sexta-feira, 24 de julho de 2015

É o lobo, é o lobo!




Por Mauro Luis Iasi.

Uma vez mais se apresenta o alerta sobre a possibilidade de interrupção do
mandato presidencial e a possibilidade de algum tipo de golpe. Desta vez pelas
declarações golpistas do PSDB, preocupado que o prazo para que a interrupção
leve a uma nova eleição está para se esgotar. Como das outras vezes,
intensificam-se os ataques ao governo, convocam-se novas manifestações e os
meios de comunicações atacam com novas e requentadas denúncias.

Continuamos acreditando que a opção principal da direita, no sentido mais
preciso dos interesses de classe ligados ao grande capital monopolista, caminha
em outro sentido, qual seja, de produzir uma transição sob um governo fraco e
sob cerco, enquanto se gesta uma alternativa para substituí-lo nas eleições de
2018. Alertávamos, no entanto, em outra oportunidade, que um dos mecanismos
desta operação, a constante ameaça de impedimento antecipado da presidente,
poderia ganhar uma dinâmica própria e se viabilizar como alternativa e, desta
maneira, não estaria por princípio descartada como possibilidade pelo bloco
dominante.

O cenário atual comprova a persistência deste quadro. Intensificam-se os
ataques, enquanto a base de sustentação do governo no Congresso é corroída e os
meios de comunicação hegemônicos, por meio de um eficiente manejo do
anti-petismo, trabalham para configurar um clima de descontrole total nas hostes
governistas. Ao mesmo tempo o governo reage intensificando suas concessões ao
bloco dominante: implanta o ajuste e as políticas de austeridade, intensifica os
ataques aos trabalhadores (como nas medidas provisórias 664 e 665, no veto às
superficiais mudanças na previdência, etc.), opera cortes na educação e na
saúde, e impõe arrocho sobre o funcionalismo público federal. Tudo isso sem
deixar de abrir seus cofres em generosas contribuições ao agronegócio e
financiar a manutenção de empregos com redução de salários e benefícios para as
grandes empresas.

Há uma relação entre estes dois vetores da conjuntura que nem sempre fica tão
visível. O desgaste inevitável que as concessões ao grande capital monopolista
produzem gera uma igualmente inevitável depressão nos setores sociais que
sustentaram a atual presidente na expectativa de uma mudança de orientação. A
esquerda petista, isolada e minoritária no interior do PT, está rouca de tanta
tentar alertar que o caminho escolhido contribui com a estratégia da direita de
ir sangrando o governo e dilapidando sua base social para derrotá-lo
eleitoralmente na próxima eleição nacional. Propõem um “cavalo de pau”, rompendo
com a aliança com o PMDB e retomando o caminho de um projeto democrático
popular.

Neste ponto a situação ganha uma complexidade que está longe de ser simples de
ser compreendida. A analogia do “cavalo de pau” serve como imagem da urgente
necessidade de uma mudança radical de rumos, mas é absolutamente inapropriada
para o momento. O ato de puxar o freio de mão e produzir uma mudança abrupta de
direção, inclusive valendo-se da derrapagem lateral do veículo, costuma
funcionar, não sem riscos de capotagens, quando se trata de veículos leves. Mas
no caso de um grande navio, há restrições de movimento por conta de suas
dimensões e do tamanho de seu calado. Quando se aproxima do porto, por exemplo,
uma embarcação como essa não pode nem sequer sair fora do rumo do canal, e mesmo
com suas máquinas desligadas chega a percorrer milhas antes de parar. Por essas
condições estruturais, ele está impossibilitado de dar o que se chamaria de um
“cavalo de pau”. O governo petista está mais para um grande navio do que para um
carro esporte.

No entanto, cabe nos perguntar: por que motivo o governo opera num aparente
paradoxo que contribui para a estratégia daqueles que querem derrotá-lo? Podemos
falar o que quisermos deste governo (muito temos falado de como ele operou uma
estratégica que desarmou a classe trabalhadora conduzindo-a ao pântano da
conciliação de classes), mas não que ele é ingênuo ou que lhe falta habilidade
política. Aqui a analogia com o navio é ainda mais útil, pois não adianta
olharmos para a superfície do mar ou para as hipnóticas luzes de bordo, pois a
resposta está no canal em que navega.

