sábado, 25 de maio de 2019

Dois marxismos?



*por Greg Godels *

O Google sabe que tenho um interesse permanente no marxismo.
Consequentemente, recebo links frequentes para artigos que os algoritmos
do Google seleccionam como populares ou influentes. Sistematicamente, no
topo da lista, estão artigos de ou sobre o irreprimível Slavoj Žižek.
Žižek dominou os truques de um intelectual público – divertido, pomposo,
escandaloso, calculadamente obscuro e amaneirado. A pose desalinhada e a
barba desgrenhada somam-se a uma quase caricatura do professor europeu,
a presentear o mundo com grandes ideias profundamente embebidas em
camadas de obscurantismo – uma maneira infalível de parecer profundo. E
uma maneira infalível de promover o valor comercial do entretenimento.

. Seguidores próximos do "mestre" até postam vídeos de Žižek a devorar
hot dogs – um em cada mão ! Ele está actualmente a ganhar dinheiro com
um debate público com um congénere de direita que é um saco vazio, o
qual supostamente torna obscenos os preços dos ingressos. O marxismo
como empreendedorismo.

Žižek é uma das mais recentes repetições de uma longa linhagem de
académicos em grande parte europeus que constroem uma modesta
celebridade pública a partir de uma identificação com o marxismo ou a
tradição marxista. De Sartre e o existencialismo até o estruturalismo,
pós-modernismo, pós-essencialismo, pós-fordismo e política identitária,
académicos apropriaram-se de partes da tradição marxista e afirmaram
repensar aquela tradição, enquanto mantinham uma distância segura e bem
medida em relação a qualquer movimento marxista. Eles são marxistas
quando isso lhes traz uma audiência, mas raramente respondem ao chamado
à acção.

O curioso sobre este marxismo intelectual, de salão de conversa, o
marxismo diletante, é que nunca é completo; é marxismo com reservas
sérias. O marxismo é bom se for o do Marx "primitivo", do Marx
"humanista", do Marx "hegeliano", do Marx dos /Grundrisse, / do Marx sem
Engels, do Marx sem a classe trabalhadora, do Marx antes do bolchevismo,
ou antes do comunismo. Compreensivelmente, se quiser ser o próximo
grande domador de Marx, deve separar-se da manada, deve repensar o
marxismo, redescobrir o Marx "real", mostrar onde Marx errou.

Gerações anteriores de estudantes universitários bem-intencionados, mas
com confusão de classe, foram seduzidas por pensadores "radicais" que
oferecem um gostinho de rebeldia num pacote académico sexy. Estudantes
carregam montes de livros não lidos, mas livros de autores na moda como
Marcuse, Althusser, Lacan, Deleuze, Laclau, Mouffe, Foucault, Derrida,
Negri e Hardt – autores que compartilhavam características comuns com
livros de títulos exóticos e provocativos e prosa impenetrável. Livros
que prometiam muito, mas entregavam trevas.

Com uma nova geração de jovens de mentalidade radical em busca de
alternativas ao capitalismo e curiosos acerca do socialismo, é
inevitável que muitos estejam a olhar para Marx. E para onde se voltam?

Um professor de Yale desavergonhadamente apresenta na badalada /Jacobin
Magazine / uma cartilha para iniciantes intitulada /Como ser um
marxista/
<https://www.jacobinmag.com/2019/04/this-life-review-martin-hagglund-socialism>
. O professor Samuel Moyn actualmente exerce na cadeira Henry R. Luce
[1] <#nr> de jurisprudência. Aparentemente, Moyn não se sente
desconfortável em possuir uma cadeira dotada por um dos mais notórios
editores anti-comunistas e anti-marxistas do país quando apresenta o seu
guia para o marxismo.

A pretensão de Moyn de guiar os que não têm conhecimento do marxismo não
se justifica nem se explica. No entanto, ele sente-se confiante para
recomendar dois académicos recentemente falecidos, Moishe Postone e Erik
Olin Wright (juntamente com o ainda vivo Perry Anderson), como
representando os últimos da "…geração de grandes intelectuais cujas
experiências da década de 1960 levaram-nos a dedicar a vida inteira a
recuperar e re-imaginar o marxismo".

Confesso que a sua escolha de Moishe Postone deixou-me desconcertado.
Deveria eu ficar embaraçado por dizer que nunca conheci o trabalho do
professor Postone ou que não o conheci como marxista? Quando encontrei
no YouTube uma entrevista <https://www.youtube.com/watch?v=OJIaze-C2Qs>
com o estimado Professor Postone, descobri rapidamente que ele
enfaticamente e sem reservas nega ser marxista. Além disso, Postone
pretende que a maior parte do que chamamos de marxismo foi escrita por
Frederick Engels. Postone admite que Engels era "realmente um bom
rapaz", mas que Engels nunca entendeu Marx adequadamente. Postone, por
outro lado, sim. E o seu Marx não "glorifica" a classe trabalhadora
industrial.

