domingo, 22 de abril de 2018

Marxismo, uma filosofia da praxis para a revolução


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 Jean Salem* 


Chegou-nos a dolorosa notícia do falecimento de Jean Salem. Deixa-nos assim um
ser humano excepcional, um dos grandes filósofos marxistas do nosso tempo, um
combativo revolucionário cuja penetrante inteligência abarcava todas as
expressões do que é humano. Alguém que, reflectindo profundamente acerca da
felicidade sabia que ela é, em última análise, inseparável da ideia de
revolução. De alguém cuja coerência e inteligência de pensamento e intervenção
tinham granjeado admiração e respeito em todo o mundo. Um grande amigo de
odiario.info.
 No ano em que passa o bicentenário do nascimento de Marx, fica-nos este vazio
do muito que ainda tinha a dizer-nos, mas também o rico património de reflexão
criadora que nos lega. De entre os vários textos seus que publicámos revisitamos
este, de 2013, e recuperamos palavras que acerca dele escrevemos: “o pensamento
de Jean Salem é uma notável confirmação da vitalidade e actualidade do marxismo.
Não de um marxismo académico, mas do marxismo reflectido por um académico que é
também um revolucionário.”
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Marx, mais actual que nunca
1. Marx não é apenas um «clássico» do pensamento filosófico. Estou convencido
que Marx é hoje mais contemporâneo para nós do que era há trinta ou quarenta
anos! Tomemos, por exemplo, o Manifesto do Partido Comunista. Lembro-me de,
quando o lia pela primeira vez, ir perguntar ao meu pai: que significa essa
«concorrência» entre operários que os autores falam em várias ocasiões? A
concorrência entre capitalistas, a concorrência mesmo no seio da burguesia, isso
era na verdade evidente; mas a possibilidade de que existisse uma concorrência
entre trabalhadores não parecia tão evidente, numa época em que os sindicatos
eram fortes, em que a classe operária estava poderosamente organizada, numa
época de pleno emprego (ou quase) e de políticas «keynesianas». Hoje em dia,
pelo contrário, qualquer pessoa remetida para empregos cada vez mais precários e
menos frequentes compreenderia isto desde a primeira leitura: efectivamente, o
sistema repete-lhe constantemente «se não estás contente, e mais ainda se
protestares, há mais dez que estão dispostos a ocupar o teu lugar!». Penso
também naquele trecho em que Marx e Engels falam da prostituição, na altura
muito alargada entre a classe operária inglesa: não era um fenómeno de massas na
década de 1960. Mas, nos nossos dias, depois da grande «libertação» de
1989-1991, há mais de 4 milhões de mulheres que foram – literalmente – vendidas:
e esta atmosfera de mercantilização generalizada dos objectos e dos seres
humanos, a nossa, facilita-nos, mais uma vez a compreensão imediata do texto do
Manifesto. Definitivamente, há muitas coisas que poderemos encontrar em Marx
adaptando-as, claro está, à nossa própria época. Por isso é que continuo a
acreditar que o marxismo se mantém, como filosofia, inultrapassável do nosso
tempo.
Em primeiro lugar não se pode falar, a não ser por graça, de desaparecimento da
classe operária, visto que a China e a Índia, que têm quase metade da população
humana, se converteram nas duas principais manufactureiras do mundo que
alimentam o comércio mundial. Além disso, subsistem alguns operários ainda
noutros lugares, não acham? Isto, sem contar com todos esses imigrantes que
trabalham na Europa ou nos Estados Unidos, amiúde clandestinamente e, mais
amiúde ainda, invisíveis ou quase. Isto parece-me dificilmente contestável… Na
realidade, estas considerações relativas à pretensa extinção da classe operária
parecem-me euro – ou «ocidental»-centrica. Em grande parte nascem sobre o húmus
da antiga exploração colonial; germinam num mundo em que a classe operária
ocidental pôde e pode continuar (ainda que em menor medida) a beneficiar, embora
mais exiguamente, de migalhas provenientes da pilhagem de países pobres. Noutros
tempos esta realidade contribuiu para prevenir a explosão de uma verdadeira
revolução na Europa, e as estruturas capitalistas puderam assim manter-se,
embora muito contestadas por correntes políticas poderosamente organizadas.
Desindustrializai à toa; devastai regiões inteiras fechando os locais de
produção em que antes se concentravam muito visivelmente operários qualificados.
