quarta-feira, 4 de abril de 2018




Pedagogia alternativa e suas vicissitudes em uma escola de ensino fundamental I



Candido G. Vieitez



Introdução

A chama do MST aqui ainda é muito forte. Acho que muitos assentamentos perdem o foco. Às vezes vendem a terra e vão para a cidade. Perdeu o foco. Nós ainda somos muito fortes nisso. (Neudi[1], dirigente da Cooperunião).



            O movimento operário e popular (MOP), desde tempos pretéritos tem se preocupado em oferecer aos trabalhadores alguma modalidade de educação. Essa pode ser simplesmente supletiva ou complementar à educação oficial, como ocorre, por exemplo, quando um sindicato organiza um curso profissionalizante para seus associados (MANFREDI; BASTOS, 1997). Ou essa atividade educativa reveste um caráter militante no sentido de que as organizações buscam proporcionar aos estudantes sua concepção sobre o que fazer político, assim como habilidades específicas. Esta variante, usualmente constituída por cursos de curta duração é prática relativamente frequente entre partidos políticos, sindicatos ou movimentos.

            O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é nacionalmente conhecido por sua luta pela reforma agrária. Contudo, também é muito significativa sua atividade educacional, que é extensa e diversificada. A maior parte dessa atividade está possivelmente constituída pelo que é clássico no âmbito do MOP, vale dizer, cursos livres[2] que envolvem sobretudo ativistas ou pessoas já sensibilizadas pelo Movimento. Entretanto, o Movimento, num procedimento um tanto insólito[3], está também comprometido com a educação oficial certificadora.

            O que é a educação escolar certificadora? Os termos educação e escola se tornaram populares e fazem parte do entendimento geral como se fossem categorias universais. Se um partido ou sindicato promove uma atividade educativa discreta, de curto prazo, chama-a de curso. Porém, uma atividade educacional recorrente geralmente faz jus ao título de escola. Por isso, são comuns e tradicionais designações tais como escola sindical, escola de cooperativismo e assim por diante.   

Esse procedimento denominativo atende às necessidades de comunicação na vida cotidiana. No entanto, devemos ter em mente que, na ordem social burguesa, escola propriamente dita é apenas a escola oficial. Ou seja, aquela instituição educativa que está habilitada pelo Estado a fornecer diploma ou certificação legal. Este tipo de certificação, observadora dos cânones estabelecidos pela lei, constitui um pré requisito tanto para a progressão no sistema escolar, quanto para o acesso às mais diversas profissões ou carreiras. Em suma, na sociedade subsistem muitas atividades educativas, cursos e escolas, no entanto só a escola oficial certificadora estatal ou privada, possui a propriedade de atuar como habilitadora universal da força de trabalho, que é ao que se refere, efetivamente, de modo esópico, a consagrada expressão formar para a cidadania.

É óbvio que esse monopólio de atribuição de mérito faz com que a escola seja uma instituição de importância crucial para os trabalhadores e, portanto, também para o MOP. Tanto é assim que nos últimos tempos, problemas escolares vários tem propiciado a eclosão de greves docentes e mobilizações estudantis dentre outros eventos.  

Ainda assim, os diversos entes do MOP se situam perante essa estratégica instituição de modo diverso. Os sindicatos de docentes, por exemplo, têm estado focados sobretudo na questão salarial, em questões relativas às condições de trabalho e, subsidiariamente, na luta pelo ensino público. O movimento estudantil, por seu lado, mais sensível às questões da organização do sistema escolar, preocupa-se com assuntos relativos à oferta de vagas, à qualidade e gratuidade do ensino, etc.

Podemos afirmar que partidos, sindicatos e movimentos têm lutado pela escola estatal gratuita e por incrementos escolares quantitativos e qualitativos. No entanto, em geral, esses entes não desenvolveram uma crítica sistemática da escola oficial e tampouco criaram um projeto pedagógico alternativo.  Isso é possivelmente mais circunstancial do que fato ossificado[4], mas, de qualquer modo, é a atividade pedagógica do MST que tem aparecido como sendo a exceção.       

Voltemos, pois, ao MST. Este movimento, praticamente desde que surgiu em 1984, tem atribuído grande importância à educação. As suas atividades educativas livres são inúmeras. Porém, como observado, o mesmo também tem investido na educação certificadora. 

As razões para esse posicionamento são várias e mencionamos apenas o primordial.  Acampamentos e assentamentos da “reforma agrária” situam-se comumente em lugares excêntricos, o que pode fazer com que o acesso à escola se torne inviável ou dificultoso. Essa situação, quando se verifica, constitui um problema para o MST uma vez que, evidentemente, é um desastre se crianças e adolescentes ficam sem escola.

