
constitutivas em conflito do sistema, na sua incurável centrifugalidade.
Houve um tempo em que esse tipo de correção não era só defensável, mas trazia
consigo um avanço histórico que a tudo conquistava. Hoje, entretanto, a outrora
bem-sucedida função corretiva do Estado falha em funcionar de forma duradoura,
na medida em que a profunda crise estrutural do sistema do capital fica cada vez
mais clara. O resultado é uma destruição ainda maior, não apenas em incontáveis
guerras, mas também da natureza.
É por isso que argumento que a famosa frase de Rosa Luxemburgo, “socialismo ou
barbárie”, precisa ser completada, para o nosso tempo para: “… ou barbárie, se
tivermos sorte”. A aniquilação da humanidade é a nossa sina se falharmos na
conquista dessa montanha que é o poder destrutivo e autodestrutivo das formações
estatais do sistema do capital.
No mundo atual, os Estados nacionais parecem ter cada vez menos poder diante de
organismos financeiros internacionais e mesmo de organizações políticas
interestatais, como a União Europeia. Assim, qual é esse Estado que se deve
conquistar?
A alegada redução do poder dos Estados-nações é um grande exagero alardeado por
governos com o objetivo de justificar seus fracassos em promover até mesmo as
limitadíssimas reformas sociais solenemente prometidas por eles. Os fatos
mostram o contrário. Cito apenas alguns exemplos: o Syriza, respaldado por larga
margem de votos, está tentando hoje afirmar os interesses gregos contra o FMI e
a União Europeia. No Reino Unido, nas eleições gerais de maio próximo, o partido
que deve ter o maior crescimento percentual em número de votos é o Partido
Independente do Reino Unido (UKIP, na sigla em inglês). Além disso, sob o
impacto do crescente sucesso do UKIP, o Partido Conservador (do
primeiro-ministro David Cameron) está ameaçando deixar a União Europeia caso não
ocorram mudanças no bloco que atendam aos interesses do país.
A propósito, não se pode excluir a possibilidade de que a própria União
Europeia acabe. Ainda mais representativo foi o plebiscito, realizado meses
atrás, sobre a independência da Escócia. O percentual de eleitores que apoiaram
a independência atingiu a impressionante marca de 45%, o que provavelmente
levará à sua realização quando eles puderem votar sobre esse assunto novamente.
Ao mesmo tempo, a Catalunha, na Espanha, está tentando afirmar os seus
interesses no mesmo sentido, como mostram as votações recentes. Na Bélgica,
temos contradições parecidas, em alguns casos com manifestações violentas, e
também na Itália, na região do Alto Adige, há um forte movimento pressionando
por independência. E não devemos esquecer que, na Europa Central, não faz muito
tempo que a Eslováquia se separou da atual República Tcheca.
Assim, a realidade não é a eliminação das aspirações dos Estados nacionais, mas
o superaquecimento de um caldeirão de perigosos antagonismos e contradições em
vários níveis, todos situados entre os atuais Estados nacionais e aqueles que
aspiram a tornar-se Estados nacionais e até mesmo as estruturas criadas para
solucionar os antagonismos interestatais como União Europeia – que está muito
longe de ser unificada.
A crônica falta de solução para esses problemas oferece grandes perigos para a
sobrevivência da humanidade. Por acaso deveríamos ignorar o fato de que os
Estados Unidos estão ameaçando armar a Ucrânia contra a Rússia, com
consequências potencialmente sérias e incalculáveis? Onde foram parar os dias de
glória em que líderes políticos mundiais alardearam em alto e bom som “o fim da
guerra fria”? E, para além do confronto entre EUA e Rússia, o que pensar do
antagonismo, num horizonte não muito distante, entre EUA e China – os mais
poderosos dos Estados nacionais – na disputa acirrada pelos recursos naturais do
planeta?
Trata-se de um antagonismo ainda limitado, mas com uma inegável tendência a
intensificar-se. Estados nacionais rivais são totalmente incapazes de oferecer
uma solução para esses antagonismos. Nenhuma organização financeira
internacional, nem as bem-intencionadas organizações políticas interestatais
conseguem sequer arranhar a superfície de problemas tão graves.
A gigantesca falha histórica do capital foi – e continua sendo – sua
incapacidade de constituir o sistema do capital como um todo, enquanto
irresistivelmente proclama os imperativos do seu sistema como as determinações
materiais diretas da ordem reprodutiva do capital em escala global. Essa é uma
enorme contradição. Antagonismos interestatais numa escala potencialmente
autodestrutiva – um presságio foram as duas guerras mundiais do século passado
quando ainda não tinham sido completamente desenvolvidas as atuais armas de
autodestruição total – são a consequência necessária dessa contradição.
Portanto, o Estado que devemos conquistar para a sobrevivência da humanidade é
o Estado tal como nós o conhecemos, chamado de Estado em geral na sua realidade
existente, como foi articulado ao longo do curso da história, e capaz de se
afirmar apenas na sua modalidade antagônica tanto internamente quando nas suas
relações internacionais.

