segunda-feira, 6 de julho de 2015

Entrevista a Domenico Losurdo - A luta de classes explica o mundo




Claudio Bernabucci

Muitos historiadores afirmam hoje que a resistência da União Soviética contra a
Alemanha nazi na Europa e a resistência chinesa na Ásia contra o imperialismo
japonês foram as maiores guerras coloniais da história. Como tais, elas foram os
maiores exemplos de luta de classes no século XX, uma batalha que sempre assume
características novas e peculiares. A história do século passado é a confirmação
da leitura marxista da história como luta de classes.




CartaCapital: Vivemos em uma época em que o neoliberalismo é hegemónico e age
sem fronteiras. A política, ao contrário, continua presa às estreitas visões
nacionais. A escassez de concepções globais da história que aflige o pensamento
contemporâneo depende desse limite?

Domenico Losurdo: Temos de considerar que, no fim do século passado, com a
derrota das experiências socialistas na União Soviética e na Europa Oriental,
assistimos a uma colossal mudança histórica. Ao mesmo tempo, a afirmação dos
países emergentes e em particular da China como potência mundial representa um
choque que é normal não ser imediatamente sistematizado no pensamento. Meu
trabalho consiste na tentativa de superar esses limites.

CC: Como o senhor definiria, de um ponto de vista histórico-político, a actual
situação internacional?

DL: Nos principais países de capitalismo avançado ocorre um enorme processo de
redistribuição de renda a favor das classes privilegiadas. Ao mesmo tempo, de um
ponto de vista global, podemos observar uma redistribuição a favor das nações
emergentes, aquelas que completam a revolução anticolonialista. Nesse duplo
processo, quem coerentemente apoia um projecto de emancipação da humanidade
deveria agir para contrastar, em nível nacional, a concentração de riqueza em
mãos privilegiadas e, em nível global, favorecer a redistribuição a favor dos
países menos favorecidos.

CC: O senhor lê tais processos como umas das várias configurações da luta de
classes. É correto?

DL: Exactamente. Para entender minha leitura, temos de lembrar que Marx fala de
lutas de classe, sempre no plural. A forma de luta de classes na qual se prestou
mais atenção é aquela entre burguesia e proletariado, mas é preciso evidenciar
que, sobretudo Engels, mas também Marx, indicou na opressão da mulher a primeira
forma de luta de classes. Uma terceira forma é a continuidade da batalha
anticolonialista. Na segunda metade do século passado, ela tomou a forma de
disputa pela libertação nacional e agora persiste como um embate económico entre
países que querem realizar plenamente sua própria autonomia.
O professor emérito de Urbino vem a São Paulo para o lançamento de seu mais
recente livro sobre o tema.

CC: A luta de classes, sobretudo após a derrota do socialismo real, foi recusada
como possível interpretação da história contemporânea. Qual é sua resposta a
esse tipo de argumentação?

DL: Nesse aspecto, eu polemizo abertamente com Niall Ferguson, considerado hoje
o historiador de referência do Ocidente liberal. Ele afirma que no século XX a
luta racial teve importância central, enquanto a luta de classes não teve
relevância alguma. Vejamos os acontecimentos principais do século passado na
Europa e na Ásia. Como demonstram os seus chamados discursos secretos, Heinrich
Himmler, um dos principais chefes do nazismo, manifestou com total clareza a
vontade do Terceiro Reich de realizar um novo regime escravista. A derrota da
União Soviética era a premissa para recrutar escravos, no sentido literal do
termo, que, afirmou Himmler, poderiam “encontrar ali e dos quais precisamos para
trabalhar e servir a nossa raça”. É correto então afirmar que a luta contra a
tentativa de escravizar as chamadas raças inferiores foi uma luta de classes. Um
processo análogo aconteceu na Ásia, com a tentativa do império japonês de
submeter e escravizar os chineses, imitando assim os alemães no escravismo,
maneira mais brutal de colonialismo. Mao Tsé-Tung, em torno de 1938, com muita
lucidez, afirmou que naquelas condições a luta de classes coincidia com a luta
nacional. Tal coincidência se verificou obviamente também na Europa contra
Hitler. Muitos historiadores, não só eu, afirmam hoje que a resistência da União
Soviética contra a Alemanha nazista na Europa e a resistência chinesa na Ásia
contra o imperialismo japonês foram as maiores guerras coloniais da história.
Como tais, elas foram os maiores exemplos de luta de classes no século XX, uma
batalha que sempre assume características novas e peculiares. A história do
século passado é a confirmação da leitura marxista da história como luta de
classes.