Esse problema tem sido enfrentado pelo Movimento de várias maneiras. O essencial consiste na conclamação do Estado para que este exerça sua atribuição educacional, enquanto que, ao mesmo tempo, também se empenha na criação de escolas supletivas provisórias e escolas próprias[5].  Concomitantemente, o Movimento sempre busca influir na atividade educacional dessas escolas. Neste caso, o seu leitmotiv decorre basicamente de seu interesse em socializar sua concepção de mundo e seu programa de ação[6], bem como em implementar conhecimentos e habilidades específicas demandadas pela realidade dos acampamentos e assentamentos que, não são atendidos pela escola oficial. Com esses objetivos em vista o setor de educação do MST elaborou sua própria concepção pedagógica. Esta, que abarca as várias dimensões da vida escolar é crítica, divergente da pedagogia oficial e, em parte, antitética à mesma (DAL RI; VIEITEZ, 2010).

Nenhuma atividade educacional desenvolvida por organizações de trabalhadores consegue neutralizar completamente as injunções imanentes à ordem social. Em se tratando da escola, essas injunções apresentam uma formatação muito concreta uma vez que, a maior parte da atividade escolar se encontra duplamente determinada: de um lado pelas funções que a escola desempenha na estrutura social, e de outro, pelas determinações escolares legais postas pelo Estado.

Em razão dessas determinantes, o estabelecimento de uma pedagogia alternativa à oficial na escola é sempre um fenômeno bastante relativo. Porém, o fato de que seja relativo não quer dizer que seja ineficaz. E este é o motivo pelo qual os adeptos da pedagogia do Movimento lutam para ter o maior controle[7] possível sobre a produção pedagógica nas escolas em que conseguem estabelecer uma ascendência política.         

  Essa observação aplica-se às escolas estatais e é válida também para as do MST. É claro que nestas, o Movimento pode ter um controle muito maior do que tem em escolas do Estado. Ainda assim, a sua liberdade é bem relativa uma vez que não é possível uma prática educacional integralmente diferente da existente. Afora esse aspecto, a possibilidade de estabelecer um controle, o que sempre implica qualidade, intensidade e abrangência determinadas, depende de circunstâncias variáveis que envolvem tanto a vida civil e estatal, quanto a vida do próprio Movimento, especificamente, ou, do MOP em geral .

O objeto de análise neste trabalho é a escola Construindo o Caminho de ensino fundamental I, situada no assentamento da reforma agrária Conquista na Fronteira (Cooperunião), em Dionísio Cerqueira, Santa Catarina, Brasil.  

Por que a Construindo o Caminho (ECC), uma escola de crianças?  Dentre outras razões porque em 2002, quando lá realizamos a primeira investigação de campo, a ECC era possivelmente a única escola de crianças no país cujos alunos não eram estritamente infantes sob a tutela de adultos, uma vez que em função do princípio de auto-organização dos alunos, e da vigência da Assembleia Geral, ostentavam certa capacidade de autogoverno (Mandel; Vogt, 1973). No entanto, cerca de treze anos mais tarde, quando voltamos a observar a escola[8], tudo estava mudado, pois, a pedagogia alternativa que caracterizara a escola desde o início de suas atividades, ainda que não tivesse desaparecido, encontrava-se apreciavelmente retraída.    

Aqui assinalamos apenas as mudanças mais importantes que ocorreram na prática pedagógica da escola. Portanto, sem qualquer pretensão de realizar uma apresentação inclusiva do assunto.  E indicamos também alguns dos elementos que foram decisivos, ou, pelo menos, que contribuíram para a viragem observada.

Para a consecução deste estudo, além dos procedimentos usuais de pesquisa bibliográfica e documental, valemo-nos de observação da escola in situ, assim como da realização de seis entrevistas semi-estruturadas com professor, alunos, funcionário e um dos dirigentes da Cooperunião.

Acrescentemos que esta investigação foi realizada como parte de um amplo projeto de pesquisa coletiva sobre a educação em escolas com influência do MST. O mesmo foi coordenado pela Professora Neusa Maria Dal Ri, e desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa Organizações e Democracia (GPOD), que por sua vez é adstrito ao programa de pós graduação em educação da Universidade Estadual Paulista (UNESP) campus de Marília. 

A ECC

            A ECC é uma escola municipal. Mas, foi erigida em seu próprio terreno pela Cooperunião, que é a cooperativa de produção agropecuária que se formou no assentamento.