Estou no entanto familiarizado com o outro alegado exemplar de uma
devoção de "grande intelectual" ao marxismo, Erik Olin Wright. Wright
foi um membro consagrado e proeminente da chamada escola do "Marxismo
Analítico". Wright, como os demais membros desse movimento intelectual,
tentou colocar o marxismo numa base "legítima", onde a legitimidade era
obtida submetendo o marxismo aos rigores da ciência social
anglo-americana convencional. O conceito de que a ciência social
anglo-americana é sem viézes ou que nada tem a aprender com o método de
Marx jamais é questionado com essa gente. Mas, para crédito de Wright,
ele lutou com unhas e dentes para apreender o conceito de classe social.

A fim de "salvar a esquerda de se meter em vários becos sem saída", o
professor Moyn oferece o último livro de seu "colega brilhante", Martin
Hägglund. Moyn assegura-nos que /"This Life: Secular Faith and Spiritual
Freedom" ("Esta vida: Fé laica e libertação espiritual") / é excelente
para começar por aqueles que querem estimular a teoria do socialismo, ou
mesmo construir a sua própria teoria de uma variante marxista dela".

Basta apenas um breve momento para verificar que Martin Hägglund e seu
admirável colega estão a levar-nos a outros becos sem saída, alguns
pisados por muitas gerações anteriores. A jornada de Hägglund
revisitaria o existencialismo, Hegel e as tradições cristãs em busca do
evasivo "sentido da vida". Embora muitos de nós pensassem que Marx
oferecia uma análise profundamente informada da mudança social e da
justiça social, Moyn / Hägglund, seguindo Postone, avançam com "as
perguntas finais que todos devem fazer: que trabalho deveria eu fazer?
Como deveria gastar meu tempo finito?" Acumular capital contrapõe-se,
sugerem eles, a "maximizar... o tempo livre individual a despendê-lo
como lhe agradar..."

Assim, a luta pela emancipação, neste repensar do marxismo, não é a
emancipação da classe trabalhadora, mas o arrebatar de tempo livremente
descartável das garras do trabalho. Os professores admitem que esta luta
é muito mais fácil para académicos do que para os "miseráveis da terra".

"E finalmente", conclui Moyn, "há a proposta de Hägglund de que os
marxistas podem abandonar o comunismo – que, em qualquer caso, Marx
descreveu vagamente – em favor da democracia. Não está totalmente claro
o que Hägglund quer dizer com democracia, algo que nem o próprio Marx
nem muitos marxistas optaram por investigar teoricamente. Assim,
Hägglund destila "marxismo" numa rejeição do comunismo e num abraço de
uma vaga "democracia". Eu teria de concordar com Moyn quando ele diz:
"Na verdade, é notável quão poucas pessoas pensaram que a teoria
marxista tornara-se a tentativa de Hägglund de recomeçá-la no nosso
tempo". Aparentemente, o segredo agora revelado de se tornar um marxista
é descartar Marx

Tal como muitos auto-proclamados "marxistas", que antecederam Postone,
Hägglund e Moyn, a intenção dos mesmos parece ser mais a de defraudar o
marxismo do que a de promovê-lo.

*Ideias perigosas *

A verdade nua e crua é que o marxismo – desde a época da censura de Marx
e das suas múltiplas expulsões de diferentes países – é uma ideia
perigosa. A incapacidade de Marx de assegurar nomeações académicas e a
sua constante vigilância e perseguição por parte das autoridades provou
ser um precursor do destino de quase todos os intelectuais marxistas
autênticos. O capitalismo não dá àqueles que defendem a destruição do
capitalismo honra académica ou celebridade. E aqueles "marxistas" que se
tornam aclamados por académicos, que obtêm lucrativos negócios de
livros, que desfrutam de exposição nos media, raramente representam
grande ameaça ao sistema.

É um facto revelador que, embora a história tenha produzido muitos
marxistas "orgânicos", marxistas com raízes na classe trabalhadora e em
movimentos que desafiam o capitalismo, suas contribuições raramente
povoam as bibliografias de professores universitários, a menos que sejam
para ridicularizá-las. O emprego universitário raramente está disponível
para fornecedores de ideias perigosas ou para a defesa de uma versão de
Marx que apele a mudanças revolucionárias.

Um historiador marxista como o falecido Herbert Aptheker
<https://www.bookdepository.com/search?searchTerm=Herbert+Aptheker&search=Find+book>
– que fez mais do que qualquer outro intelectual para desafiar a
representação distorcida, em /Nascimento de uma nação / E tudo o vento
levou, / de um Sul benévolo e da sua heróica defesa de um nobre estilo
de vida – não conseguiu encontrar trabalho em universidades dos EUA. Na
verdade, até foi preciso um movimento pela liberdade de expressão para
que lhe fosse permite falar nos /campi / dos EUA. Seus livros
desapareceram da circulação e poucos estudantes de história
afro-americana têm acesso às suas contribuições.

