segunda-feira, 13 de maio de 2019

A águia, o urso e o dragão





    – "Europa: Uma terra de cegos que guia outros cegos"

*por Pepe Escobar [*]

Antigamente, pela noite adentro, à volta de fogueiras em desertos do
sudeste asiático, eu costumava contar uma fábula
<https://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2011/12/2011121811848534778.html>
sobre a águia, o urso e o dragão – para grande satisfação dos meus
interlocutores árabes e persas.

A ponte do dragão. Contava como a águia, o urso e o dragão, no início do
século XXI, tinham tirado as suas luvas (de pele) e se envolveram no que
acabou por ser a Guerra Fria 2.0.

Quando nos aproximamos do fim da segunda década deste século já
incandescente, talvez seja proveitoso atualizar aquela fábula. Com o
devido respeito a Jean de la Fontaine
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_de_La_Fontaine> , desculpem-me
enquanto volto a beijar o céu [1] <#nr> (deserto).

Longe vão os dias em que um urso frustrado se ofereceu várias vezes para
cooperar com a águia e os seus lacaios numa questão escaldante: os
mísseis nucleares.

O urso argumentou reiteradas vezes que a colocação de mísseis de
interceção e de radares naquela terra de cegos que guiavam cegos – a
Europa – era uma ameaça. A águia contra-argumentou repetidas vezes que
aquilo era para nos proteger daqueles patifes persas.

Agora, a águia – afirmando que o dragão está a ter uma vida fácil –
rasgou todos os tratados em vigor e está apostada em colocar mísseis
nucleares em zonas orientais selecionadas na terra dos cegos que guiam
os cegos, essencialmente para visar o urso.

*Tudo o que brilha é seda *

Selo da URSS. Menos de 20 anos depois daquilo a que o urso-mor Putin
definiu como "a maior catástrofe geopolítica do século XX", este propôs
uma forma de URSS /light / ; um órgão político-económico chamado a União
Económica Eurasiática (UEE).

A ideia era ter a UEE a interagir com a União Europeia – a instituição
de topo da equipa heterogénea conjunta dos cegos que guiam os cegos.

A águia não se limitou a rejeitar uma possível integração; saiu-se com
um cenário de revolução colorida modificada a fim de desligar a Ucrânia
da UEE.

Ainda antes disso, a águia havia querido estabelecer uma Nova Rota da
Seda sob o seu total controlo. A águia havia-se esquecido
convenientemente de que a original, a Antiga Rota da Seda, ligara o
dragão ao império romano durante séculos – sem intrusos do exterior da
Eurásia.

Assim, podemos imaginar o assombro da águia quando o dragão irrompeu no
palco global com as suas Novas Rotas da Seda super carregadas –
melhorando a ideia original do urso de uma área de comércio livre "de
Lisboa a Vladivostok" e transformando-a num corredor de múltiplas
interligações, terrestres e marítimas, da China oriental à Europa
ocidental, incluindo tudo entre esses dois extremos, abrangendo toda a
Eurásia.

Perante este novo paradigma, os cegos, claro, mantiveram-se cegos
durante tanto tempo quanto nos podemos lembrar; e, pura e simplesmente,
não conseguiram agir em conjunto.

Águia, de James Audubon. Entretanto, a águia ia aumentando a parada.
Lançou o que, para todos os efeitos práticos, era um cerco ao dragão,
progressivamente cheio de armas.

A águia fez uma série de movimentos que equivaliam a incitar os países
fronteiriços do Mar do Sul da China a antagonizar o dragão, enquanto
alterava a disposição duma série de brinquedos – submarinos nucleares,
porta-aviões, caças a jato – cada vez mais próximos do território do
dragão.

Durante este tempo todo, o que o dragão via – e continua a ver – é uma
águia estropiada, tentando abrir caminho à força para sair dum declínio
irreversível, tentando intimidar, isolar e sabotar a ascensão imparável
do dragão para o lugar que sempre ocupara, durante 18 dos últimos 20
séculos:   a sua entronização como rei da selva.

Um vetor fundamental é que os atores de toda a Eurásia sabem que, à luz
das novas leis da selva, o dragão não pode – e não irá – ser reduzido,
pura e simplesmente, à situação de ator secundário. E os atores de toda
a Eurásia são demasiado espertos para embarcar numa Guerra Fria 2.0 que
daria cabo da própria Eurásia.

A reação da águia à estratégia da Nova Rota da Seda do dragão levou
algum tempo a passar da inação à demonização aberta – complementando com
a descrição conjunta do dragão e do urso como ameaças existenciais.

Contudo, apesar de todo este fogo cruzado, os atores de toda a Eurásia
já não se sentem propriamente impressionados com o império da águia
armada até aos dentes. Especialmente depois de a crista da águia ter
sido gravemente ferida por fracassos sobre fracassos, no Afeganistão, no
Iraque, na Líbia e na Síria. Os porta-aviões da águia que patrulham a
parte oriental do Mare Nostrum não estão propriamente a assustar o urso,
os persas e os sírios.