Em 1990 a escola de ensino fundamental municipal foi formalizada atendendo alunos de 1ª e 4ª séries. [...]. Houve um embate de anos entre a comunidade assentada e a Secretaria de Educação e o poder Municipal para implantar e manter a proposta educacional que orienta a ECC.

As dependências da escola estão divididas em: duas salas de aula; uma sala de reunião; três banheiros, uma cozinha e refeitório conjugados; uma biblioteca. Possui, ainda, equipamentos utilizados como recursos pedagógicos, tais como, televisão, vídeo e um mimeógrafo a álcool. Na área externa há um parquinho infantil com vários brinquedos jardins e um amplo gramado (DAL RI; VIEITEZ, 2008).



            A parte física da escola continua sendo basicamente a mesma. Quanto ao mais, como observado, ocorreram mudanças significativas.

Transmudações pedagógicas

            Enumeramos os principais elementos afetados pelas mudanças que ocorreram na ECG posteriormente a 2002.

I-Manutenção da escola

            A escola esteve a pique de ser fechada. O motivo principal foi a política do Estado de fechamento de escolas rurais. Porém, houve também uma razão endógena. Normalmente, a escola atendia por volta de trinta alunos, a maioria dos quais do próprio assentamento.  Num dado momento, porém, esse número chegou a ficar reduzido a quatro alunos.  

            Essa redução decorreu da dinâmica de funcionamento da própria cooperativa. De uma parte, muitas famílias deixaram a cooperativa, embora esta seja bem sucedida. “Tivemos bastantes mudanças na Cooperativa”, afirma Neudi. “Uns 20% das famílias preferiram sair da cooperativa e ir para lote individual”. E de outra parte, verificou-se forte movimento de migração dos jovens do assentamento para a cidade (GUINDANI, 2015).

             A atuação reivindicativa tenaz dos assentados junto às autoridades municipais possibilitou a manutenção da EEC. Além disso é plausível supormos que a qualidade do trabalho pedagógico realizado pela escola tenha incidido sobre a decisão do município. Com efeito, a ECC ganhou vários prêmios. E, independentemente das querelas sempre presentes entre o assentamento e a secretaria da educação por causa da pedagogia do Movimento, as autoridades educacionais reconheciam a seriedade e qualidade do trabalho que se realizava na ECC. É o que sugere o testemunho da professora Vanda: “A educação aqui é bem melhor. Pelas notas da provinha Brasil. E quando as crianças vão para o Estado [terminam a ECC] elas vão bem, são espontâneas, discutem, estão bem preparadas”.

            No entanto, para a manutenção da escola as autoridades exigiram uma contrapartida. A ECC deveria completar suas vagas com alunos do meio rural exógenos ao assentamento.

            O ingresso desses alunos, filhos de agricultores comuns, sem ligação com o MST, foi um dos vetores que levou ao arrefecimento da pedagogia originariamente praticada na escola.

II-Os professores

            A ECC conta com duas educadoras que são funcionárias municipais. Em 2002 a Cooperativa conseguia negociar com a Prefeitura a indicação dos professores, de modo a garantir que os educadores designados tivessem pelo menos certa afinidade com a pedagogia do Movimento. Há tempo que esse procedimento foi encerrado e o resultado é desfavorável àquela pedagogia.

O assentamento não mais consegue ter o controle que tinha sobre os professores. Antes tinha duas professoras que fizeram o magistério nas escolas do MST e tinham uma inserção no setor da educação. Quando é uma professora concursada do Município que entra na escola tem um impacto. Tem uma professora que enxerga a ECC como convencional. A X é uma professora concursada. Ela não é do assentamento. Ela não foi formada pelo MST. Ela fez um curso, mas não foi suficiente[9] .

            No que pudemos apurar. o afrouxamento da relação entre os professores e assentamento é relativo. No entanto, não podemos descartar a possibilidade de que esse descolamento tenha  efetivamente incidido na ECC em desfavor da aplicação do método pedagógico do Movimento.

III- O princípio de união entre educação e trabalho

            A união da educação com o trabalho real é um princípio da pedagogia do MST. É também o mais difícil de realizar na vigência da ordem social atual. A dificuldade é ainda maior em se tratando de uma escola de crianças. Ainda assim, nos “bons tempos” a ECC buscava ao menos uma aproximação com esse princípio, o que de acordo com Dal Ri e Vieitez (2008, p. 256) expressava-se no seguinte:

O trabalho realizado pelas crianças na Cooperunião é real, porém, fortuito, ou seja, não há uma ligação orgânica entre o ensino e a produção.

