sábado, 11 de maio de 2019

Gramscismo: uma ideologia da extrema-direita




"Não existe 'gramscismo' em Gramsci. Ele é a auto-descrição dos seus próprios
criadores. A caricatura do pensamento do outro existe porque as teorias
conspiratórias são basicamente fetichistas, não podem jamais conceber a
complexidade do pensamento adversário"


Por Lincoln Secco


Nos estertores da Ditadura Civil-Militar, a extrema-direita brasileira enfrentou
uma crise de direção e teve que mudar. Os ideólogos militares se voltaram para
novas teorias que a esquerda brasileira debatia no final dos anos 1970, entre
elas a de Antonio Gramsci1.

A atenção se justificava porque a luta armada não existia mais, o alvo havia se
embaçado e, apesar da repressão, o Partido Comunista havia sobrevivido
eleitoralmente no MDB e continuava ativo no meio sindical. Os serviços de
inteligência precisavam de novas funções. Muitos delatores civis foram
abandonados e se envolveram na criminalidade comum2. Entre março de 1978 e maio
de 1981 os grupos de repressão militares realizaram 40 atentados (sequestros,
assassinatos e explosões)3. Mas eram atos de desespero diante da iminente
retirada de cena.

A subversão passou a ser identificada pelos oficiais brasileiros numa suposta
estratégia indireta gramsciana operada por partidos, escolas e Igreja Católica.
A Regional Nordeste I da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil era acusada
de ensinar a tomada do poder num de seus cadernos pastorais com base em
Gramsci4.

A formulação do gramscismo nos anos 1980

Na “Síntese da situação da subversão no Brasil”, documento da delegação militar
brasileira na 17ª Conferência dos Exércitos Americanos, 30% dos constituintes
eram considerados subversivos5. O evento transcorreu em novembro de 1987 em Mar
del Plata, na Argentina.

Naquela conferência havia representantes de 15 Exércitos das Américas (entre
eles o do Brasil), os quais assinaram um acordo que previa “ações nos demais
campos do poder”, além do estritamente militar, para “a segurança e defesa do
continente americano contra o Movimento Comunista Internacional”.

O informe de inteligência apresentado àquela Conferência dos Exércitos
Americanos apontava Antonio Gramsci como o ideólogo da nova estratégia do
Movimento Comunista Internacional. Para a América Latina, essa estratégia
recebeu o nome de “amerocomunismo”, em adaptação do “eurocomunismo” adotado na
Europa. Dizia o relatório:

“Para Gramsci, o método não consistia na conquista ‘revolucionária do poder’,
mas em subverter culturalmente a sociedade como passo imediato para alcançar o
poder político de forma progressiva, pacífica e perene […]. Para este ideólogo,
a ideia principal se baseia na utilização do jogo democrático para a instalação
do socialismo no poder. Uma vez alcançado esse primeiro objetivo, se busca impor
finalmente o comunismo revolucionário. Sua obra está dirigida especialmente aos
intelectuais, profissionais e aos que manejam os meios maciços de comunicação
social”6.

Recuo e retomada nos anos 1990

Ao lado dessa preocupação com as ideias de Gramsci, vários organismos de difusão
do ideário pró mercado foram fundados nos anos 1980. Mas o fracasso do governo
Collor, identificado com aquela visão, levou a um retrocesso e à queda das
atividades dos think tanks liberais7.

Apesar disso, em 1994 o escritor Olavo de Carvalho, que viria a se tornar um
ideólogo da nova direita, lançou um livro contra Gramsci, em que o descrevia
como o “profeta da imbecilidade, o guia de imbecis”8. Carvalho manteve uma
intransigência doutrinária constante mesmo sob a mais severa marginalização.
Inspirou-se no exemplo dos neoliberais da época de Hayek, os quais souberam
esperar os ventos propícios às suas ideias.

O autor associava a esquerda ao crime organizado e investia contra o “comunismo
disfarçado do PT”. Ele usou várias metáforas sexuais para descrever conceitos de
Gramsci: “sedução”, “estupro”, “sacudir as banhas” (sic), “sacanagem”, “suruba
ideológica”, “etapa orgiástica”, “Antônio-só-a-cabecinha-Gramsci” e “penetração
camuflada”. Para ele, Gramsci estaria para a sedução como Lênin para o estupro.
Mais tarde ele escreveu o artigo “Máfia Gramsciana”9, completando com analogias
entre o marxismo e associações criminosas.