Não apanheis nunca o metro antes das 7H30 da manhã; olhai fixamente para a
televisão, que não vos dá quase nunca a palavra; e sobretudo, não viajeis:
tereis então suficientes razões para não ver a classe operária e até mesmo para
imaginar que está morta…
Para isso, e em muitas ocasiões como foi o caso de 1981, a social-democracia
serviu de «salva-vidas» do sistema e de amortecedor extremamente eficaz para
deitar por terra qualquer tentativa de alteração social. Mas a crise está aí. Aí
mesmo. Rir-se-iam na nossa cara se na década de 1960 algum de nós tivesse o
atrevimento de defender a tese da pauperização absoluta da classe operária nos
países capitalistas desenvolvidos: então, nos EUA uma família operária podia,
sem dificuldades de maior, ter dois carros… Daí para cá não acabámos de acordar
das ilusões de um passado muito recente (o da época que o pensamento único
decidiu baptizar de «Os Trinta Gloriosos Anos»). Estamos confrontados com um
mundo preenchido de insuportáveis desequilíbrios, um mundo em que o poder
aquisitivo dos que trabalham (e dos que estão impedidos de o fazer) se reduz à
sua expressão mais simples.
Em suma, apesar da destruição da escola pública, da saúde pública, de tudo
aquilo que foi conquistado graças à luta, subsistem ainda, sem margem para
dúvidas, possibilidades de concentrações, de alianças, não só de operários
franceses e operários italianos, europeus, mas também de operários europeus e
trabalhadores «extracomunitários», como acontece no vosso país. Todos têm,
fundamentalmente, interesses convergentes, sejam quais forem as diferenças
existentes entre os seus percursos, as suas crenças privadas, os seus ritos, os
seus hábitos alimentares. Sejam quais forem os mexericos do fascismo vindouro,
ou que poderá, pelo menos, voltar. Toda aquela gente é, com efeito, mercadoria
humana. Uma mercadoria cada dia tratada com menos consideração.
A crise
2. Não é segredo para ninguém: o sentimento de declínio invadiu a maior parte da
Europa. Nos nossos países evoca-se hoje incessantemente, com uma nostalgia não
desprovida de amnésia, os «30 gloriosos» (que não eram gloriosos para toda a
gente!), isto é, os 30 anos de expansão económica, de pleno emprego e de
crescimento industrial que se seguiram ao fim da segunda guerra mundial. Até ao
fim da década de 1970, inclusive aos olhos de muitos comunistas, a ideia de que
nos países da OCDE a classe operária pudesse um dia empobrecer parecia uma
ilusão. O capitalismo ocidental parecia destinado a puxar indefinidamente para
«cima» o conjunto das rendas.
Com a crise surgida em 1973, estas utopias começaram a perder todo o crédito.
Dezenas de milhares de pessoas começaram a dormir nas ruas. O desemprego começou
a respeitar a mais de 26 milhões de pessoas na Europa: na Grécia, na Irlanda ou
em Portugal a história repete-se e verdadeiros fluxos migratórios começam a
formar-se em direcção ao Canadá ou à Austrália. Por falta de meios, os sectores
públicos deterioram-se: os transportes urbanos, mas também o sector da saúde, o
da educação, etc.. Os salários são cortados, comprimidos, ao ponto de quase um
francês em cada seis viver actualmente sobre a «linha de pobreza». As camadas
médias estão confrontadas com dificuldades que, há 20 anos, pareciam
impensáveis. Em resumo, a afirmação do jovem Engels segundo a qual a sociedade
capitalista tende a dividir o mundo em milionários e pobres (…bis die Welt in
Millionäre und Paupers geteilt ist) [1] não poderá surpreender ninguém.
Do ponto de vista ideológico é preciso constatar que, como noutras épocas de
crise, a mobilização dos trabalhadores (ou dos não trabalhadores!) em luta pela
sua sobrevivência económica e social depara com redobradas dificuldades. O fim
da União Soviética e a forma como esta foi apresentada pela propaganda oficial
formataram muitos dos que tinham 15 ou 20 anos em 1968 nas suas viagens e na sua
adesão, mais ou menos total, ao sistema vigente. O oportunismo afluiu aos
partidos comunistas oeste-europeus que pareciam considerar como dados
intangíveis o estado da muito relativa «democracia» e da ainda mais relativa
prosperidade que prevalecia ainda na Europa até à década de 80, mesmo quando
esta prosperidade começava a marcar passo, e esta «democracia» estava prestes a
ser sistematicamente destroçada (votações espezinhadas, guerra permanente contra
as liberdades públicas e os direitos sindicais, crescimento exponencial das
medidas de controlo social e da confusão burocrática neoliberal, etc.).