Na cooperativa dos educandos, as crianças trabalham de fato. Entretanto, essa cooperativa caracteriza-se mais como uma organização para fins pedagógicos do que econômicos. A maior parte da produção é de valores de uso, embora a cooperativa estabeleça algumas relações mercantis e gere uma pequena renda também, como por exemplo, a venda de mudas de plantas e flores.

A cooperativa Construindo o Caminho [praticamente indissociável da escola] é constituída por quatro equipes de trabalho que são: serviços gerais; subsistência; limpeza; e pedagógica e comunicação.



               Isso foi em 2002. Em 2015, não havia nada da mencionada organização, nem tampouco de suas atividades. Qual a razão?

O maior problema parece ter sido a posição dos pais da maioria das crianças, ou seja, agricultores não ligados ao MST. Para eles, a escola devia ensinar e as crianças estudar. De acordo com a professora Vanda[10]: “Aqui todos os pais sabiam da importância do trabalho das equipes. Havia um entendimento dos pais. Só que quando entraram as crianças de outra comunidade [os pais] não aceitaram”.

 Os pais questionaram as autoridades educacionais do município sobre essa prática. E as professoras, diretamente responsáveis pelo funcionamento da escola, interromperam essa atividade.

IV- O tema gerador

            Em 2002, com base nos ensinamentos de Paulo Freire, a comunidade escolar escolhia o tema gerador a ser desenvolvido durante certo tempo. Hoje em dia o setor de educação do Movimento está revendo a utilização dessa técnica pedagógica. Porém, à época era um dos preceitos de sua pedagogia. Seja como for, em 2015 o tema gerador continuava a ser trabalhado pelos alunos, porém, o mesmo passou a ser designado diretamente pela secretaria de educação do município.

V-A gestão democrática e a assembleia geral da escola

            Juntamente com o princípio de união do ensino com o trabalho, a gestão democrática é um princípio fundamental da pedagogia do Movimento.

            Em 2002, a ECC era imediatamente dirigida pelas duas professoras que respondiam à secretaria de educação. Mas, uma comissão formada por pais de alunos associados da Cooperunião, muito ativa, trabalhando em estreita cooperação com as professoras, constituía um importante vetor na determinação da prática educacional da ECC.

O mais importante, porém, era a existência de uma assembleia geral (AG) da escola, usualmente formada pelas professoras, funcionários e alunos, na qual todos tinham direito a voz e voto.

            A AG operava informalmente. E embora as professoras tivessem o domínio da pauta a ser examinada, o processo deliberativo da mesma não era meramente formal. Ao contrário, a maior parte das questões da vida cotidiana da escola eram ali apresentadas, discutidas e votadas.

É possível que para os pais exógenos à cooperativa, o fato de que crianças do ensino fundamental estivessem o tempo todo tomando decisões sobre o que fazer da escola soasse como um desatino. Mas, em contraposição a esse tipo plausível de senso comum, o que a pesquisa pôde apurar à época foi que nenhum desatino resultava das deliberações da AG.  

De qualquer modo, em 2015, essa prática democrática, tão estratégica na pedagogia do MST, também não mais estava presente na ECC.  Os motivos pelos quais foi abandonada essa prática não ficaram claros para esta pesquisa, ainda que como vamos ver à frente, voltando a esta questão, seja possível conjecturar que as razões foram tanto de ordem endógena quanto exógena. 

Acrescentemos que a comissão formada pelos pais, que fora tão ativa e importante tanto para a definição, quanto para a implementação da política pedagógica da escola, tampouco permaneceu imune aos acontecimentos, transmutando da condição de um formulador de política educacional ao papel de simples apoiador das atividades escolares, como é usual que ocorra com as associações de país na escola oficial.

VI-Conteúdos disciplinares

            As disciplinas ministradas na ECC eram as disciplinas oficiais. No entanto, em 2002, os conteúdos das disciplinas de humanidades, sobretudo, iam além do convencional. Naturalmente, a trajetória do MST enquanto lutador coletivo, bem como do próprio assentamento, estava bem presente. Mas, também estava presente uma narrativa a respeito da atuação histórica das classes trabalhadoras, suas personagens e suas lutas, a qual ao menos é mencionada na escola oficial.

Nessa época, o MST já tinha iniciado uma revisão do seu programa. Não obstante, a ideia clássica de reforma agrária, ainda constituía o cerne teleológico de sua atividade.   Assim sendo, as categorias ligadas à luta pela reforma agrária, tais como movimento social, acampamento, assentamento e cooperação, dentre outras, também faziam parte da formação dos estudantes.

            Afora a parte escolar propriamente, a Cooperunião – uma organização de trabalho associado que em 2002 já contava com um pequeno setor industrial – era uma fonte de experiências e aprendizados para as crianças[11]. 