A importância do autor é que ele antecipou uma linguagem apelativa e
anti-intelectual antes que esse tipo de abordagem encontrasse um lugar e um
instrumento eficiente de disseminação nas redes sociais, então inexistentes.

Até então esse tipo de escrita era bastante marginal e os escritores liberais
procuravam pontos de contato com a tradição de esquerda, endereçando-lhe
críticas mais sofisticadas, como foi o caso de José Guilherme Merquior, assessor
informal do ex-Presidente Fernando Collor. Outros se abrigavam em seu lócus
ideológico de maior força: a teoria neoclássica, como a maioria dos economistas.
Mas isso mudou.

A virada à histeria coletiva

No seu livro A Revolução Gramscista no Ocidente: a Concepção Revolucionária de
Antônio Gramsci em os Cadernos do Cárcere, de 2002, o General Sérgio Augusto de
Avellar Coutinho escreveu que a versão “gramscista” de tomada do poder seria
“levada a efeito após a conquista legal do governo”, sob “máscara
constitucional”, e só podia ser evitada pela intervenção político-militar em
resposta ao apelo da sociedade nacional.

Em nome da defesa da Ordem é preciso sacrificar a Constituição pois ela permite
a execução da estratégia indireta do “gramscismo”. Embora aparentemente baseada
na consulta da edição brasileira dos “Cadernos do Cárcere”, portanto uma
pesquisa dotada de lógica interna, a cadência da exposição é quebrada por
denúncias da base “nasserista” (sic) do PT, do marxismo de Lula e de José Serra,
entre outros comentários políticos.

Anos depois o Instituto Von Mises denunciaria “o veneno de Bakhtin, Gramsci,
Piaget e Freire”10. Até o geógrafo Milton Santos estaria maculado pelo
gramscismo, conforme o blog O Anti-Gramsci, destinado a combater “a Revolução
Silenciosa que embota a consciência brasileira”. A Escola de Frankfurt,
Althusser e Edward Said também seriam pais da “Nova Ordem Mundial” e da
perestroika (sic), esta entendida como “uma virada estratégica rumo à dominação
mundial através de uma lenta revolução cultural encabeçada pelo ecologismo”
(sic).

A Biblioteca do Exército, através de Nilson Vieira Ferreira de Mello, membro do
seu Conselho Editorial, divulgou o citado livro A Revolução Gramscista no
Ocidente de Sérgio Coutinho. Haveria uma “estratégia gramsciana de implantar o
socialismo sem recorrer às armas convencionais”11.

Da teoria à prática

A campanha da extrema direita à presidência foi baseada no combate à cultura de
esquerda, à “ideologia de gênero” e à visibilidade de comportamentos dissonantes
da tradicional família brasileira. O Vice dele, General Mourão, afirmou que “o
marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo, se uniu às oligarquias
corruptas para minar os valores da nação e da família brasileira”12. Na verdade
era uma cópia de um trecho do plano de governo de Bolsonaro. O empresário Flavio
Rocha, dono das lojas Riachuelo, disse que precisamos atacar o gramscismo que
está espalhado pelo país13. Para o General Osvaldo Ferreira, assessor de
Bolsonaro para a educação, o objetivo seria o de reduzir a influência de Gramsci
e Paulo Freire na formação de professores14.

A onda contra o gramscismo atingiu até um tradicional jornal paulista, que conta
entre seus articulistas intelectuais liberais de origem gramsciana, como Marco
Aurelio Nogueira e Luiz Sergio Henriques. Pouco depois de publicar um artigo
contra o marxismo cultural do General Rômulo Pereira15, O Estado de S. Paulo fez
publicar um editorial “contra doutrinação do marxismo gramsciano”16. A
International Gramsci Society, seção brasileira, produziu uma Carta Aberta em
resposta à ameaça do “gramscismo”17.

Técnicas de manipulação

A maioria dos professores sabe que a melhor maneira de se fazer de um aluno um
adversário é doutriná-lo. A cátedra não é o púlpito ou a tribuna. Há o ideal da
neutralidade axiológica, a oferta de múltiplas abordagens e até a honestidade
intelectual de revelar o ponto de partida teórico. Isso é educar para a
liberdade.

