quinta-feira, 26 de novembro de 2020

A democracia e os seus inimigos

 
 

*por Daniel Vaz de Carvalho [*]

      
*A mão invisível do mercado nunca funcionaria sem ter por detrás um
punho escondido.   A McDonald's não poderia prosperar sem a McDonnell
Douglas, fabricante do F15.
Thomas L. Friedman, /A Manifesto for a fast World /
/New York Times Magazine/
<https://www.nytimes.com/1999/03/28/magazine/a-manifesto-for-the-fast-world.html>
, 28/Mar/1999 *

O monstro saiu da casca. *1 – Os ataques à democracia *

A extrema-direita que agora toma abertamente posição política é mais uma
consequência da persistente crise capitalista e do agudizar das suas
contradições. É o resultado em termos ideológicos de anos de calúnias
contra tudo o que mesmo com leves traços progressistas pusesse em causa
privilégios do grande capital e de paranoia anticomunista. Os que
puseram em prática políticas de direita e neoliberais, contra os
interesses populares e a soberania nacional, andaram chocar o "ovo da
serpente" fascista.

Em nome da "economia de mercado" ou da "democracia liberal" foi dada
liberdade praticamente total ao grande capital, reprimindo os
trabalhadores, atacando o sindicalismo das formas mais soezes,
promovendo o corporativismo da "concertação social" que se pretende
colocar acima do parlamento. Tudo isto evidencia a tendência do
neoliberalismo se encaminhar para formas fascizantes.

A linguagem do ódio, da intolerância, do racismo visando outros povos e
emigrantes – proletariado fugindo à miséria e ao caos provocados por
ações diretas ou apoiadas por países da NATO – sugestionam camadas
populares despolitizadas e frustradas devido às políticas a favor da
oligarquia.

Os pruridos democráticos do chamado centro caem pelo apoio ou
silenciamento perante os neofascismos que se desenvolvem na UE e na
Ucrânia, com glorificação de ex-nazistas e colaboracionistas, a
supressão de elementares regras democráticas, disseminação do racismo e
xenofobia. Caem com o reconhecimento de Guaidó e de outros golpistas na
América Latina, caem enfim com o alinhamento com a agenda conspirativa e
belicista do imperialismo.

Na ONU, os EUA e a Ucrânia são os únicos a oporem-se a uma resolução da
Assembleia Geral, adotada anualmente para "Combater a glorificação do
nazismo, neonazismo e outras práticas que contribuem para alimentar
formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e
intolerância relacionada".

Determinadas ONG, não passam de extensões de serviços secretos,
assumindo formas legais, alegadamente defensoras da democracia e
direitos humanos. O seu objetivo é a desestabilização social e a
fabricação de bem pagos "democratas" ao seu serviço, dramatizando
quaisquer problemas existentes ou ficcionados, fazendo campanha contra
despesas sociais do Estado, anunciando cataclismos que resultariam de
medidas socializantes ou consideradas como tal.

Uma das ONG mais relevantes nestes processos de colocar o poder ao
serviço da oligarquia e do imperialismo é a NED (National Endowment for
Democracy). Esta Fundação subsidia organizações que distribuem dinheiro
no exterior, disponível para associações e membros da classe dominante,
partidos da direita, social-democratas e mesmo formações que se
pretendem de esquerda.

As consequências destas atividades, são visíveis nos dramas das
"revoluções coloridas" colocando no poder verdadeiros ditadores
mascarados de democratas, alinhados com à extrema-direita, como no golpe
fascista da Ucrânia. As intervenções militares, no Iraque, Afeganistão,
Líbia, Síria, Somália, Iémen, alegadamente para impor a democracia
provocaram milhões de vítimas, permitiram a consolidação de organizações
terroristas e o drama dos refugiados.

O controlo da opinião pública para apoiar ou não reagir perante estas
situações é garantido pelos principais media, veiculando falsas notícias
e calúnias com que o império procura diabolizar os que não se lhe
submetem como se fosse verdade absoluta e comprovada, abdicando de
confirmar factos ou veicular o contraditório, tornando-se assim agentes
da conspiração e da subversão. Além disto, nas redes sociais proliferam
pro-fascistas difundindo o ódio, deturpando, mentindo sem escrúpulos,
atacando a democracia e os democratas.

A CIA controla os principais media dos EUA desde 1950. Os media não
fornecem notícias, fornecem explicações de acordo com a oligarquia,
garantindo que notícias reais não interferem nos seus objetivos. O livro
/Jornalistas comprados: Como os políticos, os serviços secretos e a alta
finança dirigem os meios de comunicação social alemães / ( /Gekaufte
Journalisten/
<https://www.bookdepository.com/Gekaufte-Journalisten-Udo-Ulfkotte/9783864451430?ref=grid-view&qid=1606191067889&sr=1-1>
) do jornalista alemão Udo Ulfkotte mostra que a CIA também controla a
imprensa europeia. *[1]* <#notas>

O financiamento de candidatos favoráveis aos interesses da oligarquia
constitui também um grave ataque à democracia. As eleições nos EUA são
disto um gritante exemplo: em 2016 os bancos despenderam 2 mil milhões
de dólares a favor dos "seus" candidatos. Em 2020 mais de 3 mil milhões.
*[2]* <#notas>

*2 – A "democracia" oligárquica *

Sob o domínio da oligarquia a democracia assemelha-se a /O retrato de
Dorian Gray/ <https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Retrato_de_Dorian_Gray> .
Tal como a oligarquia, Dorian persegue objetivos amorais, egoístas,
porém a sua imagem regista todo mal que pratica. Também a degradação
ética e a corrupção das práticas oligárquicas agravam as suas
contradições e crises.

Sem qualquer espécie de escrúpulos as elites do dinheiro não hesitam em
atacar pela calúnia e pela perseguição quem possa por em perigo os seus
privilégios. No Reino Unido foi levado a cabo durante anos uma campanha
para destruir o ex-líder trabalhista Jeremy Corbyn que se propunha
reverter o neoliberalismo propondo algumas nacionalizações e fazer
regressar o partido à sua matriz tradicional sindicalista.

A universidade de Princeton publicou um estudo
<http://www.informationclearinghouse.info/52608.htm> , evidenciando que
os Estados Unidos funcionam muito mais como uma oligarquia do que como
uma democracia. Um sistema que, como as recentes eleições comprovam, de
tão corrupto apodreceu.

Para ser considerado democrático pela chamada "comunidade internacional"
(EUA, UE e aliados) basta que um povo /"pratique a democracia à maneira
dos EUA e não tenha nada melhor para fazer do que aceitar a liderança de
Washington". (de Gaulle, Memoires de Guerre III, Livre de Poche, p.
245). / A democracia obtida desta forma é definida pelos interesses
imperialistas e oligárquicos, fundamentalmente dos EUA, fazendo uso dos
instrumentos ao seu serviço como o FMI, BM, NATO. O resultado são
obscenas desigualdades e clara disfuncionalidade social.

Nos EUA apenas três homens
<https://www.theguardian.com/business/2017/nov/08/bill-gates-jeff-bezos-warren-buffett-wealthier-than-poorest-half-of-us>
(B. Gates, J. Bezos, W. Buffet) possuem tanto como metade da população.
A camada oligárquica detém 79% da riqueza do país
<https://www.youtube.com/watch?v=iYyX3vBumxo&list=WL&index=4&t=22s> . A
nível mundial os 26 mais ricos
<https://www.theguardian.com/business/2019/jan/21/world-26-richest-people-own-as-much-as-poorest-50-per-cent-oxfam-report>
supostamente valem tanto quanto a metade de todas as outras, ou 3,8 mil
milhões de pessoas. E isto num mundo em que o rendimento da metade mais
pobre da humanidade continua diminuindo.

A outra face desta moeda é a pobreza, no país dito "mais rico do mundo":
em 2020, estima-se que 11,9 milhões de crianças, 16,2% do total, vivam
abaixo da linha oficial de pobreza; 36% de todas as crianças vivem em
famílias pobres ou "quase pobres", com rendimentos inferiores a 150% da
linha de pobreza. *[3]* <#notas>

Existem 2,3 milhões de presos nos EUA *[4]* <#notas> , taxa de
encarceramento de longe a mais alta do mundo. Segundo o /Washington
Post, / 1 004 pessoas foram mortas a tiro pela polícia em 2019, o grupo
Mapping Police Violence registou 1 099. Um total de 10 310 960 prisões
foram feitas nos EUA em 2018. *[5]* <#notas> Sessenta por cento dos
presos pertencem a minorias (negros e hispânicos) *[6]* <#notas>

O grande capital controla as relações de produção, define e impõe a
ideologia que justifica o seu domínio sobre o Estado, sobre a economia,
sobre toda a sociedade, sendo os seus desmandos justificados em nome da
"economia". Na UE o lóbi Business Europe, que reúne Bayer, BMW, Google,
Microsoft, Shell, Total, entre outras, realizou 170 reuniões em três
anos com a elite da Comissão Europeia. *[7]* <#notas> Os Estados
colocam-se de joelhos perante o grande capital, alavancado pelas
privatizações, PPP, subsídios e isenções, obtendo lucros de monopólio.

*3 - A "democracia" contra a soberania popular *

A democracia é – ou deveria ser – o governo do povo, pelo povo, para o
povo. A ideia contida nesta frase sofre de uma dificuldade, uma
contradição, é que o "povo", o conjunto dos cidadãos, é uma entidade
dividida em classes sociais com interesses e poderes distintos, mesmo
antagónicos, para além do que os possa unir numa mesma nação.

Os mecanismos da alienação potenciados pelos media, incluindo a
propaganda do consumismo, são um meio do povo perder o controlo sobre as
instituições democráticas e seus representantes. Isto explica por que
camadas sujeitas à exploração, pobreza e perda de direitos, votem em
forças que promoveram e promovem aquelas situações. Essas forças
alinhadas à extrema direita conseguem chegar ao poder mentindo,
escondendo suas reais intenções ou com golpes de Estado militares ou
jurídicos (Brasil, Paraguai, Honduras).

A democracia parlamentar formal tem a sua expressão no rotativismo
político de partidos que defendem os mesmos modelos económicos e
sociais, equivalentes a um partido único com várias facções (o
"centro"). É este o sentido do pluralismo político dependente dos
interesses da oligarquia.

Este modelo de democracia é o limite superior considerado aceitável pelo
grande capital. Tudo que vá para além disto ao nível da democracia
social é combatido. Nestas circunstâncias, se os resultados eleitorais
não servirem os seus interesses, isto é, falhando a "cenoura" da sua
democracia, usa o "pau" do fascismo, de que as "revoluções coloridas"
são uma variante. E se estes processos não se concretizarem, o "mundo
livre" aplica sanções, financia conspirações e intervenções armadas.
Aliás, mais de 70% das ditaduras existentes no mundo recebem ajuda dos
Estados Unidos. Um recorde estranho para uma nação que justifica as suas
intervenções no estrangeiro visando "promover a democracia e os direitos
humanos"
<http://www.mintpressnews.com/us-provides-military-aid-70-percent-worlds-dictatorships/232478/#.Whszk7Vu7wc.twitter>
.

Marx referiu-se ao "cretinismo parlamentar, a forma não de dar expressão
à vontade do povo, mas de bloquear essa vontade". O parlamentarismo
reduzindo a democracia a uma retórica de que o povo é alheado por
representantes que renegam praticamente tudo o que prometeram antes de
eleitos. As formalidades democráticas, não impediram que os detentores
da riqueza se transformassem em novos senhores feudais aos quais quase
tudo é permitido em nome dos "mercados", de "dar confiança aos
investidores" ou dos "riscos sistémicos".

A UE é um exemplo de como a democracia formal se opõe à soberania
popular. O sistema está montado para que eleições não possam em alterar
o status quo oligárquico e imperialista ou opor-se aos tratados
existentes. Os exemplos sobram nos referendos (Grécia, Irlanda, França)
e ameaças de sanções a Portugal se uma efetiva política de esquerda
fosse levada a cabo. No PE, 751 deputados – sem real poder – e 10 mil
funcionários, ignoram e são ignorados pelos cidadãos. Uma imensa
burocracia que vive da propaganda, da chantagem sobre os povos e dos
impostos dos cidadãos. Uma democracia submetida a burocratas que se
sobrepõem às políticas dos governos e se orgulham de não estarem
sujeitos a escrutínio popular.

*4 – A democracia, uma conquista sempre precária *

A democracia não é uma conquista definitiva, muito menos uma dádiva, mas
uma condição que há que permanentemente vigiar e mesmo lutar pela sua
preservação, tantos são os seus inimigos e os desvios a que está
sujeita. A social-democracia, tarde e a más horas, por vezes acaba por
descobri-lo.

Será preferível falar em democratização, a democracia como processo,
cidadãos participando não apenas em eleições, mas na gestão da vida
coletiva abarcando os diversos aspetos da vida política, económica e
social.