            Também essa parte estava mudada em 2015. O problema principal teria sido, uma vez mais, a necessidade de adaptar o ensino aos estudantes que vinham de fora do assentamento. Os pais das crianças chegavam à Construindo Caminho com os estereótipos a respeito do Movimento que a propaganda oficial costuma divulgar. Assim, os conteúdos originários, críticos em relação à ordem social, e favoráveis aos camponeses e trabalhadores em geral, ficaram sob pressão.  

A nossa escola mudou bastante. Antes atendia crianças só do assentamento. Hoje atendemos outras comunidades. Houve uma mudança radical. Daí você envolve pessoas que politicamente não se envolvem com o Movimento. A gente comenta a luta do Movimento, mas a gente tem que ter outro olhar também. A gente tem que ter cautela no que falar. No começo [quando chegaram os alunos exógenos] a gente ficou meio assim. Não aceitaram a mística. A gente cantava o hino do Movimento, mas não canta mais. Mas, foi se encaixando devagar. Mas, a maioria dos pais aceitam numa boa. A gente fala da bandeira do MST, fala tudo e os pais vão aceitando. E gostam de nossa maneira de trabalhar (VANDA).



A título de conclusão

            Acima apresentamos os principais tópicos que marcavam a pedagogia da ECC em 2002, bem como as mudanças que tinha sofrido quando voltamos a observá-la in loco em 2015.  Embora sumária,[12]  acreditamos que a narrativa satisfaça o propósito informativo deste trabalho.   

            A reforma agrária foi defendida pelo MST em sua variante clássica, assim como a defende hoje em dia em sua variante popular. Embora a reforma agrária implique a distribuição de terras entre os trabalhadores o seu significado para o Movimento vai além disso.

 Os assentamentos da “reforma agrária”[13] são constituídos basicamente a partir da pequena propriedade rural familiar. Nesta, deve prevalecer, em princípio, o trabalho autônomo. No entanto, o perigo do trabalho autônomo cair sob a dependência e exploração de algum empreendimento capitalista é muito real, e quando isto ocorre o que resta dele não é muito mais que a forma.

  O Movimento busca superar tanto o trabalho alienado em sua forma típica, o assalariamento, quanto em suas expressões mediadas, que tantas vezes assumem as formas fantasmagóricas de pseudotrabalho autônomo.

Essa é a razão pela qual nas duas variantes de reforma agrária encontramos o conceito de cooperação[14] (BEAVOIS, 2008; VIEITEZ, DAL RI, 2015). Na visão do Movimento, a cooperação, que contempla diversas modalidades, seria o modo de pelo menos dar início à superação das limitações da pequena propriedade agrária, dentre as quais se encontra, inclusive, a possibilidade de ser reabsorvida pelo empreendimento capitalista.  

Sob a bandeira da reforma agrária tradicional, o MST procurou impulsionar uma forma de cooperação avançada, a cooperativa agropecuária de trabalho associado. Sob essa modalidade os agricultores reuniriam seus lotes individuais para constituir a propriedade de um coletivo, dando origem, portanto, a um trabalhador coletivo democraticamente autogovernado e tendente à igualdade social.

Essa proposição não teve muito sucesso. E, em seu VI Congresso, o MST enunciou um novo programa denominado Reforma Agrária Popular, no qual tem centralidade a agroecologia.  Tudo indica que o conceito de agroecologia está, todavia, por ser melhor clarificado. Porém, não há dúvida que em seu cerne está a propositura de superação do trabalho alienado, o que de um modo ou outro conclama, uma vez mais, à implementação de formas diversas de cooperação, ainda que na prática isso seja contraditório e de difícil viabilização.

Desde o acampamento o MST sempre priorizou fazer o debate da cooperação. É um dos primeiros trabalhos que o MST e o setor de produção faz no Movimento. Tem várias formas de cooperação. Não precisa ser necessariamente a Cooperativa de Produção Agropecuária, que é a forma mais difícil e mais avançada. Mas não é fácil. Quem está no acampamento almeja a pequena propriedade (GUINDANI)

.

Na pedagogia do Movimento reencontramos a problemática do trabalho. Essa o vê como uma categoria ontológica do ser social, o fundamento das relações dos homens com a natureza e consigo mesmos. Mas, o trabalho está sujeito a desenvolvimentos e contradições e na sociedade burguesa encontra-se alienado (MÉSZARÓS, 2006) no capital, de modo que em vez de ser a razão do engrandecimento do trabalhador, é a razão de sua miséria, de sua opressão e exploração pela classe dominante.