E é assim que a Europa, em meados dos anos 1980, pôde contar com 17 governos
conduzidos por social-democratas, com os resultados que se conhecem:
financeirização da economia em demasia, crescente descomprometimento do Estado
salvo no que respeita à «vigilância nocturna» (exército, polícia) perfeita
confusão entre da «direita» e «esquerda», que se revezam desde esta época na
imposição aos povos de um plano de austeridade após outro (lembremos a propósito
o que disse um dia Gianni Agnelli, o patrão da FIAT: «quando as coisas se
complicam a tal ponto, a esquerda faz melhor o trabalho que a direita»). Tal
como em França onde no espaço de trinta anos, a parte da riqueza produzida que
passou da remuneração do trabalho, isto é dos salários, para a remuneração do
capital, isto é, sobretudo dividendos, corresponde a 10 pontos do Produto
Interno Bruto (PIB)…
O nosso seminário “Marx no século XXI” (na Sorbonne)
3. Foi neste contexto em que as actuais lutas operárias são, infelizmente e por
enquanto, essencialmente defensivas, neste clima de anticomunismo generalizado
com um perfume de pré-guerra, que lançámos em 2005 com alguns colegas um
seminário semanal chamado «Marx no século XXI». Na Sorbonne. Para mostrar, ali,
a presença do marxismo que alguns diziam estar «morto» desde há muito tempo. Por
vezes este seminário junta 200 pessoas, nunca menos de 100. Vinde ver! Tomai
nota deste endereço: http://chspm.univ-paris1.fr/spip.php?article271.
Aí vereis que filmámos mais de 150 comunicações feitas por quase outros
tantas/os convidadas/os. Dezenas de milhares de pessoas acompanham semanalmente
na internet as nossas conferências e outras jornadas de estudo.
Guardadas as distâncias (!), a ideia que presidiu ao lançamento deste seminário
foi um pouco análoga à que, noutros tempos, levou Lenine a fundar o seu jornal
Iskra, um jornal destinado, dizia, a reunir, a federar mil energias até então
dispersas na Rússia dos czares. Para nós, tratava-se de convidar, uma após
outra, todas aquelas e todos aqueles que, até aqui, trabalhavam ou julgavam
trabalhar «no seu recanto», isoladamente, nas condições actuais de pesquisa em
França e fora: pois em França particularmente as pesquisas marxistas foram
marginalizadas desde há muito tempo, quando não foram mesmo censuradas.
É claro que a vinda de Domenico Losurdo, Enrique Dussel, David Harvey ou de
George Labica, André Tossel, Daniel Bensaïd, Michael Löwy, Slavoj Zizek, etc.,
constituíram grandes momentos do seminário! E é também claro que, do ponto de
vista político, sentimo-nos muito próximos de pessoas como Losurdo ou Labica
(este último infelizmente já desaparecido). Quanto a alguns outros dos nossas/os
amigas/os e convidadas/os, pesar da estima que tenho por eles, tenho vários
desacordos com eles, particularmente no que respeita à sua maneira de abordar a
questão do muito necessário balanço da experiência do «socialismo real».
Dito de outra maneira, vemo-nos reduzidos neste momento a adaptar-nos ao que
Immanuel Wallerstein chamou os «mil marxismos»: aí está o efeito de uma situação
tão apaixonante como inquietante, de uma situação que é a nossa, e que se
caracteriza, como dizem, por uma cruel falta de organização revolucionária na
Europa, no momento em que o sistema vacila nas suas bases.
