quinta-feira, 19 de novembro de 2020

50 anos de convergências

 



Manuel Loff

Mal a direita clássica (PSD e CDS) precisou dos votos da extrema-direita
para retomar o poder, aceitou imediatamente negociar com esta e,
pudicamente sem a incorporar no governo, assumiu no seu programa
aspectos tão simbólicos quanto a restrição radical de direitos sociais e
a revisão da Constituição! Mas não há novidade alguma nesta aliança.

Não foi preciso esperar muito. Mal a direita clássica (PSD e CDS)
precisou dos votos da extrema-direita para retomar o poder, aceitou
imediatamente negociar com esta e, pudicamente sem a incorporar no
governo (hoje o regional dos Açores, no futuro o da República), assumiu
no seu programa aspetos tão simbólicos quanto a restrição radical de
direitos sociais (reduzir para metade os beneficiários de RSI na região
onde mais pessoas dele necessitam) e a revisão da Constituição! Apesar
da contestação que alguma (se virmos bem, muito pouca) direita abriu
contra a direção do PSD, não há novidade alguma nesta aliança. Desde que
a Democracia-Cristã italiana fez eleger em 1971 um candidato
presidencial, pela primeira vez desde 1945 com os votos dos neofascistas
do MSI, e desde que as direitas escandinavas passaram a incluir na sua
estratégia para expulsar a social-democracia do poder partidos da
extrema-direita organizados em torno do mesmo ultraliberalismo económico
do Chega, as direitas clássicas da Europa ocidental têm 50 anos de
convergência com a extrema-direita — exatamente a mesma convergência que
levou os fascismos ao poder nos anos 20 e 30. A partir dos anos 90, a
normalização da extrema-direita, por mais racista e desbocada que ela
fosse, avançou decisivamente em Itália (todos os governos que Berlusconi
formou desde 1994 integraram neofascistas, pós-fascistas e os racistas
da Liga) e na Áustria (coligações de democratas-cristãos com a
extrema-direita desde 2000), e rapidamente se estendeu pela Europa
centro-oriental (ao ponto de caracterizar estruturalmente uma cultura
política específica da região que reproduz o quadro que existia no
período de entre guerras), a Escandinávia e o resto da Europa ocidental;
desde 2002 que quase não houve governo de direita na Holanda que não
integrasse a extrema-direita ou se baseasse num acordo parlamentar com
ela. Alemanha, França e Grã-Bretanha parecem ser as últimas exceções. O
mesmo se dizia de Portugal e Espanha, e foi o que se viu. A regra,
portanto, passou a ser a da cooptação das extremas-direitas pelas
direitas liberal-conservadoras. Estas continuavam a dirigir os governos,
assegurando que esta era a melhor forma de domar a extrema-direita. O
resultado foi, isso sim, a radicalização das direitas clássicas:
convergência estratégica (construindo maiorias políticas) e convergência
em muitas das batalhas culturais. Querem melhor exemplo que Cavaco
Silva, o cardeal-patriarca e Passos Coelho assinarem um manifesto contra
as aulas de Educação para a Cidadania que replica em Portugal as
campanhas de Bolsonaro? A banalização da retórica confrontacional de
tipo fascista acabou inevitavelmente por contaminar a linguagem do resto
das direitas; a convergência em questões sociais e educativas e na
discriminação das minorias étnicas fizeram o resto. Em 2000, George W.
Bush foi eleito com uma plataforma política que já incorporava as
grandes batalhas da extrema-direita religiosa (ilegalização do aborto,
proibição do casamento homossexual, confessionalismo anticientífico), e
foi tudo menos coincidência ser ele a levar à prática o Choque de
civilizações previsto (aliás: desejado) por Huntington, abrindo guerras
intermináveis no Afeganistão e no Iraque e criando um clima generalizado
de racialização das relações internacionais e de normalização do
discurso xenófobo. À extrema-direita só faltava o controlo direto do
poder executivo. Foi o que aconteceu em 2005 com o primeiro Governo
Kaczyski na Polónia. Orbán, que governara como liberal em 2005-07,
passou a pautar a nova geração de governos da extrema-direita do nosso
século. Desde 2010 mudou a paisagem político-constitucional da Hungria,
conduzindo uma transição autoritária que agora dificilmente poderá ser
revertida por via legal — e o país continua na UE. Por fim, a eleição de
Trump (2016) e de Bolsonaro (2018) revelaram bem a radicalização do
conjunto das direitas. O acordo PSD-Chega reitera 50 anos de história
das direitas: nem cordão sanitário, nem dique, nem coisa nenhuma impediu
a convergência das direitas. Quem quiser defender a democracia precisa é
de preparar-se para as consequências que esta pode ter no contexto
social mais depressivo dos últimos 75 anos, feito de nova pobreza, medo,
ansiedade e securitarismo.

/Fonte: Jornal Público 17-11-2020

O DIÁRIO.INFO
https://www.odiario.info/50-anos-de-convergencias/
18/11/2020

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