A escola capitalista está encarregada de formar os cidadãos com vistas à reprodução do capital, isto é, à habilitação da força de trabalho para que esta possa vir a ser consumida de modo produtivo pelo capital como força de trabalho assalariada, ou, como ocorre frequentemente hoje em dia, como força de trabalho pseudo-autônoma.

Mas, não se trata somente de que a escola prepara desse modo para o exercício da denominada cidadania, se não que, ela própria, enquanto unidade de produção pedagógica, opera mediante a utilização de trabalho alienado de professores e funcionários, assim como dos alunos enquanto trabalhadores potenciais[15].

Os conceitos de trabalho em geral, de trabalho alienado e de sua virtual antítese, a (des)alienação do trabalho, formam a matriz seminal da pedagogia do Movimento. O seu objetivo precípuo é o de propiciar aos alunos uma formação polissêmica, humanística. Uma formação que lhes permita reconhecer a existência do trabalho alienado; que os arme para realizar sua crítica. E, em última análise, que abra a possibilidade de que esses educandos adiram ao movimento social que visa sua superação, o que no âmbito do MST significa a luta pela reforma agrária.    

Como é que a pedagogia do Movimento imagina produzir essa inflexão educacional? Essa inflexão se produz mediante ações no plano simbólico (teórico) e no plano das práticas escolares.

No plano simbólico se realiza por meio dos conteúdos socializados pelas disciplinas acadêmicas. Em particular, é estratégico possibilitar que os estudantes tenham acesso à visão do mundo do proletariado, uma vez que essa concepção se encontra escamoteada no ensino oficial.   

 No plano prático trata-se de modificar o modus operandi da própria escola. Esta encontra-se em termos imediatos dissociada tanto do mundo do trabalho quanto da vida social em geral, sendo regida por uma rigorosa hierarquia burocrática. Não é possível transmudar radicalmente esse padrão sob o regime do capital. Mas é possível introduzir mudanças visando aproximar a escola o mais possível da vida social real e, em especial, implementando processos democráticos de tomada de decisões.  

  A presença de sujeitos escolares interessados em promover essa pedagogia alternativa em uma unidade escolar é imprescindível, nomeadamente no segmento docente. Mas, essa presença por si mesma é insuficiente. É necessário que se constitua uma vontade político-pedagógica, e que esta seja capaz de se traduzir no estabelecimento de certo controle sobre a escola. A conquista desse controle, bem como, a manutenção do mesmo através do tempo encontra-se sujeito à interveniência de muitos fatores cambiantes, endógenos ou exógenos, de modo que, em última instância, esse controle possível ou real está sujeito à dinâmica da luta social.     

Em 2002, os professores da ECC juntamente com os pais dos alunos, tinham conquistado um controle importante sobre a atividade da escola, e em virtude disso, a pedagogia do Movimento inspirava vigorosamente o que fazer pedagógico.  Porém, em 2015, como observamos anteriormente, o controle sobre a instituição tinha arrefecido, e consequentemente a influência daquela pedagogia na ECC também se contraíra apreciavelmente.

Apontamos anteriormente que as causas principais da perda de controle do assentamento sobre a ECC foram: a política do Estado de fechamento de escolas e a crise demográfica da própria cooperativa. Contudo, esses fatores como causas explicativas finais não são totalmente convincentes, uma vez que deixam questões sem resposta ou com resposta dubitativa. Não ficou claro porque foi abandonada a prática das esquipes de trabalho e a assembleia geral. As equipes poderiam ser adaptadas à situação e, em princípio, a assembleia geral também.  Estas dúvidas nos sugerem que uma terceira causa do enfraquecimento da pedagogia alternativa na ECC pode estar no relativo debilitamento da militância pedagógica dos próprios associados da cooperativa[16].

Tem um elemento que é a reduzida juventude no assentamento. Isso influencia muito. Hoje, o coletivo de educação está fragilizado porque o número de pessoas que tem para tocar todas essas tarefas ...É muito difícil. E a comissão [de educação] tampouco tem mais a mesma força. A quantidade de filhos diminuiu. Querendo ou não as prioridades são outras. Antes tinha um monte de juventude atuando dentro do setor e agora não mais. Acho que é o cotidiano das coisas. Tem época que a gente tem mais ânimo e tem épocas que o desânimo vem e as coisas acontecem. Uma coisa é ter a escola cheia de Sem Terrinha e outra é ter a escola cheia de agricultores (GUINDANI).