Não há democracias perfeitas, são realizadas por seres humanos
imperfeitos, existem em sociedades imperfeitas, com interesses
contraditórios e têm de se defender dos ataques dos seus inimigos.

Pode dizer-se que os inimigos da democracia são a corrupção, a
indiferença e a estupidez, em tudo o que tem a ver com o social, fontes
da calúnia, do ódio racista e anticomunista. Tudo isto são consequências
de uma democracia falseada ou inexistente dominada pela burocracia e
pelo grande capital.

A democracia também é profundamente destruída pela concentração da
riqueza <http://www.informationclearinghouse.info/55645.htm> , por
desigualdades alheias à contribuição de cada um para a sociedade.
Acresce ainda um dos principais inimigos da democracia: o imperialismo.
Governos democráticos respeitando a vontade popular são submetidos a
formas de ingerência e agressão, no sentido de serem revertidos esses
processos.

O imperialismo aprofunda as crises que os povos vão suportando, impede
saídas realmente democráticas, promove a intimidação, convulsões sociais
e insatisfação generalizada, desagregação social, empobrecimento e
submissão das camadas trabalhadoras. Perante o poder imperial os
cidadãos têm cada vez menos direitos cívicos (designadamente sindicais)
e sociais. O pensamento livre é reprimido. Recrudescem as crendices, a
superstição e as seitas fundamentalistas. A cultura reflete um profundo
declínio, com obras superficiais que renunciam à crítica social
centrando-se no psicologismo e no drama individual, basicamente cópia de
modelos e êxitos comerciais anteriores.

Tão importante como analisar a forma de governo existente, há que
verificar como são respeitados os desejos, as aspirações das camadas
mais vastas da população. A democracia envolve subordinar a dinâmica
financeira às necessidades do desenvolvimento, económico e social
penalizando o rendimento rentista, estruturando no domínio público os
sectores básicos e estratégicos.

A democracia tem de se alargar a todos os domínios possíveis da
sociedade: nas funções sociais, direitos laborais nas empresas,
democracia económica. As privatizações opõem-se a tudo isto. Quem dirige
a sociedade são os "interesses económicos" - a oligarquia e os credores
financeiros. A dita "democracia liberal", eufemismo para oligárquica, é
refém destes agentes.

Uma medida tão evidente como taxar as transações financeiras e controlar
os paraísos fiscais, mesmo não pondo em causa o sistema capitalista é
combatida tenazmente como "radical", ao mesmo tempo que os países são
atacados pelos défices públicos, precisamente pelos que se aproveitam
deste sistema iníquo.

Em resumo, tudo isto mostra como a via reformista já não pode ser
seriamente considerada – se é que alguma vez o foi. Ao proletariado,
para a superação destas contradições, resta a via das transformações tal
como o marxismo definiu e preconiza.

O socialismo tem de ser considerado uma livre opção democrática,
concretizada na soberania do Estado e no aprofundamento da democracia e
em todas as suas vertentes: política, económica, social e cultural. Sem
a participação consciente e ativa dos cidadãos neste sentido, a
democracia corre o risco de se tornar uma ficção política e as diatribes
parlamentares não irem além de uma competição por lugares ao serviço da
oligarquia.

1 - Paul Craig Roberts www.informationclearinghouse.info/55571.htm
<http://www.informationclearinghouse.info/55571.htm>
2 - Cris Hedges, resistir.info/eua/requiem_americano.html
<https://resistir.info/eua/requiem_americano.html>
3 - The Shame of Child Poverty in the Age of Trump By Rajan Menon
5 - www.informationclearinghouse.info/55196.htm
<http://www.informationclearinghouse.info/55196.htm>
4 - The US Spends More Than $80 Billion a Year Incarcerating 2.3 Million
People <http://www.informationclearinghouse.info/55757.htm>
6 - johnjay.jjay.cuny.edu/nrc/NAS_report_on_incarceration.pdf
<https://johnjay.jjay.cuny.edu/nrc/NAS_report_on_incarceration.pdf>
7 - Liliane Held-Khawam. Coup d'État planétaire, Bernard Gensane,
www.legrandsoir.info/liliane-held-khawam-coup-d-etat-planetaire.htm
<https://www.legrandsoir.info/liliane-held-khawam-coup-d-etat-planetaire.htm>

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/v_carvalho/democracia_23nov20.html
25/11/2020

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