terça-feira, 7 de maio de 2019

Claros-escuros, /sfumato / e bastonadas macronianas no 1º de Maio




*por Rémy Herrera *

1º de Maio em Paris. Neste 2 de Maio do ano da graça de 2019 celebra-se
com grande pompa, no castelo real de Amboise, à beira do Loire, o meio
milénio do desaparecimento de Leonard da Vinci – cuja presumida tumba
estaria preservada, parece, na capela do referido castelo. Nesta
ocasião, a título de presidente de honra da fundação proprietária
daquela modesta residência, o conde de Pais, Jean d'Orléans, pretendente
ao trono da França e descendente dos soberanos Luís XIII, XIV e XV (mas
também, entre outras cabeças com perucas e coroadas, do imperador
Francisco I da Áustria, do duque Philippe Albert de Wurtemberg, da
princesa Rose-Marie de Toscane, do rei Ferdinando VII da Espanha, do rei
João VI de Portugal e do imperador Pedro II do Brasil!), têve insigne
privilégio de receber o presidente da República francesa, Emmanuel
Macron, assim como seu homólogo italiano, Sergio Mattarela. Beija-mãos
às primeiras damas, reverências delicadas e inclinações elegantes feitas
com rigor...

Todos estes nobilitados bem nascidos, bem penteados, enfeitados, cheios
de desprezo de classe pelos /"coletes amarelos" / e pelos /"sem dentes",
/ vivem como parasitas, calafetados na sua bolha, amimalhados pelas suas
"forças de segurança" guardiãs da ordem estabelecida capitalista e
voltadas contra o povo. Eles congestionam as vias de passagem para um
mundo melhor. Aquele que queremos, nós, a imensa maioria. Aquele que
acabaremos por construir. Aquele que apela à justiça, à razão, à própria
sabedoria.

Dentre as múltiplas razões que justificavam as homenagens prestadas ao
génio polifacético florentino, houve uma que escapou aos media
dominantes. Quinhentos anos após a morte do pai da Gioconda, num tempo
em que, doravante, sob a férula dos magnatas da alta finança, a história
parece fazer uma travagem a fundo, voltar atrás, recomeçar a recuar,
numa modernidade onde são lançados ao fogo os direitos conquistados dos
trabalhadores, onde evolam-se em fumaça até tesouros arquitectónicos
nacionais mais antigos que o Renascimento, eis que a nossa França
encontra-se momentaneamente presidida por um aprendiz de falsário,
janota amador das técnicas de Da Vinci do /chiaroscuro / e do /sfumato,
/ que ele reinterpreta aproximadamente, à sua maneira.

Sabe-se, após a quinzena de quadros que nos chegou de Leonardo da Vinci,
quanto o mestre toscano, humanista e eclético, se esmerava na arte
pictórica de entremear as zonas de sombras e de luzes, "em claro-escuro"
conforme a expressão consagrada; como ele soube também, através de
toques aveludados, oleosos, por camadas translúcidas, pacientemente
repetidas, tornar pouco a pouco indistintas e vaporosas as linhas de
contorno – assim "esfumaçadas", dizia o pintor ao conceptualizar o
/sfumato. / Daí o enigmático e inapreensível sorriso da sua Mona Lisa...

E nós, daqui em diante, o que temos?

1º de Maio em Paris. Nós temos direito aos claros-escuros, aos
esfumaçados do presidente Macron. E como bónus, aos golpes a bastonada!
Claros-escuros macronianos das suas micro-propostas de 10 de Dezembro,
depois de 25 de Abril, quando todo o mundo compreende que a sua
obscuridade não é senão um ardil, venenoso, confusa e com linda
verborreia, quando ninguém percebe o que elas trarão de positivo, em
qualquer domínio que seja, para mudar a existência e viver melhor.
Depois do /"trabalhar mais para ganhar mais", / slogan de Nicolas
Sarkozy, Emmanuel Macron inventa o "trabalhar mais – porque os franceses
são ociosos – para ganhar talvez alguns euros a mais (sob condições
estritas), mas, no final das contas, continuar a perder"... O /sfumato /
macroniano, isto é, o esfumaçar do seu "Grande Debate blá-blá", é a
ambiguidade das suas pseudo-soluções de "saída da crise" sem a menor
"mudança de rumo", é a fragrância do gás mostarda das suas dezenas de
milhares de granadas lacrimogéneas lançadas sobre uma revolta!