Antonio Gramsci é citado no Brasil desde 1923 e, na expressão do estudioso
italiano Guido Liguori, sempre foi um autor “conteso” ou seja, “disputado”. Foi,
portanto, um legítimo objeto de estudos acadêmicos. Assim, não surpreendia a
ninguém que um pensador liberal erudito como J. G. Merquior discutisse suas
ideias nos anos 1980 ou que o professor da USP Oliveiros Ferreira, um profundo e
respeitado intelectual conservador, fizesse uma tese acadêmica sobre Gramsci.
Depois disso, raramente um acadêmico conservador pesquisou o pensamento
gramsciano, exceto em artigos de ocasião com baixo valor intelectual18.

Entretanto, a ninguém passava pela cabeça que qualquer pensador importante
pudesse simplesmente se tornar o centro de uma teoria conspiratória. O problema
não está na estatura intelectual, em geral sofrível, do adepto desse tipo de
teoria. No Brasil nenhum intelectual reconhecido aderiu a posições de
extrema-direita. Teóricos importantes como Heidegger, Hjalmar Schacht e Carl
Schmidt aderiram ao nazismo.

Mas o problema está na própria extrema-direita. Ela se resume no fim das contas
a uma manipulação racional da irracionalidade de seus seguidores. Isso impede
qualquer sofisticação teórica. Seus ideólogos não podem ser profundos, apenas
técnicos ou criadores de palavras de ordem simplórias, boatos e conspirações.
Daí a glorificação do “especialista” e o desprezo pela Filosofia, enquanto a
História se torna palco de disputas entre a “verdade sufocada” e a “manipulação”
promovida pela quase totalidade dos historiadores profissionais.

“Memes”, manipulação de imagens e notícias, palavras de ordem mentirosas
repetidas ad nauseam e redução de todo pensamento e comportamento diverso a uma
caricatura já existiam. Goebbels foi um mestre nessa técnica. Mas um aspecto
formal indispensável foi a combinação de três vertentes opostas: referências
supostamente eruditas; linguagem apelativa e vulgar; convite à ação. Vamos a
elas.

Em primeiro lugar, o “erudito” da nova direita cita autores que ele supõe serem
marxistas, ampliando bastante o conceito para nele incluir qualquer um que dele
discorde. De São Tomás de Aquino a Leonardo Boff, de Fernando Henrique Cardoso a
Marilena Chaui, são todos revolucionários. A linguagem tem um ritmo: recurso à
história, suposta demonstração de conhecimento do “pensamento de esquerda” e
citações (normalmente cópias de índices onomásticos ou “copia e cola” de textos
da internet para “provar” a leitura dedicada das obras de Gramsci, por exemplo).

Em segundo lugar, há um recurso preponderante, uma técnica e um método. O
recurso é a linguagem envilecida, com abundância de adjetivos, combinada com a
“erudição”, constituindo uma miscelânea propositalmente confusa. A técnica é a
redução de conceitos a simplificações e agressões verbais. O método é a
argumentação ad hominem e, seu corolário, a explicação do pensamento oposto
pelas qualidades que seriam intrínsecas ao adversário.

O adversário é um pseudo-intelectual, um homem ou mulher medíocre. A esquerda é
incapaz, fracassada, de classe-média e lideranças de trabalhadores são
qualificadas de apedeutas, analfabetos funcionais, delirantes etc. Note-se que
parece se tratar do medo que o próprio formulador tem de estar fazendo uma
auto-descrição.

Por fim, há um apelo à ação. Começa pela auto-glorificação do próprio fracasso,
do isolamento, do não reconhecimento intelectual. A culpa seria da penetração
“gramscista” nos meios de comunicação e do monopólio dos adeptos de Paulo Freire
nas escolas, universidades, jornais, revistas e até na Rede Globo. Vincula-se a
isso a citação de autores ultra liberais sem repercussão acadêmica. Eles são
apresentados como gênios incompreendidos, resgatados do limbo.

O escopo é evidente: os que os retiram do esquecimento estão retirando a si
mesmos de uma condição análoga e ainda demonstrando que a “esquerda” é ignara a
ponto de desconhecer aqueles autores fundamentais para a história da filosofia.
Paralelamente, propõem o fim da própria Filosofia, mediante sua proibição nas
escolas e retirada de verbas nas universidades públicas e convidam todos à ação
moralizadora.