O caminho escolhido pelo PT como via de desenvolvimento de sua estratégia acabou
por considerar virtuosa uma configuração que segundo seu juízo constituía uma
imprudência da burguesia e um cenário favorável aos desenvolvimento de
“reformas” gradualistas que beneficiariam aos trabalhadores. Este equívoco se
fundamenta na incompreensão de um dos elementos do Estado burguês na sua
configuração contemporânea.

A FORMA DEMOCRÁTICA DA REPÚBLICA BURGUESA

Talvez possa parecer, a um olhar superficial, que a forma democrática da
república burguesa e a prevalência das eleições como um meio de composição de
seus governos, fosse um equívoco das classes dominantes (ou ainda, em outro
registro, uma concessão que só se explica pela pressão dos trabalhadores).
Afinal, sendo as eleições um jogo numérico e a classe trabalhadora inegavelmente
mais numerosa que as classes dominantes, a tendência seria a formação gradual
maiorias que pouco a pouco poderiam ir construindo a vontade geral como
expressão dos interesses dos trabalhadores, reduzindo o poder político da
burguesia à proporcionalidade de sua expressão quantitativa.

O que os atuais reformistas (a bem da verdade estes senhores acabaram ficando
muito aquém do reformismo, a ponto de ter de ficar a cargo da esquerda petista a
defesa da retomada do rumo das reformas), de fato desconhecem é que a burguesia
já equacionou há muito tempo este problema. Podemos comprovar isso resgatando o
pensamento de James Madison (1751-1836), que foi um dos destacados redatores de
O Federalista (uma serie de ensaios, publicada 1788, defendendo a federação
contra a forma confederada), no contexto da luta pela independência dos EUA e
consolidação de sua forma política republicana.

O problema dos revolucionários norte-americanos, resumidamente, era determinar
qual seria a forma de governo da jovem nação que poderia responder
simultaneamente a duas exigências cruciais: manter a necessária unidade
política, economia e militar das ex-colônias, e garantir a liberdade das partes
aderissem à nação, evitando o risco da tirania.

Diante disso se enfrentam com o problema das facções, entendidas, nos termos de
Madison, como grupos de cidadãos, maiorias ou minorias, que unidos por
sentimentos e interesses comuns se opõem a outras facções, cidadãos ou mesmo
interesses coletivos de uma comunidade. Parecia a Madison que as duas
possibilidades apresentadas – atacar as causas das facções ou tentar controlar
seus efeitos – se apresentavam impraticáveis. Isso porque as causas estariam
ligadas à natureza humana, sendo portanto, incontornáveis. Quanto ao controle
dos efeitos, a impraticabilidade derivaria do fato de que teria que ser operada
pelos próprios seres humanos que colocariam suas vontades e paixões como
critério de tal controle. A solução encontrada seria, segundo Madison, colocar
tanto a natureza como seus efeitos a serviço de uma forma que possibilitasse a
República. A chave para tal feito seria expressa na formula: “ambição será
incentivada para enfrentar a ambição” (O Federalista, n.51).

Antes de ver como isso se materializa em uma forma política, é importante fazer
uma ressalva. Apesar de localizar na natureza humana o comportamento de facção,
o revolucionário norte-americano sabe que a base material da disputa dos
diversos interesses que compõem uma sociedade não é a mera predisposição dos
seres humanos como criaturas “ambiciosas, vingativas e rapaces”. Por isso poderá
concluir, sem abandonar aquela premissa, que “a fonte mais comum e duradoura das
facções tem sido a distribuição variada e desigual da propriedade”, de tal forma
que “aqueles que possuem e os não-proprietários invariavelmente corporificam
distintos interesses na sociedade”.

Todos são juízes de suas próprias causas. Uma vez que prevaleça o poder de uma
facão ou conjunto de facções associadas, seria natural supor que esta maioria
tente impor seus interesses sobre as demais, impondo os interesses dos
manufatureiros sobre os donos de terra, ou o inverso, “não havendo em nenhum dos
casos consideração para com a justiça ou o interesse público”. A confiança de
que “estadistas esclarecidos” poderiam funcionar em prol do equilíbrio e da
prevalência do bem público é descartada pelo autor com requintes de pragmatismo:
“nem sempre os estadistas esclarecidos estarão no leme”.