Entre as cerca de 220 manifestações que se desenrolaram por toda a
França nestes 1º de Maio de 2019 e que reuniram no total perto de 310
mil pessoas (segundo a contagem sindical), retornemos um instante ao
desfile que ocorreu em Paris e reuniu 80 mil pessoas (segundo a mesma
fonte), uma vez que este foi... especial.

Comecemos pelo começo. O ponto de reunião inicial estava previsto para
Montparnasse, ao sul da capital. O cortejo devia arrancar às 14h30.
Contudo, desde o fim da manhã, as forças da ordem – elas também vindas
em massa – haviam feito sua festa aos trabalhadores!

Cerca do meio-dia, manifestantes muito numerosos já estavam lá,
presentes ou próximo da Praça do 18 de Janeiro de 1940, aos pés da torre
Montparnasse. Várias dezenas de milhares de pessoas: militantes
sindicais, coletes amarelos, black blocs, mas igualmente activistas
ecológicos (cuja marcha pelo clima, prevista para a manhã no Quartier
Latin, fora proibida pela prefeitura de polícia). Todos eles haviam
passado as barragens filtrantes dos "controles preventivos" instalados
pela polícia, travando os novos que chegavam, revistando mochilas,
confiscando eventuais máscaras, óculos de protecção, capacetes...

Pelas 12h15-12h30, quando se preparava pacificamente, como de costume, o
cortejo dos sindicatos – organizadores do desfile, como sempre no
primeiro dia de Maio – milhares de manifestantes, motivados, coletes
amarelos numerosos, alguns grupos black blocs, sindicalistas também,
misturados, avançaram para o começo do percursos, ultrapassaram os
limites e camionetes dos sindicatos e puseram-se de facto à frente de
toda a tropa. Polícias e CRS [Compagnies Républicaines de Sécurité]
cortaram logo a sua marcha, bloquearam as ruas em redor, depois atiraram
sobre a multidão já compacta granadas de ruptura de cerco (no ar) e
grande quantidade de gases lacrimogéneos (à altura do homem). Quem ouviu
as advertências – se é que houve –? Primeiros golpes de bastonadas,
primeiros lançamentos de garrafas, primeiros feridos... Na confusão, na
multidão, aos empurrões, os manifestantes tiveram todos de retornar
tanto a bem como a mal para o ponto de partida. O tom estava dado! Nada
de melhor para perturbar os espíritos, para aquecê-los. Para provocar. E
isto, com que finalidade? Aqui e ali, feridos, rostos em sangue,
cuidados pelos /"street medics", / voluntários heróicos. Os slogans
"Isto vai explodir!", "Revolução!" e "Anti-capitalista!" não tardaram a
ser amplamente aplaudidos e com entusiasmo...

Em Paris, a Jornada Internacional dos Trabalhadores arrancava com força!

Portanto, até às 14h15, aquelas e aqueles que chegavam a Montparnasse
(pontuais, na hora) eram os iniciados do acaso, mergulhando de imediato
no pânico provocado pelas intervenções precoces das forças da ordem. Na
bagunça notavelmente organizada pelas ordens musculadas do ministro do
Interior, Christophe Castaner, e do seu novo prefeito de polícia, Didier
Lallement. Assim, antes de desfilar era preciso, em meio a nuvens de
fumo, correr em todos os sentidos, procurar refúgio em alguma parte, sob
uma varanda de imóvel, numa boutique não barricada da proximidade, para
a rua adjacente mais próxima, para poder respirar, muito simplesmente, e
tentar manter pelo menos os olhos abertos... Balões sindicais a
desaparecerem no ar, bandeirolas espezinhadas, orquestras deslocadas,
barracas de batas fritas maltratadas, grupos de amigos dispersos,
estarrecidos... Pois o presidente havia prevenido a todos: ir manifestar
é ser cúmplice dos amotinadores, dos pilhadores, dos black blocs! Na
democracia francesa à moda do /La République en marche, / comparecer à
Festa dos Trabalhadores é doravante assumir riscos e perigos!