Uma “conclusão gramsciana”

Não existe “gramscismo” em Gramsci, é óbvio. Ele é a auto-descrição dos seus
próprios criadores. A caricatura do pensamento do outro existe porque as teorias
conspiratórias são basicamente fetichistas. Agarram-se a “fatos” e descrições
sumárias de comportamentos e indivíduos que personificariam a “estratégia” do
inimigo. Assim, uma mulher lésbica não é uma pessoa e sim a personficação de uma
ideologia.

Eles não podem jamais conceber a complexidade do pensamento adversário. Seu
modus operandi consiste no uso de técnicas ideológicas de penetração cultural
nos meios de comunicação para difundir a ideia de que há um núcleo conspiratório
“marxista cultural”, de forma semelhante à conspiração “judaico-bolchevique” do
passado. Os “gramscistas” são eles mesmos.

***

Pra quem realmente quiser entender o pensamento gramsciano para além das
distorções do “gramscismo” formulado pela extrema-direita brasileira,
recomendamos consultar o Dicionário gramsciano, organizado por Guido Liguori e
Pasquale Voza. A obra destrincha os principais conceitos de Antonio Gramsci em
uma enciclopédia com mais de 600 verbetes, elaborados por alguns dos mais
importantes estudiosos de sua obra no mundo.



Na TV Boitempo, o cientista político Marcos Del Roio, presidente da
International Gramsci Society – Brasil, e colaborador do Dicionário gramsciano,
faz uma introdução à trajetória intelectual e política de Antonio Gramsci. Vale
a pena conferir. A aula integra uma série de vídeos sobre o marxista sardo
produzido pelo canal da Boitempo no YouTube:



Notas

1 Versão modificada de um artigo publicado originalmente em espanhol. Lincoln
Secco, “Gramscismo: Una Ideología De La Nueva Derecha Brasileña”, em: Revista
Política Latinoamericana, (7), 2018, Buenos Aires.
2 C. Guerra, Memórias de uma Guerra Suja. Depoimento a Rogério Medeiros e
Marcelo Netto (São Paulo: Editora Topbooks, 2012).
3 H. Silva, O Poder Militar (Porto Alegre: LPM, 1987), p. 543
4 O Estado de S. Paulo, 23 fev. 1988.
5 O Estado de S. Paulo, 27 set. 1988.
6 Folha de S.Paulo, 25 set. 1988.
7 Camila Rocha, “O papel dos think tanks pró-mercado na difusão do
neoliberalismo no Brasil”, MILLCAYAC – Revista Digital de Ciencias Sociales /
Vol. IV / N° 7 / 2017. ISSN: 2362-616x. (pp. 95-120), Centro de Publicaciones.
FCPyS. UNCuyo. Mendoza.
8 Olavo de Carvalho, A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio
Gramsci (Rio de Janeiro: Instituto de Artes Liberais, 1994), p. 82. As metáforas
sexuais citadas adiante estão nas páginas 68, 71, 72, 76 e 77.
9 Jornal da Tarde, 25 nov. 1999.
10 Ubiratan Jorge Iorio, “Gramsci, Paulo Freire e a batalha da linguagem: nosso
declínio começou com a deturpação das palavras”, Mises Brasil, 24 nov. 2016.
11 Idem.
12 Gabriel Hirabahasi, “Mourão não sai do zero”, Em: Época (Blog: Expresso, por
Murilo Ramos). Acesso em 8 de maio de 2019.
13 Bruno Góes, “As companhias de Flavio Rocha”, O Globo – Lauro Jardim. 2 mar.
2018.
14 Folha de São Paulo, 18 ago. 2018.
15 O Estado de S. Paulo, 19 de abr. 2017, p. 2.
16 O Estado de S. Paulo, 29 abr. 2018.
17 Marcos Del Roio, “CARTA ABERTA em resposta à ameaça do gramscismo”,
International Gramsci Society.
18 Um exemplo: Denis Lerrer Rosenfield, “Gramsci e o MST”, O Estado de S. Paulo,
13 dez. 2004.

***

Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela
Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia. É
organizador, com Luiz Bernardo Pericás, da coletânea de ensaios inéditos
Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, e um dos autores do
livro de intervenção da Boitempo inspirado em Junho Cidades rebeldes: passe
livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colaborou para o Blog da
Boitempo mensalmente durante o ano de 2011. A partir de 2012, tornou-se
colaborador esporádico do Blog.

*Publicado originalmente no blog da Boitempo

In
CARTA MAIOR
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Leituras/Gramscismo-uma-ideologia-da-extrema-direita/58/44060
10/5/2019

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