Notem que, como fica evidente, o objetivo destes senhores é evitar a tirania da
maioria. A solução de uma “democracia pura”, como a denominavam, é recusada. Ela
é definida como necessariamente própria de pequenas sociedades formadas por
indivíduos virtuosos (definidos como aqueles que colocam o bem comum sobre o
interesse particular) e cuja base é a frugalidade, nos termos de Montesquieu. Em
outras palavras, essa forma política só funcionaria num contexto de pouca
riqueza e uma vida simples e estaria descartada para grandes nações poderosas
econômica e militarmente. Neste ponto, a afirmação de que as facções se formam
pela distribuição desigual da propriedade ganha uma dimensão decisiva.

A forma da “democracia pura” em uma sociedade moderna seria palco de “distúrbios
e controvérsias” e levaria necessariamente a um quadro de insegurança e
incapacidade de garantir o direito de propriedade, tendo conseguentemente,
segundo o juízo de Madison, uma vida curta e um fim violento. A solução,
portanto, é a uma república em que se aplica o “esquema da representação”.

Entre as várias vantagens apresentadas por Madison para defender a república
contra a democracia pura, estaria em primeiro lugar o fato de que por meio da
representação os “pontos de vista da população são filtrados” pelo crivo de
alguns cidadãos que irão representá-los. Como o povo escolheria os “melhores”
nesse processo de seleção, os seria justo dizer que os eleitos saberão discernir
os verdadeiros interesses do país, graças ao seu “patriotismo e amor pela
justiça”, dificilmente sacrificando estes interesses por “considerações
temporárias ou parciais”, nas palavras de James Madison que chegou a ser o
quarto presidente dos EUA.

Evidentemente soa estranho esse grau de fé nas virtudes morais expressa na pena
do fundador do Partido Republicano, um sujeito, como vimos, dotado justamente de
uma posição marcada pelo pragmatismo. Sem dúvida, Madison tem plena consciência
de que indivíduos de “temperamento faccioso e propósitos maldosos” podem por
vários meios, inclusive a intriga e a corrupção, conseguir os votos necessários
e “depois trair os interesses do povo”. No entanto, para ele, a solução estaria
na própria dimensão da república moderna, no sentido quantitativo propriamente
dito.

O argumento de Madison é de que a fragmentação de uma grande população em
diversas facções e partidos, pulveriza a representação. Assim, com cada um
buscando apenas seu próprio interesse, fica difícil formar maiorias, obriga-se
que os governantes (ainda que sendo expressão de uma maioria eleitoral) negociem
com um conjunto pulverizado de interesses para lograr estabilidade em seu
governo. Diz Madison ao falar da república que defende:

“alargado este campo (o do número de cidadão de um Estado) teremos uma variedade
maior de partidos e interesses, tornando menos provável a constituição de uma
maioria no conjunto que, alegando uma motivação comum, usurpe os direitos de
outros cidadãos”.

Desta maneira, conclui Madison, teríamos uma estrutura adequada, um “remédio
republicano para as doenças mais incidentes sobre um governo republicano”.

Reparem: a vacina contra a possível “doença” de uma maioria chegar ao poder em
algum ponto do Estado burguês está dada desde 1788. Não é demais relembrar que
tal estrutura adequada se completa com um redesenho da solução clássica da
divisão de poderes, muito além da simples divisão funcional na qual quem governa
não redige as leis, e quem as redige não governa, da mesma forma que aquele que
julga não redige a lei, nem governa.

O MENINO E O LOBO

Agora, depois da experiência norte-americana, aplica-se uma dinâmica de pesos e
contrapesos. Isto é, a cada poder de uma esfera se apresenta um poder para que a
outra o controle, como no dispositivo de veto do executivo a uma lei elaborada
pelo legislativo e a possibilidade de derrubada do veto pelo segundo, assim
como, se houver dúvidas os tribunais são acionados e se tudo der errado há
forças armadas para “garantir” a constituição em defesa da propriedade (notem
como estamos hoje muito longe da necessidade deste último expediente).

No contexto atual estas chamadas estruturas adequadas não estão menos, mas muito
mais eficientes e sofisticadas. Em formações sociais como a nossa, na qual a
contradição entre proprietários e não-proprietários é explosiva, o risco de uma
tirania da maioria é enfrentado com rigor e profissionalismo.