1º de Maio em Paris. /"La repression en marche", / clamava um cartaz,
afixado junto a um famoso restaurante de luxo, protegido por pranchas de
madeira – La Rotonde, lá onde Emmanuel Macron celebrou, por antecipação,
sua vitória na noite da primeira vojlta das eleições presidenciais de 23
de Abril de 2017 (frente a Marine Le Pen).

Entre tantos outros, um daqueles que sofreu as consequências desta
acometida à cabeça da manifestação pelas forças da ordem foi o próprio
secretário-geral da CGT, Philippe Martinez. Desde o princípio da
mobilização dos coletes amarelos, em Novembro último, ele se mostrar
extremamente (excessivamente) prudente e pouco inclinado à apoiá-la
abertamente, esforçando-se por manter a Confederação a distância da
rebelião popular. E isto quando as suas próprias bases sindicais, muito
presentes desde a origem entre os coletes amarelos, diariamente, no
terreno, não cessavam de pressionar sua liderança para que a CGT se
empenhasse muito mais resolutamente ao lado dos coletes amarelos.

Entretanto, toda a gente desfilava em conjunto neste 1º Maio e isto era
animador. Posicionado à frente do cortejo sindical, Philippe Martinez
têve de ser precipitadamente extraído pelo seu serviço de ordem que
sofria – jamais visto num 1º de Maio – as cargas reiteradas e
particularmente brutais das forças da ordem. Camaradas, apesar de
perfeitamente identificáveis como sendo da CGT, foram batidos reiteradas
vezes. E muitos outros com ele. Alguns pretenderam que black blocs
haviam pretendido avançar para debater-se com os líderes da CGT, mas
numerosas testemunha da cena viram muito bem a polícia atacar as
fileiras dos sindicatos CGT e Solidaires. Sem motivo. A prefeitura de
polícia de Paris apressou-se a desmentir... aquilo que muitos
observadores constataram:   sindicalistas foram deliberadamente atacados.

1º de Maio em Paris. Cerca de uma hora e meia depois de o cortejo ter
enfim sido autorizado a iniciar seu trajecto, mais uma vez: no boulevard
de l'Hôpital, homens do CRS acometeram o desfile sindical e empurraram
novamente seus serviços de ordem. O mesmo procedimento no fim da
jornada, junto à Place d'Italie, quando a massa dos manifestantes que
teve a coragem de ali chegar foi constrangida uma segunda vez, tudo como
no início, a recuar, sob os jorros dos canhões de água e o dilúvio das
granadas lacrimogéneas... Em tais condições, será espantoso perceber
que, graças a estes métodos inovadores de manutenção da ordem (incitando
a "entrar em contacto"), choques e afrontamentos, relativamente duros,
terão lugar a cada fim de percurso?

Equivale a dizer que o desfile parisiense, além de mais denso – 80 mil
participantes segundo a CGT, ou seja, duas vezes mais pessoas que no ano
passado –, foi singularmente tenso. Nos dias anteriores, os comunicados
e os tweets do Ministério do Interior, cuja propaganda foi generosamente
difundida pelos media domesticados, havia feito tudo para dramatizar a
situação, para assustar, para dissuadir ao máximo de sair, em suma para
impedir o desenrolar da Festa dos Trabalhadores. A campanha mediática
alarmista anunciava "o pior", "o apocalipse", a "guerra civil": para
este 1º de Maio, prometia que Paris se tornaria a "capital do motim"...
Aquelas e aqueles que assumiram a opção de se deslocar e de se bater
mesmo assim sobre o pavimento tiveram de desafiar uma apreensão difusa e
muito inabitual. Um medo habilmente tecido, no topo, pelas autoridades
políticas. E o facto é que não se viu crianças no cortejo deste ano.
Hoje, quando se resiste em França, já não se desfila em família.
Tínhamos todas e todos no espírito a terrível contagem, alucinante, na
realidade incrível, dos feridos, dos amputados, dos desfigurados,
registados desde há seis meses no país.