Um acordo entre a águia e o urso sempre foi um mito. Demorou algum tempo
– e muita perturbação financeira – até o urso perceber que não iria
haver nenhum acordo, enquanto o dragão só via acordo para um confronto
aberto.

Depois de se estabelecer, lentamente, mas com segurança, como a potência
militar mais avançada do planeta, com conhecimentos hipersónicos, o urso
chegou a uma conclusão espantosa:   já não nos preocupamos com o que a
águia diz – ou faz.

*Sob o vulcão em erupção *

Águia, de James Audubon. Entretanto, o dragão continua a expandir-se,
inexoravelmente, por todas as latitudes asiáticas, assim como pela
África, pela América Latina e até pelas pastagens infestadas pelo
desemprego dos cegos que guiam os cegos, atingidos pela austeridade.

O dragão está firmemente convencido de que, se for encurralado ao ponto
de ter de recorrer a uma opção nuclear, detém o poder de fazer explodir
o estarrecedor défice da águia [2] <#nr> , reduzir a zero a sua
avaliação de crédito e criar o caos no sistema financeiro mundial.

Não é de admirar que a águia, sob uma nuvem paranoica que tudo envolve,
de dissonância cognitiva, alimentando ininterruptamente a propaganda do
estado aos seus súbditos e lacaios, continue a cuspir lava como um
vulcão em erupção – impondo sanções a uma grande parte do planeta,
entretendo sonhos eróticos /(wet dreams) / de mudança de regime,
lançando um embargo total contra os persas, ressuscitando a "guerra
contra o terrorismo" e tentando punir
<https://consortiumnews.com/2019/04/30/vips-extradition-of-julian-assange-threatens-us-all/>
quaisquer jornalistas, editores ou denunciantes que revelem as suas
maquinações internas.

Dói imenso reconhecer que o centro político-económico de um novo mundo
multipolar vai ser a Ásia – ou seja a Eurásia.

À medida que a águia se torna cada vez mais ameaçadora, o urso e o
dragão aproximam-se cada vez mais na sua parceria estratégica. Agora,
tanto o urso como o dragão têm demasiados laços estratégicos por todo o
planeta para serem intimidados pelo enorme Império de Bases [militares]
da águia ou por aquelas coligações periódicas dos que a isso se dispõem
(um tanto relutantes).

Para corresponder à integração abrangente em curso da Eurásia, de que as
Novas Rotas da Seda são o símbolo gráfico, a fúria da águia, sem freios,
nada tem a oferecer – exceto requentar guerra contra o Islão, em
conjunto com o cerco bélico ao urso e ao dragão.

Depois, há a Pérsia – esses mestres jogadores de xadrez. A águia tem
vindo a perseguir os persas desde que eles se viram livres do procônsul
da águia, o Xá, em 1979 – isso depois de a águia e a pérfida Albion
terem esmagado a democracia em 1953 e colocado o Xá no poder, o qual
fazia com que Saddam se parecesse a um Gandhi.

A águia quer todo o petróleo e o gás natural de volta – para não falar
de um novo Xá no papel de novo polícia do Golfo Pérsico. A diferença é
que, agora, o urso e o dragão estão a dizer Nem Pensem. O que é que a
águia irá fazer? Hastear a bandeira falsa para acabar com todas as
bandeiras falsas?

É onde estamos agora. E mais uma vez, chegámos ao fim – embora não seja
o fim do jogo. Ainda não há nenhuma moral para esta fábula modernizada.
Continuamos a sofrer os ataques e as frechadas de um lamentável destino.
A nossa única e débil esperança é que um grupo de /Homens vazios / [3]
<#nr> obcecados pelo Segundo Advento [do Messias] não transforme a
Guerra Fria 2.0 num Armagedão
<https://pt.wiktionary.org/wiki/Armaged%C3%A3o> .

06/Maio/2019

*[1] Beijar o céu:   Realizar aspirações, frase de canção de Jimi Hendrix.
[2] Here's What Happens if China DUMPS Its $1 Trillion in US Debt Amid
Trade War
<https://sputniknews.com/business/201905121074943114-china-us-tbills-fate/>
[3] Homens vazios:   Refere-se à poesia /The Hollow Men/
<https://allpoetry.com/The-Hollow-Men> , de T. S. Elliot: "[...] Este é
o modo como o mundo acaba. Não com um bang mas com uma lamúria".

[*] Jornalista, brasileiro, correspondente do /Asia Times/
<https://www.asiatimes.com/> . O seu último livro é /2030/
<https://www.bookdepository.com/2030-Pepe-Escobar/9781608880355?ref=grid-view&qid=1557618165216&sr=1-3>
.

O original encontra-se em
consortiumnews.com/2019/05/06/pepe-escobar-the-eagle-the-bear-and-the-dragon/
<https://consortiumnews.com/2019/05/06/pepe-escobar-the-eagle-the-bear-and-the-dragon/>
. Tradução de Margarida Ferreira. *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/eua/escobar_06mai19_p.html#nr
13/5/2019

Nenhum comentário:

Postar um comentário