domingo, 1 de novembro de 2020

A marcha da insensatez de um país em processo de destruição

 
 
É um quadro mais assustador do que o da pós-ditadura. A conta maior não
será do Congresso, mas do Supremo. Os principais personagens dessa trama
macabra não serão poupados pela História

Por
Luis Nassif

Há uma ameaça latente ao futuro do país como Nação. O sistema político
foi destruído. Há um avanço sistemática das organizações criminosas,
controlando espaços cada vez maiores do território. As disputas não são
mais entre poder formal e organizações, mas guerras entre elas. Sem a
estruturação formal dos partidos, aumenta a influência deletéria de
grupos setoriais, como os neopentecostais, ruralistas, mercado. E, a
cada dia que passa, o Estado construído pós-Constituição vai sendo
desmontado, sob a lógica exclusiva do benefícios a grupos específicos.

Políticas científico-tecnológicos, universidades federais, sistema de
saúde, saúde mental, educação inclusiva, tudo é soterrado por visões
ideológicas que visam mascarar os grupos de interesse que se apossaram
do governo. Na ponta, Supremo se apropria de funções legislativas, o
Congresso se perde sem uma voz de comando, órgãos de controle assumem
cada vez mais funções policialescas. Sem o papel coordenador de uma
liderança, sem o conjunto articulado de ideias de um partido, cada
instituição, cada ator vai abrindo espaço a cotoveladas, desmontando
qualquer ideia de disciplina institucional.

Onde começou essa loucura auto-destrutiva?

No final da ditadura, o país passava por desafios similares. O sistema
bipartidário desmoronava, a herança militar legara um país quebrado, com
hiperinflação, moratória; a miséria era avassaladora e visível nos
semáforos das grandes cidades, no campo, no interior quebrado.. Havia um
oceano de turbulências apontando para uma dissolução do país.

É nesse quadro que emergem algumas lideranças fundamentais. No centro,
Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Mário Covas.

Mas o ponto essencial foi o aparecimento de uma nova liderança, o
metalúrgico Luiz Ignácio Lula da Silva.

Com um discurso explosivo, e uma ação conciliadora, Lula conseguiu
canalizar todas as insatisfações dos abandonados para o jogo político
formal.

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Sem terras, sem tetos, sem comidas, sem Estado, a imensa multidão dos
desassistidos seria massa de manobra fácil para organizações criminosas,
para candidatos a guerrilha. Ao organizar o Partido dos Trabalhadores,
Lula deu consistência política às demandas, teve grandeza para aguardar
o momento de ser eleito, perdendo eleições sucessivas sem questionar seu
resultado e estendendo o papel civilizatório do partido para todos os
rincões.

Ao mesmo tempo, criou a possibilidade de uma polarização produtiva, com
o aparecimento do PSDB. O partido se estruturou como uma alternativa
racional das classes médias intelectualizadas contra a esquerda não
radical representada pelo PT.

Quando explodiu a crise internacional, tem 2008, tornou-se mais nítida a
grandeza de Lula. Tornou-se um símbolo internacional da tolerância, da
busca da paz, um pacifista do nível de um Mandela, um Ghandi – conforme
reconhecimento internacional.

Para manter a coesão nacional, talvez tenha cedido mais do que devia.
Manteve uma política cambial e monetária corrosivas da industrialização,
para não afrontar o mercado. Não avançou na reforma fiscal, para não
afrontar os ricos. Não avançou nas comissões da verdade, para não
afrontar os militares. Mas, nas frestas abertas pelas negociações,
conseguiu implementar alguns dos programas sociais mais relevantes da
história. Mudou a face do Nordeste com a transposição do São Francisco e
a política de cisternas. Mudou a face das universidades com as políticas
de cotas. Com o aumento do salário mínimo e o Bolsa Família abriu um
caminho inédito de inclusão social e de redução das desigualdades.

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municipal para a Inclusão Social, por Ion de Andrade
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Seu sucesso, especialmente a partir da crise de 2008,  levou a uma
deterioração do jogo político, e a deterioração da democracia por outros
atores, incapazes de contrapor um discurso eficaz. No mensalão, o
Ministério Público Federal julgou que poderia ser poder autônomo. Com a
morte de Mário Covas e Franco Montoro, o PSDB caiu nas mãos de Fernando
Henrique Cardoso, Aécio Neves e José Serra. Ao mesmo tempo, sem saber
como enfrentar a competição trazida pela Internet, a mídia passava a
exercitar cada vez mais o jornalismo de guerra, o discurso de ódio. E
trouxe o PSDB consigo.

Ex-presidentes são ativos nacionais. São políticos com influência em
suas bases para ajudar o país em momentos de tempestade. Na França,
Miterrand foi alvo de acusações, mas preservado por uma questão de
realismo político.

No auge do mensalão, quando o Ministério Público Federal exercitou pela
primeira vez seus músculos, visando a desestabilização política, vários
ex-presidentes saíram em defesa da normalidade institucional – José
Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco. O único que ficou de fora foi
Fernando Henrique Cardoso.

Terminadas as eleições de 2014, sabia-se que era questão de tempo para
haver alternância de poder. Mas, quando Aécio Neves deu a senha para o
golpe, deu a largada para o desmanche institucional do país. Nos meses
seguintes, as passeatas contaram com a participação entusiasmada de
Aécio, Serra e FHC.

Dali em diante, puxado pela Lava Jato, a democracia foi estuprada, com
participação direta do Supremo Tribunal Federal (STF). Submetido a
lideranças mais interessadas no enriquecimento financeiro do que em
mudar a República, o PSDB perdeu substância.

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Lava Jato
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Com a destruição do papel mediador de Lula, a perseguição implacável a
que foi submetido e a anomia histórica de FHC, criou-se um vácuo
político, quebraram-se as barreiras do sistema de freios e contrapesos
e, a partir dali, começou a desintegração do país. Primeiro, ao se
permitir a ascensão da mais suspeita organização política
pós-democratização – o centrão de Michel Temer, Eduardo Cunha, Eliseu
Padilha, Geddel Vieira Lima. Depois, com o grande mercado de negócios
que se abriu com o desmonte, estatais sendo leiloadas, políticas sociais
destruídas, em um estouro da boiada típica de países que destruíram suas
referências políticas, sem colocar nada no lugar.

Hoje se tem o país com recordes mundiais de morte por Covid, uma
política econômica errática que assusta o mercado, o avanço das
organizações criminosas por todos os poros da República, sem nenhum
referencial racional para impedir o desmanche.

É um quadro mais assustador do que o da pós-ditadura. E a conta maior
não será do Congresso, mas do Supremo Tribunal Federal. Os principais
personagens dessa trama macabra não serão poupados pela história.

/Publicado originalmente em 28/10/2010/

In
GGN
https://jornalggn.com.br/artigos/a-marcha-da-insensatez-de-um-pais-em-processo-de-destruicao-por-luis-nassif/
31/10/2020

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