Para este 1º de Maio particular, após 25 semanas de mobilização dos
coletes amarelos, e mais de dois anos de luta contra as "leis do
trabalho", uns 7500 membros das forças da ordem, com armaduras,
equipados para o combate, haviam sido instalados na capital. Ao longo de
todo o percurso, de Montparnasse à Place d'Italie, este impressionante
dispositivo policial, inquietante, opressivo, esmagador, envolvia o
cortejo como numa armadilha, interrompia-o regularmente formando
gargalos de estrangulamento ou encerrando ruas em torno, dividia-o em
pequenas secções ("para melhor o gerir", diz-se), cercava-o, proibia
frequentemente as entradas ou as saídas, sufocava-o lançando gás,
bloqueava-o, impedia-o no fim de alcançar sua meta... Em muitos lugares,
ofensiva policiais eram lançadas, subitamente, empurrando tudo na sua
passagem, extirpando tal ou tal indivíduo alvo, conforme a nova doutrina
em vigor...

É portanto neste contexto complicado, frequentemente confuso, por vezes
caótico, que nas ruas de Paris aprenderam a misturar-se coletes amarelos
e insígnias vermelhas. Mais as tee-shirts negras. A vontade de
convergência era bem evidente, afirmada, muito amplamente partilhada
pelos manifestantes. Não marcham todos ao mesmo ritmo, mas muitas
reivindicações se combinam. É preciso lutar. Não temos escolha. Há
urgência. Pois tudo pode balouçar para o melhor ou para o pior.

Contudo, convém tomar consciência, desde já, que as técnicas de
governação e de manutenção da ordem em claro-escuro e /sfumato / postas
em prática pelo Eliseu conduzem a um imperceptível apagamento das linhas
de contorno da democracia, ao deslizamento dos padrões do Estado de
direito para a banalização da violência de Estado. Por planos
justapostos, a luminosidade do conjunto se obscurece, as gradações
sombrias alteram a clareza da bela sociedade dos direitos do Homem, os
traços tornam-se mais incertos sob a superfície lisa e invisível de um
autoritarismo em gestação. Irreconhecível, a França envolve-se pouco a
pouco numa atmosfera irrespirável.

As classes dominantes francesas, depois de terem conseguido
insensibilizar muitos quanto à sorte reservadas às populações do Sul
pelos bombardeamentos do seu exército, tentam doravante tornar
indiferente às infelicidades e às repressões que esmagam os mais
modestos, os menos afortunados entre os nossos compatriotas, exumando a
figura do "inimigo interno".

Entre golpes de comunicação e jactos de lacrimogéneos, entre mentiras
grosseiras e golpes de bastão, o presidente Macron e seu governo –
únicos responsáveis, no fundo, por este desencadeamento de violências –
conduzem directamente o país pelo caminho de uma transição que se parece
muito à ante-câmara de uma forma de neofascismo que não ousa dizer o seu
nome. Um neofascismo untuoso, refinado, com alguma coisa de distinto.
Sorridente, mas realmente preocupante. O do poder ditatorial das
instâncias capitalistas da alta finança que sangram os povos, simulam a
participação, dissolvem a ligação social e louvam a felicidade.

Esta poderia efectivamente a nova página da história da França que este
presidente-janota está em vias de redigir diante de nós, com sua escrita
especular. E tal como aquela de Leonardo da Vinci, precisamos decifrá-la
ao espelho. O homem que se apresenta como "o baluarte contra o fascismo"
de Marine Le Pen seria apenas o seu duplo. Este chefe de Estado que se
esforça por pintar-se num retrato como o "melhor garante da democracia"
seria, se se olhar de perto, seu coveiro.

Afinal de contas, não declarou ele, pouco antes de explodir a
insurreição dos coletes amarelos, que o marechal Pétain foi "também um
grande soldado"?



In
RESISTIR.INFO
https://www.resistir.info/franca/remy_05mai19_p.html
5/5/2019

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