segunda-feira, 30 de abril de 2018

Notas sobre capitalismo e socialismo (10)



  Wladimir Pomar

Como vimos antes, a construção socialista resultante de revoluções em países
atrasados foi dominada, até meados dos anos 1960, pela teoria do modelo
soviético. O socialismo seria construído pela representação política da classe
operária no poder de Estado, que planejaria a economia, tanto no sentido macro
quanto micro. A propriedade privada sobre os meios de produção seria abolida e
substituída pela propriedade social sob as formas estatal e coletiva.
Essa teoria soçobrou pela ação prática de duas vertentes opostas. Num sentido
negativo, pelo fracasso do modelo em todos os países em que estava sendo
aplicado e pelo processo de desagregação da União Soviética, entre 1960 e 1990.
Num sentido positivo, pela adoção da estratégia de abertura e de reformas no
socialismo da China, a partir de 1978, do Vietnã, a partir de 1985, e de Cuba a
partir de 2008.
É verdade que a revista britânica The Economist lamenta que “o modo chinês de
articulação entre o público e o privado” leve a programas que incentivam as
empresas estatais a se tornarem “campeãs nacionais” na concorrência com as
empresas privadas. Por outro lado, há economistas keynesianos que elogiam o fato
do setor estatal produtivo chinês funcionar como “provedor de externalidades
positivas” para o setor privado.
Segundo tais economistas, a sinergia público-privada chinesa funciona em três
frentes: a) investimentos públicos em energia, transportes e telecomunicações
andando na frente da demanda corrente; b) oferta, pelas empresas estatais, de
insumos generalizados em condições e preços adequados; c) funcionamento de
centros de inovação tecnológica nas empresas estatais. Em tais condições o
desenvolvimento econômico chinês seria um caso explícito de simbiose entre o
Estado e a iniciativa privada, no qual o Estado planeja, financia, produz e faz
circular os insumos básicos.
Tal simbiose exerceria um poder de compra e de orientação da “destruição
criativa” da capacidade excedente e obsoleta criada pela inovação tecnológica.
Através de reorganizações e consolidações empresariais, o Estado induziria a
elevação da “produtividade” do capital. Assim, a iniciativa privada seria
satisfeita em sua sede de acumulação de capital por meio de ativos tecnológicos,
produtivos e comerciais. Os mercados de capitais, sem espaço para o rentismo,
seriam regulados para evitar supervalorizações e superdepreciações de ativos. As
verdadeiras oportunidades de lucros extraordinários estariam nos investimentos
que geram inovações, adensam as cadeias produtivas e criam empregos.
Essa suposta simbiose leva esses keynesianos a acreditarem que o “modelo chinês”
remeteria mais a Keynes e a Schumpeter do que a Marx. No mercado desse
“capitalismo chinês” o Estado não interviria como um intruso indesejável, mas
como um participante estratégico. Apoiaria o investimento privado para reduzir
riscos e incertezas. Ou seja, concordando com Ferdinand Braudel, o modelo chinês
demonstraria o grave erro de sustentar a crença do capitalismo como um “sistema
econômico” quando, na verdade, o Estado e o Capital seriam “companheiros
inseparáveis”.
É bom lembrar, porém, que o “modelo chinês” não está restrito aos aspectos
elogiados pelos keynesianos. Ele está ancorado num regime político de poder
único, a Assembleia Popular Nacional, que comanda os poderes executivo e
judiciário. Além disso, ao contrário do extinto modelo soviético, o Estado
chinês não é paternalista. Embora considere a luta de classes na sociedade
chinesa atual um problema secundário, evita resolver de cima para baixo as
contradições entre o capital e o trabalho, considerando positivo e essencial que
a classe trabalhadora lute por seus direitos e aprenda, na luta prática, a
natureza exploradora do capital.
O Estado chinês também não protege suas empresas estatais no sentido monopolista
e/ou paternalista soviético. Rompeu com o monopólio estatal fazendo com que
existam diversas empresas estatais em cada ramo estratégico. Tais empresas
realizam sua atividade concorrendo no mercado com as demais estatais e com as
empresas privadas, que também não podem exercer qualquer poder monopolista. Tudo
isso tendo em vista evitar a estagnação tecnológica, a burocratização, a criação
de privilégios e a corrupção, assim como demonstrar a superioridade da
propriedade social sobre a propriedade privada no próprio ambiente do mercado,
ao evitar a superexploração do trabalho e ampliar a distribuição da riqueza.
Quando o Estado chinês planeja e executa seus programas de desenvolvimento
científico e tecnológico, tem em vista fazer com que as forças produtivas se
aproximem cada vez mais daquele patamar em que é possível substituir a
propriedade privada pela propriedade social porque a capacidade produtiva pode
atender às necessidades de todos os membros de sua sociedade. E quando planeja e
executa seus programas de desenvolvimento social tem em vista criar as condições
para estabelecer relações de produção de igualdade.
Isso nada tem a ver com o capitalismo propriamente dito. Este se confronta, nos
países avançados, com forças produtivas que se tornam um crescente empecilho à
continuidade do sistema. Capital centralizado ao máximo e produtividade elevada