CC: A luta de classes resulta útil para interpretar e transformar a realidade
contemporânea?

DL: Na época actual, não existem mais as colónias no sentido clássico, pois é
evidente que a luta anticolonial chegou ao fim em nível planetário. Esse avanço
é, sem dúvida, o resultado de um processo iniciado com a Revolução de Outubro,
quando Lénine conclamou “os escravos das colónias a quebrarem o jugo da
dominação colonial”. O mundo era propriedade de poucas grandes potências
colonialistas, da Ásia à América Latina. Hoje o quadro é outro, mas ela continua
como luta anticolonialista: não é mais pela independência nacional, mas assume a
forma de disputa económica. Uma citação de Mao Tsé-Tung torna-se útil outra vez.
Na véspera da proclamação da República Popular da China, em 1949, ele avisou:
“Se, depois da conquista do poder, não tivermos em conta que os Estados Unidos
querem que a China continue dependendo do trigo americano, a China continuará
sendo substancialmente uma colónia no plano económico. Nesse caso, a
independência política será meramente formal”. Mao entendeu claramente que o
processo de libertação do colonialismo passou da fase político-militar para a
político-económica. Dessa maneira, podemos entender o que acontece nos dias de
hoje com a China: uma das formas da luta de classes vigente é a tentativa de
quebrar o monopólio ocidental da alta tecnologia. Isso vale também para a
América Latina, que se liberou definitivamente da Doutrina Monroe, mas continua
a batalha pela independência económica e pelo desenvolvimento autónomo.

CC: Ilustres prémios Nobel de Economia evidenciaram que também nos países
emergentes o processo de bifurcação entre ricos e pobres aumenta. Como o senhor
avalia essa contradição?

DL: Em nível mundial, o capitalismo continua dominante. Portanto, também nos
países emergentes vê-se uma acumulação de riqueza a favor dos sectores
privilegiados, e quase sempre a distância económica e social entre riqueza e
pobreza se acentua. No Brasil como na China, as três formas de luta de classes
estão contemporaneamente activas, não existe só a forma clássica entre burgueses
e trabalhadores. É sempre preciso fazer a análise concreta da situação concreta.
Cada momento histórico é caracterizado pelo entrelaçamento entre as três
diferentes lutas de classes e, a depender dos contextos específicos,
determina-se a prevalência de uma forma sobre as outras.

CC: Como definir a experiência chinesa, que adoptou um sistema de partido único
e a economia capitalista?

DL: Se por capitalismo entendemos o sistema em que o poder é exercido pela
burguesia, certamente a China não é um país capitalista, pois o poder está
estritamente nas mãos do Partido Comunista. A expropriação política da burguesia
foi realizada completamente, enquanto a económica não, pelo fato de suas
capacidades empreendedoras terem sido consideradas úteis, nessa fase histórica,
para perseguir os objectivos de interesse geral. Portanto, sugiro aceitar a
autodefinição que os dirigentes locais adoptaram: a China se encontra no estágio
primário do socialismo, que acabará em 2049, centenário da República Popular.
Admito ter compartilhado as ilusões do passado, quando as certezas alimentadas
pela filosofia da história garantiam a inevitável vitória do socialismo. Agora
não acredito mais nisso, mas afirmar que na China o capitalismo venceu para
sempre é uma colossal besteira. Palavra de historiador.

In
Diario.info
http://www.odiario.info/?p=3698
6/7/2015

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