Ninguém elaborou uma história do movimento trabalhista americano que
rivalizasse com a do falecido marxita Phillip Foner
<https://www.bookdepository.com/search?searchTerm=Phillip+Foner&search=Find+book>
, os 10 volumes de /History of the Labor Movement. / Os cinco volume de
/The Life and Writings of Frederick Douglass / , também de Foner,
restabeleceram Douglasse como uma figura proeminente na abolição da
escravatura nos EUA. Uma universidade historicamente negra, a Lincoln
University, corajosamente contratou Foner após anos de listas negras.
Infelizmente, hoje, suas obras são amplamente ignoradas nos campos em
que foi pioneiro.

As sérias contribuições de muitos outros intelectuais marxistas dos EUA
podem ser encontradas em edições antigas de publicações como /Science
and Society <http://www.scienceandsociety.com/> , Political Affairs,
Masses, Masses and Mainstream e Freedomways / a descansarem em
prateleiras recônditas e poeirentas, diminuídas pelo macarthismo, pelas
listas negras, pela covardia académica e pelo anticomunismo grosseiro.

As portas e o discurso público da academia e dos mass media foram
igualmente fechados aos marxistas da classe trabalhadora (a menos que
renunciem a seus pontos de vista!). Apesar de sua liderança dos
movimentos da classe trabalhadora e de escrever prolificamente, os
trabalhos marxistas de William Z. Foster
<https://www.bookdepository.com/search?searchTerm=William+Z.+Foster&search=Find+book>
sobre organização, estratégia e tácticas trabalhistas e economia
política estão em grande medida esquecidos, a menos que reapareçam como
o pensamento de outra pessoa. A outras importantes figuras marxistas
responsáveis por alguns dos melhores momentos da força de trabalho e
pela sua interpretação, como Len De Caux e Wyndham Mortimer, é-lhes
negada a entrada no clube.

Analogamente, pioneiros marxistas nos movimentos de igualdade dos negros
e das mulheres, como Benjamin Davis, William Patterson e Claudia Jones,
não são nem louvados como tais nem são apresentados como exemplos de
"Como ser um marxista".

A obra do economista político marxista Victor Perlo
<https://www.bookdepository.com/search?searchTerm=Victor+Perlo&search=Find+book>
na identificação dos mais altos limites do capital financeiro e da
teoria económica do racismo estão curiosamente ausentes de qualquer
conversação académica relevante.

O que todos esses marxistas compartilham é uma vida política activista
no Partido Comunista dos EUA, um distintivo orgulhoso, mas denegrido
pela maior parte dos intelectuais americanos.

Os melhores escritos da venerável /Monthly Review / sofrem a mesma
marginalização. Seus fundadores foram ameaçados o suficiente para serem
vitimizados pelo /Red scare/ <https://en.wikipedia.org/wiki/Red_Scare> .
E o seu co-fundador Paul Sweezy, um sério economista político marxista,
nunca foi entusiasticamente recebido nos círculos académicos.

Hoje, Michael Parenti
<https://www.bookdepository.com/search?searchTerm=Michael+Parenti&search=Find+book>
é o mais perigoso intelectual marxista nos EUA. Sei disto porque apesar
de incontáveis livros, vídeos e palestras, apesar de um compromisso
intransigente com uma interpretação marxista da história e dos
acontecimentos actuais, apesar de um profundo, mas fundamentado ódio ao
capitalismo, e apesar de um estilo admiravelmente acessível e com
grandes ideias, ele não tem emprego em universidades e é-lhe negado
acesso a todos os media, excepto os mais à esquerda ou marginais.

Outro impressionante estudioso marxista dos EUA, Gerald Horne
<https://www.bookdepository.com/search?searchTerm=Gerald+Horne&search=Find+book>
, embora desfrutando de estabilidade académica, merece ser estudado por
todos os "esquerdistas" nos EUA pela integridade, acessibilidade e
qualidade do seu trabalho.

O marxismo autêntico, em oposição ao marxismo da moda, do modismo, ou do
marxismo caprichoso, é implacável, agressivo e inspirador de acção. Ele
disseca diligentemente o funcionamento interno do sistema capitalista. É
implacável e impiedoso na sua rejeição ao capitalismo. Ele desafia o
pensamento convencional, fazendo poucos amigos na imprensa capitalista e
abalando a gentileza e a colegialidade do liberalismo tranquilo da
academia. O marxismo não é um avanço de carreira, mas um compromisso
ingrato.

Os marxistas reais são necessariamente anómalos /(outliers). / Até as
condições para mudanças revolucionárias amadurecerem, eles são
frequentemente sujeitos a cepticismo, desinteresse, até escárnio e
hostilidade. Os que posam como marxistas são alérgicos a organizações
políticas, activismo e risco intelectual, ao passo que marxistas
comprometidos são obrigados a buscar e unir movimentos pela mudança.
Eles são levados a servir a muito citada tese de Marx e raramente
atendida na décima primeira tese sobre Feurbach: "Os filósofos só
interpretaram o mundo de várias maneiras; a questão no entanto é mudá-lo".

30/Abril/2019

[1] Magnata da imprensa, en.wikipedia.org/wiki/Henry_Luce
<https://en.wikipedia.org/wiki/Henry_Luce>

*O original encontra-se em https://mltoday.com/two-marxisms/
<https://mltoday.com/two-marxisms/> *

In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/crise/dois_marxismos.html
24/5/2019

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