substituindo o trabalho vivo pelo trabalho morto entram em choque com o contínuo
definhamento dos mercados de trabalho e de consumo, nos quais a produção
capitalista deveria realizar-se como produção de mercadorias. É o capital
liquidando o capitalismo. 
Já o modelo chinês combina a propriedade social, na forma de empresas e outros
instrumentos econômicos estatais, com a propriedade privada, na forma de
empresas capitalistas, permitindo a cooperação e a concorrência entre os dois
tipos e dentro de cada tipo. Ao mesmo tempo, através daqueles instrumentos,
realiza uma constante redistribuição da riqueza, ou o “enriquecimento” do
conjunto da sociedade e não apenas dos “donos do capital”.
Em tais condições, seu desenvolvimento científico e tecnológico pode esgotar
todas as potencialidades históricas da propriedade privada capitalista. Mas
também é verdade que corre o perigo do capital se impor à sociedade chinesa, o
que dependerá do poder socialista manter os trabalhadores como seu principal
suporte e evitar a capacidade desagregadora da corrupção capitalista.
No primeiro caso, alcançada a capacidade científica e tecnológica de atender a
todas as necessidades do povo chinês, o “socialismo de mercado” pode permitir
uma transição serena para o comunismo. Ele estará muito mais para Marx e Engels
do que para Keynes. Mas no caso do capitalismo se tornar dominante, o Estado
terá que ser transformado. Primeiro, de instrumento de desenvolvimento,
representante e servidor de todo o povo em instrumento de defesa do capitalismo.
Depois, de instrumento capaz de evitar as crises em instrumento de salvação do
capitalismo das crises que ele próprio gera em seu processo de desenvolvimento.
É neste caso que estará muito mais para Keynes, embora tenha que se defrontar,
logo adiante, com as crises terminais previstas por Marx.
Na atualidade, o “socialismo de mercado” chinês ainda está no patamar juvenil de
seu desenvolvimento. O atraso econômico, social e político secular da China até
1949, assim como sua enorme população e seu enorme território, exigiram um
processo de longo prazo. Nele, o desenvolvimento científico e tecnológico e a
inovação desempenham um papel cuja importância Marx, muito antes de Schumpeter,
detectou ao examinar a concorrência capitalista e a destruição que ela promovia
nas realizações anteriores, rebaixando custos de produção e elevando a
produtividade e a lucratividade.
A essa tendência, ao mesmo tempo inovadora e destrutiva, Marx chamou de
“revolução” ou “revolucionamento constante” das forças produtivas. Shumpeter a
renomeou como “destruição criativa”, na prática encobrindo o profundo sentido
filosófico do conceito de “revolucionamento” ou “revolução”. No capitalismo, tal
tendência de desenvolvimento das forças produtivas, por um lado, eleva a
produtividade do trabalho ao limite de substituir o trabalho vivo pelo trabalho
morto e acelerar a concentração e a centralização do capital. Por outro, ao
invés de libertar os homens da necessidade de trabalhar pela sobrevivência,
aumenta aquilo que Marx chamou de “pauperização absoluta e relativa” dos
trabalhadores. Quem tiver dúvidas a respeito convém examinar como o American Way
of Life se transforma cada vez mais num mar de miséria cercando uma pequena ilha
de nababos capitalistas.
É nesse ponto que é possível diferenciar o modelo de socialismo de mercado dos
chineses dos modelos capitalistas, mesmo onde o Estado funcionou, por algum
tempo, como “Estado de Bem-Estar Social”. A vertente “capitalista concorrencial”
do modelo chinês funciona justamente para obrigar as estatais a concorrer com as
empresas privadas e entre si, desenvolver as inovações, as ciências e as
tecnologias (forças produtivas) para uma crescente redistribuição social da
riqueza e para firmar a propriedade social.
Nesse passo, por volta de 2050 a China terá alcançado um desenvolvimento que lhe
permitirá elevar o padrão de vida da maior parte de sua população a um patamar
confortável. Nessa ocasião, não sendo envolvida nas ameaças bélicas que querem
atear fogo no mundo, não tendo esmorecido na luta contra a corrupção alimentada
pelo mercado, nem permitido que a banda capitalista de seu socialismo de mercado
se assenhoreie do poder, é provável que a China ainda tenha que levar pelo menos
outros 50 anos para alcançar um patamar em que o “socialismo de mercado” se
transforme paulatinamente em comunismo ou em algo aproximado.
A esse tempo é provável que os socialismos de mercado vietnamita e cubano, que
operam em condições diferentes do socialismo de mercado chinês, também tenham
acumulado uma experiência capaz de enriquecer ainda mais a teoria de transição
socialista dos países atrasados do ponto de vista capitalista. E que,
eventualmente, a burguesia centralizadora de toda a riqueza de algum ou de
alguns países capitalistas não mais consiga dominar como antes, e a classe
trabalhadora e o povo desses países não mais possam viver como até então e
tenham se dado conta de que não tem mais nada a perder, a não ser seus grilhões.
Nesse momento, a teoria do socialismo poderá ser enriquecida por outras
vertentes de transição.
Leia os demais artigos da série

In
CORREIO DA CIDADANIA
http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/13233-notas-sobre-capitalismo-e-socialismo-10
28/4/2018

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