O trabalho humano e o sistema do dinheiro
4. Como não é possível falar de tudo, falarei agora do jovem Marx, o que não
significa (acaso será útil que o precise?) que esqueça o Manifesto do Partido
Comunista ou o Capital! Começarei por lembrar um belo texto de Cícero (Dos
Deveres, II, IV, 14-15) que me parece, além dos séculos, susceptível de
esclarecer o presente trecho: «Pensa ainda nos aquedutos, no desvio dos cursos
de água, na irrigação dos campos, nos diques contra as inundações, nos portos
construídos pelas nossas mãos; como seria possível isso tudo sem o trabalho dos
homens? Através destes exemplos, entre muitos outros, fica claro que o benefício
e a utilidade que retiramos de coisas inanimadas não poderiam ser alcançados de
nenhum outro modo, a não ser pelos braços e o trabalho dos homens. Quanto aos
benefícios e as vantagens que obtemos dos animais, como poderíamos obtê-los se
os homens não viessem ajudar-nos? Uma vez que os primeiros que descobriram o
jeito de empregar cada espécie de animais foram certamente os homens; desde essa
época, não poderíamos sem o trabalho dos homens nem apascentar os animais, nem
domesticá-los nem abrigá-los, nem tirar proveito útil, nem especialmente
exterminar os animais daninhos, nem apropriar aqueles que podem servir para
nosso uso. […] É só por isso que a civilização humana se distingue da maneira de
viver dos animais».
Então, para o jovem Marx, para o Marx dos Manuscritos de 1844, a via de acesso
ao estudo do trabalho é a análise dos sintomas da sua perversão. Para Marx
trata-se de descrever a alienação nas suas formas ideológicas para regressar às
suas formas concretas, à sua origem: àquilo que se chama o trabalho alienado.
A alienação económica é claramente designada, em 1844 como a da vida real. A
miséria resulta da essência do trabalho actual. Do mesmo modo que noutro tempo
se opuseram amo e escravo, mais tarde patrício e plebeu, depois soberano e
vassalo, vemos hoje oporem-se o que não trabalha e o trabalhador, escrevera
Gans, um professor hegeliano a cujos cursos Marx assistira em Berlim
(reconhece-se aqui uma frase que se encontrará no Manifesto). Assim, o que se
opõe à emancipação da humanidade é a desigualdade social que levanta os homens
uns contra os outros.
A realidade é esta: se é bem verdade que o trabalho produz maravilhas para os
ricos, ele é a miséria para o operário. Adam Smith, o fundador da economia
política clássica, afirma que, na origem, «o produto inteiro do trabalho
pertence ao operário» [1]. Mas reconhece ao mesmo tempo que é a parte mais
pequena e estritamente indispensável que lhe cabe. A economia política burguesa
explica assim ao mesmo tempo que tudo se compra com o trabalho, e que os
proletários estão obrigados a venderem-se todos os dias. Por um mesmo movimento
do pensamento proporcionaram-se os meios para não reconhecer a alienação do
trabalho. A sua objectividade de fachada ratifica, consagra a alienação dos
homens. Não se preocupa com a vida do homem, e é essa a sua infâmia.
Quando considera o proletário somente como um operário, quando vê no homem
apenas uma máquina de consumir e produzir, um «burro de carga», quando considera
a vida humana como um capital, quando abandona o homem no tempo em que o médico
não trabalha, o juiz e o coveiro e o preboste de mendigos, dizem ao operário: se
por acaso não tiveres trabalho, portanto nem salário – como não existes para mim
como homem mas apenas como operário, podes morrer de fome e ser enterrado. A
categoria de salário assume assim para o economista a de mínimo vital para o
operário e a sua família, - mínimo para que a raça dos operários não desapareça.
E esta é indiferença dos teóricos a respeito dos homens encontra uma simbologia
perfeita no modelo da lotaria proposto por Smith: «Numa lotaria perfeitamente
igual, os que tiram os bilhetes premiados devem ganhar tudo o que perdem os que
tiram os bilhetes sem prémio. Numa profissão em que vinte fracassam por cada uma
que tem sucesso, este último tem de ganhar tudo o que poderia ter sido ganho
pelos vinte que fracassaram» (that one ought to gain all that should have been
gained by the unsuccessful twenty) [2]. E o reino do dinheiro manifesta-se,
evidentemente, pela proliferação anárquica das necessidades, sem qualquer
relação com as exigências naturais do homem.
Então, se o trabalho só aparece no discurso dos economistas sob a forma da
actividade que proporciona um ganho, isso quer dizer que o operário no «estádio
da economia» (é assim que Marx chama então ao capitalismo), já não pode ter mais
actividade do que para adquirir os meios de subsistir. Por isso, o objecto do
trabalho é indiferente para o operário, pois este vê-se espoliado por outro
homem, pelo capitalismo que o domina como deus domina o seu servidor, no preciso
momento em que os milagres dos deuses se tornam supérfluos devido ao trabalho
humano. O que conta para o trabalhador é quase exclusivamente a remuneração em
dinheiro que o capitalista aceitará dar-lhe depois da operação de produção.