O senhor aponta que o Estado tal como nós o conhecemos está fundado numa
determinada ordem sociometabólica capitalista. É preciso conquistar o Estado
para transformar essa ordem? Ou só a transformação da sociedade criará as
condições para a transformação do Estado?

O Estado em si não pode refazer a ordem social reprodutiva do capital porque é
uma parte integrante dela. O grande desafio da nossa época é a necessária
erradicação do capital da nossa ordem sociometabólica. E isso é inconcebível sem
erradicar, ao mesmo tempo, as formações estatais do capital historicamente
constituídas em conjunção com a dimensão de reprodução material do sistema e
inseparável dela.
O fato de o Estado, como a correção necessária para a centrifugalidade
incurável do capital, poder se impor às partes constitutivas, sempre em nocivo
conflito, de determinada ordem social não significa que o Estado possa impor
arbitrariamente qualquer coisa imaginada pelas personificações políticas do
capital. Pelo contrário, a imposição corretiva do Estado é objetivamente
orientada pelo imperativo autoexpansionista da ordem reprodutiva material do
capital. Uma ordem completamente incapaz de reconhecer algum limite a sua
autoexpansão, gerando então uma contradição fatal. A insustentabilidade final
dessa contradição é revelada pelo fato de que o que é internamente – no âmbito
nacional – um requisito e uma conquista autoexpansionista de tendência
internacional se tornam problemáticos e potencialmente autodestrutivos. A
realidade repressiva do imperialismo monopolista e de suas guerras não é
inteligível sem essa perversa dinâmica autoexpansionista instituída pelos
Estados mais poderosos.
Assim, para que a tomada de decisão global no processo sociometabólico seja
radicalmente alterada, é necessária a eliminação da já mencionada contradição
fatal entre a dinâmica interna de reprodução produtiva do sistema e a tendência
repressiva internacional inseparável dela, como vivido na ordem social do
capital salvaguardada e defendida pelo Estado.

Alguns intelectuais veem a crise financeira iniciada em 2008 como uma crise do
capitalismo. Para salvar os bancos, houve um endividamento gigantesco dos
Estados. Esta crise do capitalismo é também uma crise do Estado?

Sem dúvida, a crise de que estamos falando é também a crise profunda do Estado.
Os defensores do sistema passaram a promover a ilusão e o autoengano de que o
Estado resolveu com sucesso a crise, despejando fundos astronômicos de trilhões
de dólares no buraco sem fundo do capital quebrado. Mas de onde vieram esses
trilhões astronômicos? O Estado como inventor desses fundos não é produtor de
nenhum deles, mesmo que finja ser o distribuidor soberano com seus dispositivos,
mais ou menos abertamente cínicos, de “quantitative easing [flexibilização
quantitativa]” etc. No entanto, a amarga verdade é que a maioria esmagadora dos
Estados está quebrada – a quantia chega a 57 trilhões de dólares de acordo com
os números mais recentes –, não importando o quanto consigam dissimular sua
falência “ex officio”.
Há muitos anos, em um artigo escrito em 1987 e publicado pela primeira vez no
Brasil em 1989, na revista “Ensaio”, citei uma fala do então presidente do
Federal Reserve (o Banco Central norte-americano) no “Financial Times”, Robert
Heller, defendendo que o déficit anual de US$ 188 bilhões na balança comercial
norte-americana representava “a saudável continuação da expansão econômica
atual”. E eu comentei isso com estas palavras: “Se US$ 188 bilhões de déficit na
balança comercial, junto com déficits orçamentários astronômicos, podem ser
considerados a continuação saudável da expansão econômica, é estarrecedor pensar
o que serão as condições não saudáveis da economia quando nos defrontarmos com
elas”. Agora estamos muito próximos disso.
ófico e a falência velada das mais poderosas economias capitalistas, sendo os
Estados Unidos responsáveis por 20 trilhões de dólares dessa conta, que continua
crescendo inexoravelmente. Isso prosseguirá, não importando quantas vezes os
presidentes dos Bancos Centrais ainda venham com a cantilena do que chamam
“condições saudáveis de expansão”.