            Devemos ressaltar, entretanto, que a situação de 2015 não é necessariamente irreversível. Diversos entrevistados testemunharam que os pais dos alunos exógenos à cooperativa não só passaram a respeitar o trabalho pedagógico realizado na ECC, como também, passaram a ter uma posição compreensiva em relação ao Movimento. Por outro lado, uma das professoras entrevistadas declarou que há cogitações no sentido de retomar mais cabalmente os originários princípios pedagógicos.

            Enfim, há cerca de cinquenta anos a escola capitalista era um reduto para a habilitação da força de trabalho. E os professores eram seus leais guardiães. Nos dias atuais, o trabalho docente, assim como o dos demais funcionários, está precarizado devido a salários baixos ou irrisórios e a condições de trabalho neotaylorizadas. Observadas as proporções algo semelhante atinge o alunado, uma vez que as condições de estudo se deterioram e as perspectivas pós escolares são desanimadoras.  O resultado é que emergiu um movimento da educação com lutas várias que grassam nos sistemas escolares mundo afora.  

Até o presente, salvo falha, essas lutas situam-se no campo tradicional de reivindicações por melhores salários e melhores condições de estudo e trabalho. Tudo leva a crer, no entanto, que está na hora de que o movimento da educação se coloque a questão do controle da instituição escolar.  Isso foi o que professores e pais fizeram na ECC, quando foi possível. E é possivelmente o que voltarão a fazer quando as circunstâncias o permitirem.

            Na escola, possivelmente de modo até mais acentuado do que em outros setores, a hegemonia da burguesia e seus funcionários está a tornar-se altamente contraditória, o que dá origem a crescentes problemas e descontentamentos.

 Devemos considerar como válidas todas as formas de luta travadas pelo movimento da educação. No entanto, a luta pelo controle da escola revelará a passagem do um estágio a outro, a passagem da luta econômica-corporativa para o estágio da luta pela hegemonia político-social.

Os partidários e ativistas da pedagogia elaborada pelo setor de educação do MST praticamente abriram uma senda no front da educação. O caso da ECC, aqui tratado, é apenas um exemplo, uma vez que são muitas as escolas nas quais os partidários dessa impostação pedagógica, para além das escolas próprias do Movimento, conseguiram articular uma ascendência pedagógica.

Mas, tão importante quanto isso é o fato de que, atualmente, os partidários de uma pedagogia alternativa à oficial não se restringem às pessoas ligadas ao MST. Aparentemente, e ainda que de modo incipiente, outros sujeitos e entidades, como professores e sindicatos docentes, começam a compreender o quão estratégico é, também, a luta pelo controle na escola. É ocioso acrescermos que esse é um fato auspicioso, pois, por mais importante que seja a atividade pedagógica do MST, a pedagogia alternativa só poderá vir a ter uma estatura compatível com o potencial político do MOP se transcender seu caráter setorial e converter-se em fenômeno geral no movimento operário e popular.  

Referências

BEAUVOIS, J-L. Tratado de la servidumbre liberal – análisis de la sumisión. Madrid: La Oveja Roja, 2008.
DAL RI, N.M.; VIEITEZ, C.G. Educação democrática e trabalho associado no movimento dos trabalhadores rurais sem terra e nas fábricas de autogestão.  São Paulo: Ícone: FAPESP, 2008. 

DAL RI, N.M.; VIEITEZ, C.G. Gestão democrática na escola pública: escola Construindo o Caminho , SP, v. 14, n. 2, p. 111-125, Maio/agosto 2010 2018. https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/115015/ISSN1519387X-2010-14-02-111-125.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 17/3/2018.

GUINDANI, C.T. Jovens de assentamentos da reforma agrária: uma análise sobre o êxodo de jovens do assentamento Conquista na Fronteira.  Florianópolis/SC, 2015. Dissertação - Centro de Ciências Agrárias. Programa de pós graduação em agro-ecosistemas, Universidade Federal de Santa Catarina.

MENDEL, G.; VOGT. C. El Manifiesto de la Educación  Madrid: Siglo XXI de España Ed., 1973.

MANFREDI, S.M.; BASTOS, S.  Experiências e projetos de formação profissional entre trabalhadores brasileiros. Educação & Sociedade, v. 60, p. 27, DEZEMBRO/97 1997. http://www.scielo.br/pdf/es/v18n60/v18n60a7.pdf. Acesso em: 14//1/2018.

MÉSZARÓS, I.  A teoria da alienação em Marx São Paulo: Boitempo, 2006.

MORAES, J.D. DE. Educação Anarquista no Brasil da Primeira República  Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Jose_Damiro_de_Moraes_artigo.pdf> Acesso em: 15/2/2018.

