quarta-feira, 11 de novembro de 2020

A que ruptura nos convoca a crise actual do capitalismo?

 

*por Rémy Herrera [*] 


*As três questões inicialmente colocadas foram:
- Porquê uma ruptura com o capitalismo?
- Porquê a escolha de uma alternativa socialista?
- Que lições podem ser aprendidas da China, Vietname, Cuba? *

Quero agradecer aos organizadores desta iniciativa pelo seu convite para
falar, para falar outra vez de socialismo. Trata-se de algo feliz, pois
fazem lustros que o PCF renunciou a falar e, na realidade, renunciou de
todo ao socialismo. E, pessoalmente, penso que é nomeadamente por causa
desta renúncia que o Partido está onde está, ou seja, no ponto mais baixo.

O problema é que, ao abandonar o socialismo – que é uma via, que é uma
transição –, o Partido abandonou também a busca do ideal comunista. Daí
este estado actual de deriva, ou esta impressão de perdição.

Portanto, confesso que – estou certamente muito satisfeito com esta
iniciativa, mas que – me sinto um pouco como padre operário convidado a
um concílio do Vaticano, ou um membros dos alcoólicos anónimos convidado
a um salão de vinhos e bebidas espirituosas para dizer: "é preciso parar
de beber!". Permitam-me dizer isto a brincar para não ser demasiado
desagradável.

Aceitei estar aqui e participar deste debate, não para dividir, mas para
contribuir, modestamente, para a unidade daquelas e daqueles que querem
falar de socialismo para iniciar uma transição socialista, em ruptura
com o sistema no qual vivemos, e no qual vivemos cada vez mais mal.

Este sistema está em crise. Esta crise não data de ontem, ela remonta a
pelo menos um meio século, ela é estrutural, grave, mesmo gravíssima,
ela é multidimensional. Ela é sistémica, o que quer dizer que o sistema
não encontrará solução por si mesmo. O capitalismo declina, o
capitalismo degenera e se não se afunda rapidamente é porque o seu
Estado o sustém com grande esforço; como foi o caso em 2008 quando a
vertente financeira do sistema entrou em colapso, e como ainda hoje
acontece com a chamada crise dita "sanitária" e uma economia que vive
sob perfusão.

O que estou a dizer é que não haverá saída para o problema sanitário com
pessoas que destroem o hospital público; nem saída para o problema
financeiro com bancos que continuam a especular. Não haverá solução para
o problema ambiental com ecologistas uns mais neoliberais do que outros,
tal como não houve solução para os problemas sociais com os
social-liberais do PS. E acrescentarei que tão pouco haverá saída para o
terrorismo religioso com os mercadores do templo que enfraqueceram a
educação nacional e a laicidade, vendendo-a ao sector privado, que além
disso é confessional.

O capital jamais encontrará uma solução através da sua lógica interna do
lucro, por razões profundas e múltiplas, nomeadamente porque as suas
novas tecnologias tendem a poupar muito trabalho humano e a minar a
criação de valor, porque o trabalho improdutivo está a ganhar terreno ao
trabalho produtivo, porque as contradições do capital exigem uma
intervenção estatal que custa cada vez mais caro, mas também porque a
acumulação excessiva provém agora sobretudo do capital fictício e porque
as finanças encerram todo o sistema numa espiral de destruições,
conflitos e guerras que acabam por nos ameaçar a todos com a morte.

É por isso que querer embarcar numa transição socialista não é apenas
responder a um espírito de justiça, é responder ao apelo da razão, é
mesmo uma questão de sobrevivência para a humanidade, para a ida. E é aí
que estamos, camaradas

O socialismo não é apenas uma palavra, é uma luta. Não é um fim, mas um
processo de transição, longo, difícil, que pode tomar mil formas no
caminho da emancipação, no caminho da libertação do trabalho da
dominação do capital. Porque isso é que é o capitalismo, a dominação do
capital sobre o trabalho.