E a alienação do objecto do trabalho (o facto de ter que o ceder a um outro)
mais não é do que o resumo da alienação, do desapossamento na actividade de
trabalho própria. O operário, ao depender cada vez mais de um trabalho penoso
unilateral, mecânico, somente trabalha para manter a sua vida, debilita-se com
esse trabalho, que perdeu para ele a aparência de manifestação de si-próprio.
Todo o seu penoso trabalho é exterior, estranho ao operário, já que não realiza
a sua essência, mas pelo contrário encontra nele a sua negação. Definitivamente,
o trabalho deveria ser gozo da vida, prazer e o operário não se sente bem com
ele próprio mais do que fora do trabalho.
A necessidade social e a necessidade humana não têm mais nada de comum, o
individuo é, em terceiro lugar, totalmente separado do que Marx, depois de
Feuerbach, chama a vida genérica, o género (die Gattung). Algo assim como a
«essência» do homem. Marx abandonará mais tarde esta categoria, no fim de contas
muito abstracta. Mas o essencial do que afirma ainda é actual: o trabalho
lucrativo aliena, destrói a natureza do homem, isto é, o seu ser-sociável. O
trabalho, a vida foram conduzidos a um mero meio de sobrevivência. A «essência»
do homem tornou-se assim o meio da sua existência.
A indústria constitui o «livro aberto» das forças humanas essenciais. Quase não
encontramos hoje objectos puramente naturais: a actividade humana é «a base de
todo o mundo sensível tal e como existe nos nossos dias [3]. E no entanto, como
se tornou alheio ao produto do seu trabalho, para a actividade vital e para o
ser genérico, o homem tornou-se estranho para o outro homem. O outro é um poder
hostil ou, no máximo, um objecto que se pode utilizar para satisfazer interesses
egoístas. O capitalismo leva assim até o fim o que Marx chamará mais tarde no
Capital a reificação das relações sociais, isto é, a dominação da matéria inerte
sobre os homens. Leva ao paroxismo o que Georgy Lukács chamará ainda mais
claramente, em História e consciência de classe (1923) a «dominação da economia
sobre a sociedade».
Por isso, depois de indicar desde 1843, as insuficiências do que se chamava o
«partido político histórico», Marx nesses manuscritos redigidos em 1844, parece
abraçar a ideia de que «não é a crítica, mas o proletariado a força motriz da
revolução». Esta ideia, o Manifesto, tal como toda a actividade prática,
dar-lhe-ão vida, fá-la-ão passar aos factos.
Lenine, depois de Marx
5. Como sabeis, Marx declara na 11ª das suas Teses sobre Feuerbach que até
àquele momento os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo, mas que
a partir desse momento trata-se de o transformar. Na sua própria biografia,
podemos ver que colaborou na Gazeta Renana, proibida em 1843. Viu-se então
obrigado a exilar-se em Paris. Em 1845 foi expulso de França a petição de
Humboldt, o embaixador da Prússia, e vai então para Bruxelas. A seguir, depois
do sismo das revoluções de 1848, a reacção triunfa em toda a Europa. De Junho a
Agosto de 1849, Marx tem de se refugiar de novo em Paris (de onde é de novo
expulso), e depois em Londres, onde ficará quase todo o tempo. Conheceu grandes
dificuldades materiais, uma miséria extrema, a ponto de a sua mulher e ele
perderem quatro dos seus sete filhos. Definitivamente, Marx teve a vida de um
militante revolucionário, de um homem comprometido, assediado, e não a de um
filósofo de gabinete. Foi também em Londres que em 28 de Setembro de 1864
participou na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores; e é em
nome do Conselho Geral desta 1ª Internacional que redigirá, em 1871, três
«discursos» em que exalta a obra dos communards parisienses e analisa as causas
da sua derrota. («sabes, escreve em Junho ao seu amigo Kugelmann, que durante o
tempo todo da última revolução parisiense fui denunciado como o grande chefe da
Internacional pelos papéis de Versalhes e pela repercussão entre os jornalistas
daqui. […] E agora, além disso, o Discurso […] Provoca um ruído infernal e tenho
a honra neste momento, de ser o homem mais caluniado e mais ameaçado de
Londres»).