Além de um eventual executivo que expresse uma certa maioria eleitoral
ligeiramente comprometida com interesses populares ser obrigado a compor sua
governabilidade com os partidos que compõem o poder legislativo, o filtro
eleitoral garante que ali se represente o conjunto das facções das classes
proprietárias, obstaculizando ao máximo a possibilidade da maioria real na
sociedade se apresentar como maioria na chamada “representação”.

Uma das formas conhecidas, e não por acaso veementemente garantida na atual
farsa da reforma política, é o financiamento privado de campanha em sua forma
explícita. O poder econômico na sociedade capitalista sempre determina a disputa
eleitoral, mesmo numa situação na qual se proíba o financiamento direto de
empresários, seja por formas ilícitas e caminhos alternativos (que não deixam de
agir mesmo na legalidade do financiamento privado) seja por seu poder indireto
no controle de várias esferas da vida, da comunicação de massa, da cultura, do
assedio que se funda no poder brutal que patrões têm sobre os trabalhadores nos
locais de trabalho, etc.

Uma vez entrando neste canal e aceitando suas regras, que por um tempo
favoreceram os governos petistas e sua continuidade, torna-se muito difícil
sair, pelo menos sem rupturas consideráveis. Ocorre que é exatamente a dimensão
da ruptura que foi abandonada no desenho da estratégia. Querer introduzi-la
agora é uma artificialidade infantil, ingênua e, por uma motivo mais banal,
impossível.

Nos termos atuais, para a burguesia inviabilizar o governo petista, basta o
deslocamento do PMDB para um bloco de oposição.

Não tendo outra alternativa no horizonte imediato que não manter o rumo, a
comandante tenta se manter firme no timão exercendo a arte de fazer de conta que
não é com ela, enquanto caminha decididamente para a catástrofe. Para se manter
cede aos interesses do capital e mergulha ainda mais na tentativa insana de
manter a base aliada que se desfaz sob seus pés. Esta tática permite sobreviver
no campo imediato, mas tudo indica que fortalece as condições da futura derrota
eleitoral. Este é o paradoxo.

Não podendo mobilizar suas bases sociais que correm o risco de serem capturadas
pela direita, pela ação em defesa de direitos, conquistas ou condições de vida
(uma vez que o presente ajuste e a linha de governo praticada nos últimos doze
anos caminharam no sentido contrário), resta a esperança de que, mais uma vez, a
chantagem da necessidade do apoio a este governo contra a “direita” ou o
“conservadorismo”.

Sabemos que a direita se move em várias frentes, é evidente a retomada de um
conservadorismo sem máscaras e preocupante. Compreendemos que papel estes
fatores ocupam na estratégia do desgaste visando uma futura derrota eleitoral do
petismo, ou na possibilidade de antecipar este desfecho por uma interrupção do
mandato da presidente. Mas a direita e a forma de manifestação do
conservadorismo tem um papel, também, na estratégia governista. É o de desviar a
atenção da brutalidade do ajuste e do real e evidente caráter do compromisso do
governo com as condições necessárias à retomada da acumulação de capitais,
criando uma cortina de fumaça que desvia a atenção para uma abstrata
contraposição entre conservadorismo e progressismo.

Além de desviar a atenção do ataque operado contra os trabalhadores, a educação,
a saúde púbica e tantas outras áreas, procurando desarmar a resistência que se
ensaia nas greves e nas lutas sociais, há também a clara intenção de
desvincular-se do governo que naufraga para, justificado pelo combate ao
conservadorismo, manter a mesma estratégia e a continuidade do ciclo petista.

Não há solução para esta estratégia nos rumos escolhidos, ao mesmo tempo não há
como buscar outros caminhos mantendo-se no essencial esta estratégia que ao
nosso ver se esgotou.

No melhor cenário imaginado pela comandante agarrada ao timão é que o reajuste
dê certo, a economia capitalista volte a crescer, o governo logre manter a
aliança com o PMDB e tenha condições de disputar as eleições para renovar o
mito. Vejam que o melhor cenário renova o caminho que os colocou no impasse em
que se encontram.

É bom que lembremo-nos que, pelo menos na versão original da história, quando o
lobo veio mesmo… ninguém acreditou no menino.

***


Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador
do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro
do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser
da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe
Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a
emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora
para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

In
http://blogdaboitempo.com.br/2015/07/15/e-o-lobo-e-o-lobo/
15/7/2015

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