Capa de 'En lutte'. Sei que dirão: já se tentou e correu mal. Mas quando
exactamente foi tentado o socialismo neste país? Em 1981? Em 1981, o que
tivemos foi o mitterrandismo e "a invenção do neoliberalismo de estado",
mas não o socialismo. É o que explico no meu último livro, /En Lutte !/
<http://www.librairie-renaissance.fr/9791097331252-en-lutte-les-resistances-populaires-en-france-de-1980-a-nos-jours-remy-herrera/>


E a URSS e a Europa de Leste, não será isso um fracasso? O que vos direi
acerca deste assunto é que o capitalismo levou séculos a emergir e a
libertar-se do feudalismo, então porque não deveria o socialismo, com
uma ambição muito mais bela e muito mais justa, ter direito a um tempo
longo? E além disso, será o socialismo o mesmo por toda a parte? Se
assim fosse, então teria falhado por toda a parte. Ora, isto não é o
caso, não é de todo o caso. Faz-se crer que o socialismo por toda a
parte para que os trabalhadores abandonem a luta e se submetam, para que
os povos do Norte e do Sul acreditem que não há mais alternativa.

É aqui que as experiências da China, Vietname e Cuba são interessantes
para as nossas lutas.

A China é a maior história de êxito económico do mundo e mesmo da
história mundial. Nossos inimigos dizem: China? É o capitalismo! Então
deveríamos acreditar neles, repetir isso e atribuir o êxito chinês ao
capitalismo? Mas o capitalismo não merece tal elogio! Não, este êxito
chinês deve-se principalmente, essencialmente, ao socialismo. Nenhum dos
recentes êxitos chineses teria sido possível sem uma luta encarniçada
contra o capitalismo, sem um controlo rigoroso por parte dos
capitalistas, sem a revolução socialista que começou em 1949, que tirou
o povo chinês da miséria e da guerra e que lhe trouxe o progresso
social, a educação, a saúde, as infra-estruturas públicas, a
independência, a dignidade.

Portanto, permaneçamos modestos – mas não submissos. Os chineses dizem:
explora-se uma transição longa ao socialismo. Procuremos compreender,
aprendamos, sejamos respeitosos.

Que não haja aqui mal-entendido: a China está longe, muito longe, do
ideal comunista; há demasiada desigualdade, demasiados defeitos nesta
etapa da transição, que é uma etapa inicial do socialismo. Mas o que é
certo é que o povo chinês e seus dirigentes estão lançados na batalha da
transição socialista. Como isso acabará? Não sei. Mas é impossível negar
sua vontade. A história não está acabada.

Além disso, camaradas, imaginem por um momento a França com propriedade
colectiva do solo e subsolo; com a maior parte das grandes empresas
industriais como sociedades de estado; com todas as infra-estruturas
nacionalizadas; com moeda, bancos, finanças controladas pelo Estado;
controlando também o comportamento das transnacionais estrangeiras no
território nacional; mais a planificação e, no topo do poder, para
supervisionar um Estado super-poderoso, quem? Um Partido Comunista!
Imaginem o nosso país organizado dessa forma, ou seja, como a China está
agora. Então, o que é que se diria? Que é capitalismo? Estão a brincar!
Dir-se-ia: é o socialismo. Nossos inimigos capitalistas diriam mesmo: é
o comunismo! Digamos antes que é uma forma de socialismo de mercado, com
capitalistas, claro, mas capitalistas estritamente controlados pelo
poder político de um Partido Comunista.

A China certamente não é comunista, mas ela está em luta com o
capitalismo para tentar dominá-lo. É preciso tentar compreender tudo
isso, pensar por nós mesmos e, em primeiro lugar, libertar-se da
ideologia dominante, da opressão dos media dominantes, que se tornaram
entre nós o primeiro obstáculo à liberdade de expressão.

No Vietname é aproximadamente a mesma coisa que na China desde o "Doi
Moi", ou seja a renovação do socialismo, um processo de economia de
mercado socialista, principiado após os anos muito difíceis do
pós-guerra, depois de o exército dos Estados Unidos ter despejado sobre
o Vietname três vezes mais bombas do que todos os beligerantes da
Segundo Guerra Mundial somados. E muito recentemente, a maneira notável
como o Vietname soube enfrentar a pandemia do Covid-19 foi aqui, em
França, completamente silenciada, com o pretexto de que não era
possível, com o pretexto de que os vietnamitas mentem. Mas é o nosso
governo que, submetido à finança e em guerra contra todo um povo, que
nos mente!

Destas três experiências socialistas actuais, é Cuba que está mais
afastada do capitalismo. É lógico portanto que seja contra Cuba que o
imperialismo mais se encarniça – impondo-lhe o bloqueio. Sem o
socialismo, Cuba jamais teria podido manter-se após a queda da União
Soviética. Mas sem a resistência de Cuba, hoje não se falaria mais em
socialismo na América Latina. Ora, por toda a parte neste continente
latino-americano os povos estão de pé e lutam pelo socialismo. Olhem a
Bolívia e a recente vitória do seu povo, magnífica! Dir-se-á: há penúria
em Cuba. Mas é o bloqueio imperialista que cria a penúria em Cuba, não o
socialismo. Havia de tudo em Cuba antes da queda da URSS. Agora, faltam
muitas coisas em Cuba, materialmente, mas a ela não lhe falta certamente
espírito de solidariedade. Os italianos sabem-no bem, todos os países
africanos e quase todos os países do Sul também o sabem, os que recebem
desde há muito tempo os cuidados das missões internacionalistas cubanas.
Caros camaradas, Cuba é absolutamente fundamental para nós porque os
cubanos provam que é possível resistir.

O que nos ensinam estes três países é portanto:

  * primeiro, que é preciso resistir, mesmo se o imperialismo impõe um
    bloqueio, mesmo se o imperialismo arrasou o vosso país;

  * a seguir, que há uma alternativa, que esta alternativa chama-se
    socialismo, que cabe aos Partidos Comunistas assumirem suas
    responsabilidades;

  * e finalmente que o socialismo permanece actual, que ele deve, que
    pode mesmo ultrapassar o capitalismo, que não é sinónimo de
    ineficácia e de penúria, mas de partilha, mesmo de opulência (uma
    certa opulência, como o desejava Marx, como o desejava Lenine).

Aquilo que é preciso compreender é que o capitalismo está a acabar, que
o capitalismo agoniza, que ele vai desencadear uma violência
extraordinária contra todos os povos antes de desaparecer e que é o
socialismo, a solidariedade, que marcham com a história.

Mas além destas lições importantes, o que é que podemos extrair mais
concretamente de tudo isto? As experiências socialistas cubana,
vietnamita e chinesa são evidentemente inexportáveis, além de serem
imensamente aperfeiçoáveis, em todos os domínios, mas elas nos
interessam porque fundem três dimensões chave: a dimensão da emancipação
social (anti-capitalista), a dimensão da independência nacional
(anti-imperialista) e a dimensão do humanismo igualitário
(anti-racista). É a articulação destas três dimensões que define sua
respectiva transição socialista, que define seu "projecto comunista". E
mesmo se estas três revoluções, que estão sempre de pé neste momento,
têm cada uma dela condições históricas, sócio-económicas e culturais
singulares – o que significa que será preciso encontrar, nós, em França,
nossas próprias formas de luta, renovadas, adaptadas para serem mais
eficazes frente aos desafios actuais –, a análise das motivações
profundas destas três revoluções é, a meu ver, útil para nós. As três
são, como disse: 1. anti-racistas; 2. anti-imperialistas; 3.
anti-capitalistas. O que é que isso significa para nós?

*1. * O anti-racismo, naturalmente, porque combater o racismo da
extrema-direita e do sistema tornou-se uma prioridade absoluta. Mas não
ao modo da direita, que ergue comunitarismo hostis entre si; nem como o
faz a "nova direita" social-liberal do PS, anti-racista em palavras, mas
cuja acções visam neutralizar as lutas populares, sobretudo na cidades,
nos bairros. Não, nosso combate contra o racismo não é societal, ele é
político, é socio-económico. E passa-se o mesmo com outros combates
fundamentais e conexos, o combate pela democracia, pela igualdade
homens-mulheres, pela protecção ambiental, que também devem ser
colocados no cerne das nossas lutas comuns pelo socialismo. A este
respeito, o Islão político, como todos os outros fascismos, não quer de
modo algum romper com o capitalismo; pelo contrário, é um aliado e
cúmplice do imperialismo. Por isso, também aqui, a escolha do socialismo
será para nós o baluarte mais seguro contra todos os fascismos,
inclusive o fascismo do islamismo político.

*2. * O anti-imperialismo, o que quer dizer não só pôr fim à lógica das
guerras da NATO sob a hegemonia dos EUA, mas também libertar-se do jugo
europeu. Desejo de todo o coração boa sorte a Fabien Roussel no PCF se
ele quiser falar de socialismo permanecendo na zona euro. A União
Europeia foi construída precisamente para impedir o socialismo, este era
mesmo o seu objectivo primordial. Boa sorte também para Laurent Brun na
CGT se ele quiser permanecer na Confederação Europeia de Sindicatos, que
é euro-liberal, social-liberal, inteiramente submissa ao capital.
Realmente muito boa sorte para ambos se quiserem reformar o
irreformável. Enquanto se espera por Godot – esta Europa social que
nunca irá acontecer, pela razão de que o quadro europeu tal como existe
o proíbe – é a direita e a extrema-direita que ocupam o terreno da
contestação que nós decidimos desertar. Pois recordo-vos que o conceito
de soberania nacional nasceu nas nossas fileiras (em Valmy). Na verdade,
a censura do debate sobre o euro não é apenas antidemocrática, ela é
simplesmente suicida. Não reconstruiremos uma perspectiva socialista, ou
mesmo moderadamente socialista, sem radicalmente por o euro em causa.

*3. * O anti-capitalismo. Isso significa a necessidade de romper com o
sistema de dominação do capital em última análise, ultrapassada, tornada
quase unicamente destrutiva, assassina, mesmo criminosa. A alternativa
anti-capitalista é a transição socialista. É a única alternativa
razoável. O que quer dizer isto, para nós? Isso quer dizer, mais
concretamente:

  * serviços públicos fortes, concebidos como condições de cidadania;

  * a planificação, pela aplicação de uma estratégia de desenvolvimento,
    socialista;

  * o controle da moeda, da banca e dos sectores estratégicos da
    economia, o que implica portanto nacionalizações, a repensar
    totalmente em relação às experiências passadas;

  * uma propriedade dos recursos naturais colectiva e a urgência de uma
    protecção da natureza;

  * formas de propriedade certamente diversas, mas orientadas para a
    socialização das forças produtivas;

  * uma elevação muito forte dos rendimentos do trabalho, muito mais
    rápida, com um objectivo de justiça social, uma óptica igualitária;

  * relações exteriores garantindo a troca ganhador-ganhador e
    fundamentadas sobre a paz;

  * e, naturalmente, uma forma de democracia política ampliada, não
    fictícia como hoje, mas autêntica, amplamente participativa,
    tornando possíveis e concretizando as escolhas colectivas estratégicas.

Portanto, juntos, vamos deslegitimar o capitalismo, que promete
abundância, mas generaliza a penúria (vê-se o que isso provoca em plena
pandemia!). Vamos descredibilizar este sistema capitalista que nos vende
felicidade na publicidade, mas que nos empurra para a pior crise desde
1945; que sacraliza a liberdade individual, mas desmantela os nossos
direitos, destrói os nossos serviços públicos, empobrece cada vez mais
os seres humanos. Desmascaremos este sistema arcaico que fala de
democracia mas impõe a ditadura da finança. Camaradas, não se adapta a
uma ditadura, combate-se contra ela. A ordem que nos impõe o capital
financeiro é, hoje em dia, uma ditadura. Nosso dever imediato de toda e
de todos é unirmo-nos para lhe pôr fim.

06/Novembro/2020

*[*] Economista, investigador do CNRS. Transcrição da videoconferência
de 6 de Novembro de 2020 no debate organizado para o centenário do PCF. *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/franca/remy_06nov20.html
6/11/2020

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