As seis teses que resumem o essencial daquilo que Lenine disse mais tarde a
respeito da ideia de revolução, e também da acção própria que Lenine conduziu na
Rússia no início do século passado, parecem assim, muito logicamente, prolongar
a postura e a inspiração fundamental de Marx. Para acabar permitam-me referir
uma vez mais estas seis teses:
As seis teses que para mim resumem o essencial daquilo que Lenine disse, mais
tarde, a respeito da ideia de revolução, e também da própria acção que Lenine
leva avante na Rússia no início do século passado, parecem assim prolongar muito
logicamente a postura e a inspiração fundamental de Marx. Para acabar,
permiti-me referir, mais uma vez, estas seis teses:
1) A revolução é uma guerra. Lenine compara a política com a arte militar e
sublinha a necessidade da existência de partidos revolucionários organizados
disciplinados, pois um partido não é um clube de reflexão (dirigentes do Partido
Socialista: obrigado pelo espectáculo!).
2) Para Lenine, tal como para Marx uma revolução política é também, e sobretudo,
social, isto é uma mudança na situação das classes em que a sociedade se divide.
Isto significa que é sempre conveniente perguntar qual a natureza real do
Estado, da «República». Assim, a crise do Outono de 2008 mostrou, com evidência,
como nas metrópoles do capitalismo o Estado e o dinheiro público podem estar ao
serviço dos interesses dos bancos e de um punhado de privilegiados. Dito de
outro modo, o Estado não está, em absoluto, acima das classes.
3) Uma revolução faz-se de uma série de batalhas, e cabe ao partido de
vanguarda, em cada etapa da luta, escolher a palavra de ordem adaptada à
situação e às possibilidades. Sem isso, o movimento esgota-se e desanimam os que
esperaram em vão que se lhes indicasse a natureza precisa dos objectivos a
atingir e o sentido geral da marcha…
4) Os grandes problemas da vida dos povos sempre se resolveram pela força,
também sublinha Lenine. «Força» não significa, longe disso, violência aberta ou
repressão sangrenta contra os outros! Quando milhões de pessoas decidem
convergir num lugar, por exemplo na Praça Tarr no centro do Cairo, e fazem saber
que nada os fará recuar frente a um poder detestado, estamos já, e em pleno, no
registo da força. Segundo Lenine, trata-se de atacar as ilusões de um certo
cretinismo parlamentar ou eleitoral que conduz, por exemplo, á situação em que
estamos agora: uma «esquerda» concentrada quase exclusivamente nos prazos de que
uma imensa massa de cidadãos não espera, e com razão…, quase nada.
5) Os revolucionários não devem desprezar a luta pelas reformas. Lenine estava
consciente de que em determinados momentos uma dada reforma pode representar uma
concessão temporária, ou mesmo um rebuçado, concedido pela classe dominante para
melhor adormecer os que resistem. No entanto, considera que uma reforma
constitui uma base nova para a luta revolucionária.
6) Depois do início do século XX, a política começa onde estão os milhões ou
mesmo dezenas de milhões de homens. Ao formular esta sexta tese Lenine pressente
que os lares da revolução tendiam a deslocar-se cada vez mais para os países
dominados, coloniais ou semicoloniais. De facto, desde revolução chinesa de 1949
até ao período das independências, na década de 60 do século passado, a História
confirmou plenamente este clarividente prognóstico.
Definitivamente, há que ler Lenine, depois do dilúvio e do fim do «socialismo
real». Lê-lo e relê-lo. Há que ler Marx. Ou relê-lo. Há que estudar os seus
escritos sempre tão actuais. Para preparar o futuro.

Notas:
 [1] SMITH (A.), Recherches sur la nature et les causes de la richesse des
nations [1776], I, VIII ; trad. G. Garnier [revue par A. Blanqui], Paris, GF
Flammarion, 1991, t. I, p. 135.
 [2] Ibid., I, X, 1ª secção : “Des inégalités qui procédent de la nature même
des emplois” ; ob. cit., t. I, p. 180.
 [3] Marx e Engels escreveram isto em 1845 na Ideologia alemã.
Compostela, Galiza, 20 de Abril de 2013
Este texto é a Comunicação de Jean Salem nas XVII Jornadas Independentistas
Galegas organizadas por Primeira Linha
* Jean Salem, amigo e colaborador de odiario.info, é Professor de Filosofia na
Sorbonne, França.
Tradução de José Paulo Gascão, a partir da versão em galego, distribuída nas
Jornadas Independentistas Galegas.
In
O DIARIO.INFO
https://www.odiario.info/marxismo-uma-filosofia-da-praxis-para/
15/4/2018

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