No livro, o senhor parece acreditar que o chamado “fenecimento do Estado” é
inevitável. O que o leva a acreditar nisso?

Neste caso não se coloca a questão da inevitabilidade. Dizer que o “fenecimento
do Estado” é necessário significa apenas que se trata de uma condição vital
exigida para a solução dos problemas em jogo. Mas isso não significa que essa
exigência vá realizar-se inevitavelmente. Pelo contrário, aumenta o perigo de
que o Estado, com seu gigantesco poder de destruição, dê um fim catastrófico a
todo o esforço de transformação e emancipação, o que contraria toda a ilusão da
chamada “inevitabilidade histórica”.
Não pode haver algo como “inevitabilidade histórica” em direção ao futuro.
História é um destino aberto para o bem ou para o mal. Ressaltar a necessidade
do “fenecimento” do Estado foi, em primeiro lugar, um meio de contestar a ilusão
anarquista de que a “derrubada do Estado” pode resolver os problemas em disputa.
O Estado em si não pode ser “derrubado”, tendo em vista o seu profundo
entranhamento no metabolismo social. As relações capitalistas de propriedade
privada de determinado Estado podem ser derrubadas, mas isso por si só não é uma
solução. Tudo que pode ser derrubado pode também ser restaurado, e tem sido
assim, como o destino da “Perestroika” de Gorbachev demonstrou amplamente.
Capital, trabalho e o Estado estão profundamente interligados no todo orgânico
do metabolismo social historicamente constituído. Nenhum deles pode ser
derrubado sozinho, nem ser “reconstituído” separadamente.
A mudança exigida requer a transformação radical do metabolismo reprodutivo
social na sua totalidade e em todas as partes profundamente interconectadas que
o constituem. E isso só pode ser feito com sucesso em sintonia com as
circunstâncias históricas em mudança, dentro dos limites do nosso planeta. Esse
é o significado da alternativa socialista à ordem sociometabólica do capital,
agora perigosamente sobrecarregada e perdulária. Essa alternativa não é uma
questão de “inevitabilidade”. A inevitabilidade deve ser deixada para a lei da
gravidade, segundo a qual as pedras lançadas por Galileu da torre inclinada de
Pisa atingiriam o solo com toda certeza. É por isso que, na conclusão do meu
livro, escrevi que “aquilo pelo que essa alternativa socialista clama é a
exigência tangível de sustentabilidade histórica. E isso também é oferecido como
o critérioe a medida de seu sucesso viável. Em outras palavras, o teste de
validade em si é definido em termos da viabilidade histórica e sustentabilidade
prática, ou não, como pode ser o caso” [p. 111-2].

Uma das principais críticas à concepção marxista da história é que ela seria
muito teleológica. Esta concepção de que o colapso do Estado é inevitável não
seria também um tanto teleológica?

Apenas marxistas dogmáticos mecanicistas argumentariam nesses termos. Marx nunca
fez isso. Além do mais, sete décadas antes de “socialismo ou barbárie” de Rosa
Luxemburgo, ele escreveu que a alternativa por ele defendida era necessária aos
seres humanos “para salvar a sua própria existência”. Em outras palavras, se um
pensador claramente afirma que a ação humana autodestrutiva em curso – que advém
dos antagonismos internos e das contradições perigosas de certo sistema de
reprodução social, estabelecido pelos próprios seres humanos – pode colocar um
fim no desenvolvimento histórico, isso é o oposto da crença em uma misteriosa
teleologia da inevitabilidade histórica, e não sua defesa.
De qualquer forma, indicar a crescente probabilidade do colapso ou da implosão
é sempre muito mais fácil do que projetar em termos concretos algo como um mero
o esboço de um resultado positivo viável. Porque este último depende de uma
grande multiplicidade de fatores que interagem entre si, colocados em movimento
por esforços humanos mais ou menos conscientes, confrontando-se uns aos outros
em circunstâncias históricas confusamente complicadas e mudanças na relação de
forças. É por isso que é tão importante o desenvolvimento de uma consciência
social no âmbito de sistemas de valoresrivais, junto com seus requisitos
educacionais. Não passaria de uma ilusão autodestrutiva esperar um resultado
positivo aparecer através de uma agência supra-humana fictícia de alguma
teleologia histórica quase messiânica preexistente.

O senhor é bastante crítico à “democracia representativa”, mas também não
demonstra entusiasmo pela assim chamada “democracia direta”. Em vez disso,
propõe uma “democracia substantiva”. Quais são as bases dessa democracia
substantiva e como ela funcionaria?

A defesa feita por Rousseau de algo parecido com a democracia direta, abraçada
na fase inicial da Revolução Francesa, tem uma precedência histórica sobre a
democracia representativa. Esta última foi concebida mais como uma reação do que
como uma forma original sustentável de controle político. Além do mais, não
devemos esquecer que o grande filósofo liberal/utilitarista Jeremy Bentham
começou sua carreira intelectual como opositor da Revolução Americana, no calor
dos acontecimentos. A democracia representativa foi convenientemente adotada por
muitos parlamentos, mas produz resultados muito limitados. Trata-se de uma forma
de controle muito problemática até mesmo nos seus próprios termos de referência
e nas conquistas que reivindica para si. A crítica feita por Hegel foi certeira
quando ele escreveu em sua “Filosofia da história” que, nessa forma de
administração política, “os Poucos supõem ser os deputados, mas eles são quase
sempre apenas os exploradores dos Muitos”. Ele poderia ter apontado também que
os Muitos não são simplesmente os “Muitos”, mas simultaneamente também os
“Todos”. Mesmo que os Muitos possam ser verdadeiramente representados pelo
Partido temporariamente dominante, isso ainda assim excluiria boa quantidade dos
“Todos”, o que fez Hegel cogitar a tirania da maioria sobre a minoria. Mas é
claro que ele não pôde ir além disso, dado o seu próprio horizonte de classe e
sua concepção econômica, adaptada da economia política de Adam Smith com sua
combinação de benção e maldição orientada para o capital.
Apesar dos seus méritos relativos em comparação com a democracia
representativa, a ideia da democracia direta é também muito problemática. Ao se
colocar como alternativa à democracia representativa no domínio político, ela
ainda está muito longe de começar a perceber a grande tarefa histórica da
transformação radical do metabolismo social em sua totalidade.

Por isso não surpreende nem um pouco que até seu contraexemplo institucional
extremamente limitado dos “delegados revogáveis” em vez dos “deputados
representativos” agora eleitos para o sistema político tenha se comprovado como
totalmente incompatível, nos dois últimos séculos, com a ordem de reprodução
social estabelecida.
Além disso, a sugestão bem-intencionada de pagar a esses delegados o mesmo que
se paga aos trabalhadores de fábrica não deu em nada, embora tenha sido
defendida apaixonadamente por Lenin no seu livro “Estado e revolução” e também
depois da vitoriosa Revolução de Outubro. Nas sociedades capitalistas
ocidentais, temos ouvido falar da virtude da proposta de ter trabalhadores ou
até conselhos de trabalhadores participando diretamente do processo de decisão
das empresas, como um elemento de democracia direta, esperando assim uma grande
transformação da sociedade como um todo com o tempo.
Isso é como a raposa da fábula, ao pé da árvore, dizendo ao corvo, que segura
no bico um enorme pedaço de queijo, como seu canto é lindo e pedindo que ele
cante, na esperança de que ele deixe o queijo cair. Mas o corvo não é tão
estúpido a ponto de alimentar a raposa e ficar com fome. A questão da democracia
substantiva é um caso de processos decisórios vitais em todos os domínios e em
todos os níveis do processo de reprodução social, com base numa igualdade
substantiva. E isso exige a alteração radical no metabolismo social como um
todo, substituindo o seu caráter alienado e a superimposição alienante de todo o
processo de decisão política do Estado sobre a sociedade. Esse é o único modo em
que a democracia substantiva pode adquirir e manter o seu significado.

Na Europa, na Ásia e na América Latina, as ruas foram ocupadas por protestos
contra o poder estabelecido, sejam ditaduras ou democracias. Como o senhor
avalia esses movimentos? Eles podem ser o motor de uma mudança fundamental da
sociedade capitalista?

Sem dúvida nenhuma, estamos assistindo às mais notáveis demonstrações de
protesto em todo o mundo nos últimos anos. Ao mesmo tempo, já que as demandas
das pessoas nesses protestos de massa não foram atendidas, dificilmente se
poderá duvidar que eles reaparecerão em todo o mundo e até mais intensamente se
continuarem a ser frustrados. Contudo, seria imprudente pular para uma conclusão
otimista tendo em vista a imensa dimensão desses movimentos de protesto
mundiais. Não obstante, seria muito prematuro ver neles já o motor de uma
mudança fundamental da sociedade capitalista. Esses movimentos de protesto são
certamente prenúncios de uma necessária mudança fundamental. A magnitude dessa
mudança fundamental exigida é indicada não apenas pelas demonstrações de massa
que inequivocamente dizem “não” à perpetuação de múltiplas injustiças, mas
também pela subsequente expressão de simpatia e solidariedade das massas que
ainda não estão nas ruas.
Uma palavra de cautela é necessária, entretanto, porque é sempre mais fácil
dizer “não” ao que existe de prejudicial do que elaborar uma alternativa
positiva a ele. Se tomarmos a sustentabilidade histórica como critério e medida
da alternativa exigida, devemos aplicá-la também aos movimentos de protesto de
massa emergentes. Eles apareceram por todo mundo em geral de forma espontânea e
numa grande variedade de formas, relacionadas à multiplicidade de suas queixas
particulares.
Em algum ponto do futuro, entretanto, eles devem se unir numa força
historicamente sustentável, caso queiram se tornar o que você descreveu
corretamente como “o motor de uma mudança fundamental da sociedade capitalista”.
Só podemos torcer para que essa coesão estratégica se manifeste rapidamente,
antes que seja tarde demais.

A Europa tem assistido à ascensão de novos partidos de esquerda, muitas vezes
classificados como “radicais”. O Syriza venceu as eleições na Grécia e o Podemos
já é a segunda força política na Espanha. Como o senhor vê esses novos partidos?
Que tipos de mudança são possíveis por dentro das estruturas atuais?

Syriza e Podemos são bons exemplos da resposta necessária à imposição das cruéis
medidas de austeridade pelas autoridades financeiras e estatais internacionais à
Grécia e à Espanha, agravadas pela submissão servil de seus respectivos governos
nacionais. Mas muito além desses dois países, as medidas de austeridade
desumanizantes estão se tornando visíveis e intoleráveis em muitas partes do
mundo capitalista, incluindo aqueles países que uma vez pertenceram ao punhado
de privilegiados do “Estado de bem-estar”.
O que torna esses partidos particularmente significantes não é apenas que
nasceram na esteira de uma esquerda adormecida, mas também alcançaram uma grande
massa de apoiadores em um período muito curto de tempo. Nesse sentido, eles
claramente sublinham a insustentabilidade da ordem de reprodução social
estabelecida que recorre a cruéis medidas de austeridade até na Europa do
capitalismo avançado, depois de prometer por tanto tempo – e totalmente em vão –
a difusão do bem-estar universal em todos os lugares do mundo.
A expectativa de sucesso dos movimentos mundiais de protesto, mencionados na
pergunta anterior, pode ser bastante reforçada pelo desenvolvimento desses
partidos. Mas também a esse respeito, uma concepção global estrategicamente
viável elaborada por eles, em busca de uma alternativa à ordem existente que
seja sustentável historicamente, continua sendo um requisito necessário.

Mais de 20 anos após o fim da União Soviética, por que o senhor acredita que a
alternativa socialista não é só possível, mas também necessária?
Em termos históricos, 20 anos é um período muito curto. Isso é um fato
especialmente quando a magnitude da tarefa que se apresenta é a da necessidade
de mudança radical do sociometabolismo reprodutivo como um todo de uma ordem de
desigualdade substantiva para outra de igualdade substantiva. E o desafio
histórico para garantir uma ordem de igualdade substantiva não é uma questão das
últimas décadas.
A demanda por essa mudança foi eloquentemente afirmada por Babeuf e seus
camaradas da “Sociedade dos Iguais”, não há 20, mas há exatamente 220 anos,
quando eles insistiram em que: “Não precisamos apenas da igualdade de direitos
inscrita na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; precisamos dela em
nosso meio, sob o teto das nossas casas”. Sua demanda era totalmente
incompatível com a ordem do capital em consolidação, e eles foram executados por
isso. Mas o desafio histórico não morreu com eles, já que envolve toda a
humanidade. E nenhuma solução parcial ou o seu fracasso pode eliminar essa
condição.
Os fatores que levaram à implosão do sistema soviético têm raízes muito
profundas. Para citar muito rapidamente apenas duas: as contradições explosivas,
herdadas dos czares, de um império multinacional que reprimiu suas minorias
nacionais e a proclamação do “socialismo em um só país”, num contexto em que de
fato prevalecia o sistema do capital pós-revolucionário. No que diz respeito à
primeira contradição fatídica – cujas reverberações perigosas podem ser ouvidas
ainda hoje –, Lenin defendia para as minorias nacionais o “direito de autonomia
até o ponto de secessão”, e ele criticou incisivamente Stalin como um
“nacional-socialista” arbitrário e “valentão da Grande Rússia”; ao passo que
Stalin reduziu as minorias nacionais ao status de “região de fronteiras”
indispensáveis para a manutenção do “poderio da Rússia”. Em relação à segunda
deturpação fatídica, Stalin e seus seguidores afirmaram “a completa realização
do socialismo em um só país”, em total contradição com a visão de Marx de que
uma ordem social alternativa “só é possível como um ato dos povos dominantes de
uma só vez e simultaneamente, o que pressupõe o desenvolvimento universal das
forças produtivas e a inter-relação mundial a ele vinculado”.
Babeuf e seus camaradas tragicamente subiram ao palco da história antes da hora
com a sua demanda radical. Naquele tempo, o capital ainda tinha o potencial de
expansão através da conquista do mundo, mesmo que seu modo de operação nunca
tenha podido superar as características problemáticas daquilo que até mesmo seus
melhores defensores no campo da economia política descreveram como destruição
criativa ou produtiva. Pois a destruição sempre foi parte integrante disso,
tendo em vista o crescente desperdício inseparável da inexorável tendência
autoexpansionista do capital, mesmo na fase de ascensão do seu desenvolvimento
histórico.
A maior e mais perigosa ironia da história moderna é que a outrora tão
incensada “destruição produtiva” se converteu, na fase descendente de
desenvolvimento sistêmico do capital, em uma produção destrutiva ainda mais
insustentável, tanto no campo da produção de mercadorias quanto no domínio da
natureza, complementada pela ameaça definitiva de destruição militar em defesa
da ordem estabelecida. É por isso que a alternativa socialista não só é possível
– no sentido já mencionado de sua sustentabilidade histórica –, mas também é
necessária, no interesse da sobrevivência da humanidade.
***
István Mészáros é autor de extensa obra, ganhador de prêmios como o Attila
József, em 1951, o Deutscher Memorial Prize, em 1970, e o Premio Libertador al
Pensamiento Crítico, em 2008, István Mészáros se afirma como um dos mais
importantes pensadores da atualidade. Nasceu no ano de 1930, em Budapeste,
Hungria, onde se graduou em filosofia e tornou-se discípulo de György Lukács no
Instituto de Estética. Deixou o Leste Europeu após o levante de outubro de 1956
e exilou-se na Itália. Ministrou aulas em diversas universidades, na Europa e na
América Latina e recebeu o título de Professor Emérito de Filosofia pela
Universidade de Sussex em 1991. Entre seus livros, destacam-se Para além do
capital – rumo a uma teoria da transição (2002), O desafio e o fardo do tempo
histórico (2007) e A crise estrutural do capital (2009), A obra de Sartre, e O
conceito de dialética em Lukács todos publicados pela Editora Boitempo.
Texto distribuído por e-mail pelo Boletim Amigos do Instituto Florestan
Fernandes (tb versão em inglês)

In
O DIÁRIO.INFO
http://www.odiario.info/?p=3662
30/5/2015

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