PALUDETO, M.C. As diretrizes programáticas e a política educacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)  Marília - São Paulo, 2018. Tese - Pos graduação em educação,  Faculdade de Filosofia e Ciências, da Universidade Estadual Paulista – UNESP – Câmpus de Marília.

VIEITEZ, C.G. A democracia nas unidades escolares públicas  in: DAL RI, N.M.; BRABO, T.S.A.M.  Políticas Educacionais, Gestão democrática, e Movimentos sociais- . Marília - São Paulo: Marília/Oicina Universitária São Paulo/Cultura Acadêmica, 2015. p. 13-35.

VIEITEZ; DAL RI. Elementos da história do trabalho associado. In: NOVAES, H.; MAZIN, A. D.; SANTOS, L. (orgs). Questão agrária, cooperação e agroecologia. São Paulo: Outras Expressões, 2015. p. 105-128



[1] - Entrevista com Neudi, um dos dirigentes da Cooperunião, realizada em julho de 2015.
[2] - Entendemos por cursos livres aqueles que prescindem da chancela do Estado e que não estão aptos a emitirem certificação legal.
[3] - Há indicadores de que, no Brasil, os primeiros a tentarem este caminho foram os anarquistas (MORAES, S/D).
[4] - Nos anos 1980, no bojo da luta contra a ditadura militar, o movimento da educação pleiteou a gestão democrática da educação, o que veio a ser parcialmente atendido pela Constituição de 1988 (VIEITEZ,  2015). No entanto, o movimento da educação, de facto, não deu seguimento à luta pela gestão democrática da educação.
[5] - Escolas que, mutatis mutandis, funcionam com um grau de autonomia semelhante ao das escolas particulares. 
[6] - O programa atual do MST é sinteticamente expresso na ideia de reforma agrária popular, que é um desdobramento do anterior programa de reforma agrária tradicional ou clássica. 
[7] - O que estamos entendendo por controle? Qualquer ação do MOP que incida sobre a organização ou processus da escola é uma forma de controle, como por exemplo, quando uma greve de trabalhadores da educação consegue extrair dos patrões uma melhoria salarial. Porém, o controle ao qual nos referimos aqui é de outra natureza. Esta modalidade de controle, ainda rarefeita na escola, apresenta uma vocação totalizadora devido à qual tende a incidir sobre a organização e o processus educativo de maneira recorrente e mais abrangente. Quando esse controle chega a ser significativo, ou seja, eficaz, o seu efeito sobre a produção escolar torna-se  político, técnico, diretivo, didático, ou, numa palavra, pedagógico.
[8] - Na pesquisa de campo realizada em 2002, os investigadores foram Neusa Maria Dal Ri e o autor destas linhas. E em 2015, este autor e o doutorando Cláudio Rodrigues da Silva, do Programa de Educação em Educação do campus Marília da UNESP.
[9] - Entrevista realizada com Carla Guindani em setembro de 2015. Carla é associada da Cooperunião  e na data da entrevista encontrava-se em licença da cooperativa para o exercício de funções de coordenação no MST.   
[10] - Entrevista coma professora Vanda da ECC, realizada em Julho de 2015.
[11] - As crianças podiam transitar de modo organizado ou mais ou menos livremente no assentamento. E podiam, inclusive, participar da assembleia geral da cooperativa com direito à palavra e, dependendo do tema discutido, com direito a voto.
[12] - Uma exposição mais detalhada das práticas de 2002 pode ser consultada em Dal Ri e Vieitez (2010) e Paludeto (2018).

[13] - Convém que esclareçamos que, estrito senso, nunca houve reforma agrária no país. O que tem havido é uma certa distribuição de terras. 
[14] - Segundo Beauvois, a cooperação foi uma das maiores descobertas da humanidade em todos os tempos.
[15] - Trabalhadores porque em algum momento os estudantes estão fadados a ingressarem massivamente no mercado de trabalho na condição de assalariados em sua forma típica, ou, na condição de pseudo-autônomos.
[16] - Durante a visita à escola soubemos que acabara de se encerrar um grande debate e processo deliberativo na cooperativa.  Esta, estava ampliando e modernizando sua fábrica de processamento de aves. E o dilema que emergiu foi a respeito de se a cooperativa deveria empregar ou não assalariados para tocar a fábrica. O debate encerrou-se com a maioria dos associados votando pelo não ao assalariamento. Porém, o acontecimento pode estar indicando que com o passar do tempo, o pragmatismo mercantil, uma das “tentações” a que estão sujeitas as organizações de trabalho associado sob o regime capitalista, ganhou espaço na cooperativa, o que por sua vez pode ter incidido sobre o nível da militância pedagógica dos associados.


SCS, 4/4/2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário