terça-feira, 19 de maio de 2015

Um exemplo a seguir




por João Vilela

Há não muito tempo, o insuspeito Público titulava uma notícia com a
mais isenta inocente das questões: "os call-centers vão salvar a economia
portuguesa?" [1] . A pergunta - que era todo um programa político -, é
respondida por dirigentes de empresas do sector com um conjunto de
afirmações ora insólitas (como a proposta de uma licenciatura em Operador
de Call-Center nas universidades, seguindo o modelo... das Filipinas...),
ora despudoradamente reaccionárias. Apelos explícitos a que o Governo não
regule as relações de trabalho no sector, elogios ao facto de a
mão-de-obra portuguesa ser barata, argumentos de um descaramento extremo
do estilo "mais vale isto que nada", de tudo ali se lança mão. Sente-se
uma confiança generalizada na docilidade de quem trabalha, uma persuasão
de invencibilidade, uma visão de mundo onde é um favor pagar salários, uma
bênção estar empregado, e onde a função da política é governar para as
grandes empresas que levam avante o nome do "país". Como dizia Lenine, e
bem, só a classe dominante consegue transformar os seus interesses em
interesse nacional. Como sabemos todos, é por isso que nenhum meio é de
excluir para derrotar esta gente.

Ocorre que, enquanto em Portugal os patrões de call-centers se sentem à
vontade para vomitar estas atoardas, aqui ao lado a terra treme no mesmo
sector, com os já mais de 40 dias de greve nos call-centers da Telefónica.
No Estado Espanhol, a 28 de Março em Madrid, e a partir de 7 de Abril em
todo o território, contratados, sub-contratados, e falsos trabalhadores
autónomos, ergueram-se contra a sua situação e contra a pretensão da
empresa de reduzir o seu salário. São trabalhadores que estão em linha 10
a 12 horas por dias, e que recebem salários entre os 500 e os 800 euros
(no Estado Espanhol o salário mínimo nacional é de 645 euros). E isto
ocorre numa empresa cujos membros do Conselho de Administração aumentaram
a sua própria remuneração em 20%!

Tendo constituído fundos de greve financiados por pessoas que têm apoiado
a luta [2] , a 9 de Maio cem trabalhadores ocuparam a loja Movistar de
Barcelona [3] , tendo logrado arrastar o apoio de mais de oitocentas
pessoas, que reforçaram a ocupação exigindo que a administração da
Telefónica se dignasse ouvir os representantes dos trabalhadores. Tendo
sido apresentadas condições que não satisfaziam as exigências dos
grevistas (salário mínimo para o sector, fim da sub-contratação,
modificação das condições económicas e contratuais dos contratos
autónomos, e garantias de não-repressão aos trabalhadores que aderiram à
paralisação), estes não regressaram ao trabalho, e continuam firmes na sua
combatividade.

O mais absolutamente espantoso desta luta é a forma como ela se desenrola
à margem e contra a vontade dos principais sindicatos do Estado Espanhol.
Tanto as CC.OO. como a UGT, dominadas pelo PSOE, têm pautado o seu
comportamento nesta matéria por uma mistura de conluio mal disfarçado com
o patronato, com fingimento de firmeza negocial, ocultação de informação
determinante aos trabalhadores e medo-pânico de envolver os trabalhadores
na discussão dos acordos em cima da mesa, num esforço simultaneamente
dissuasor da luta e criador de uma desconfiança anti-sindical. O segundo
caso, que poderia ser o curso normal dos acontecimentos de quem percebe
que as organizações sindicais não têm (nem pretendem ter) o arrojo
suficiente para interpelar o patronato e o forçar a ceder às
reivindicações dos trabalhadores não se observou. Pelo contrário: os
trabalhadores ergueram, contra os sindicatos do patrão, uma organização
unitária, de base, de combate, e de massas (fala-se em 30 mil grevistas),
com que fazer e vencer a luta. E as denúncias da complacência e/ou
cumplicidade do sindicalismo amarelo somam-se, dia após dia.

São muitos os ensinamentos que se podem colher desta luta. O primeiro é o
de que, contra os "profetas" do fim da história, da ultrapassagem da luta
de classes, do fim das grandes lutas laborais e da sua substituição por
lutas sectoriais, entre outro lixo ideológico, vêm uma vez desmentidas as
suas parvoíces. Mesmo soterrado por anos e anos de contemporização,
conciliação de classes, reformismo, tomada do movimento sindical pelo
burocratismo social-democrata que foge das massas e encara a luta laboral
como o seu emprego, o proletariado pode emergir de sob a escória e
assumir as suas tarefas, as que só ele poderá desempenhar, frente ao
patronato. Enquanto houver homens e mulheres, como dizia Paulo Freire,
poderemos fazer a história. E devemos fazê-la a nosso favor.

Mas uma outra coisa se demonstra também, e com muita acuidade: que mesmo
nos sectores mais desprotegidos, mais debilitados, mais difíceis de
organizar e mobilizar, onde possa imperar o medo, a instabilidade, a
despolitização, o desinteresse, o que for - mesmo aí é possível a
organização dos trabalhadores, e é possível mover lutas de envergadura
suficiente para vergar o patronato. Os trabalhadores têm uma única arma ao
seu dispor no capitalismo: a sua própria organização. Sem que se unam,
organizem, planeiem a sua luta, e vibrem sem hesitações o golpe sobre o
patronato, nenhuma organização partidária, nenhum Governo bem
intencionado, nenhuma sorte estranha na conjuntura internacional ou na
disposição dos astros do céu lhes vai garantir um cêntimo de salário, uma
hora de descanso, um progresso mínimo. Só com a luta o conseguirão, e só
poderão lutar organizando-se para ela. Dia a dia. Empresa a empresa.
Classe contra classe.
(1) blogues.publico.pt/...
(2) teleafonica.blogspot.com.es/p/cajas-de-resistencia.html
(3) A Movistar é a empresa de comunicações móveis da Telefónica.

Ver também:
Sindicato dos Trabalhadores de Call Center
Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Telecomunicações e Audiovisual
Call Centers: à descoberta da ilha
Decreto-Lei n.º 134/2009, de 2 de junho

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

In
RESISTIR.INFO
http://www.resistir.info/portugal/call_centers_mai15.html
19/5/2015

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