terça-feira, 21 de maio de 2019

Novos caminhos à esquerda




Na dialética da luta política, ação e organização se retroalimentam.
Organização sem ação produz o burocratismo diletante, ação sem
organização produz aventureirismo. Pela organização do povo em comitês!




        *por Francisco Celso Calmon*

Precisou a casa ruir após o golpe parlamentar-judicial de 2016 e
instalar-se o golpismo aos direitos dos trabalhadores, ao patrimônio e à
soberania nacional, para acordar a todos da letargia política no
exercício da luta de classes.

A luta pela redemocratização, iniciada nos anos 80 após a anistia, levou
a esquerda gradativamente a abandonar a concepção de luta de classes
como eixo central das transformações (ou retrocessos) sociais. Adotou,
em substituição, uma visão bonapartista do Estado, a serviço de todas as
classes, e a crença na sua conciliação, como foram os governos de Lula e
Dilma.

Quando a casa começou a ruir com o golpe de 2016, o diagnóstico de que a
esquerda estava desconectada das bases foi unânime.

Mas parou por aí e nas críticas ao PT.

Na verdade, era mais do que isso: a esquerda estava de calças curtas na
luta de classes.

A causa das causas ficou na margem, à espera de ser resgatada para o
centro da questão.

“De tempos em tempos os operários triunfam, mas é um triunfo efêmero. O
verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união
cada vez mais ampla dos trabalhadores” (Marx e Engels, Manifesto Comunista).

A concepção e operação da luta de classes se concentram no eixo perene
de Formar, Organizar, Protagonizar – FOP – os trabalhadores, para
construir o empoderamento e a consciência de classe de um projeto
alternativo ao capitalismo e à democracia burguesa.

Ao abandonar a concepção de luta de classes e adotar a da conciliação, a
arena de atuação ficou especialmente circunscrita ao cercadinho
institucional, e as relações republicanas foram a expressão
comportamental do bonapartismo caboclo. Como efeito em cadeia,
produziu-se a burocratização e alienação dos partidos de esquerda e das
entidades dos trabalhadores como sujeitos da transformação estrutural.

Essa adoção vai ocasionar, na dialética das lutas sociais, um divórcio
amigável entre as lutas segmentais, como a pugna dos negros, indígenas,
mulheres, LGBTs, de um lado, e a luta matriz, que é a luta coletiva de
classes, de outro. Amigável, mas que nutriu a concepção
bonapartista-republicana, consolidou o peleguismo, ampliou a atomização,
e gerou uma plêiade de líderes sociais que viveram – e parte ainda vive
– às custas e como satélites dos governos, melhor ainda: como pirilampos.

Nestas últimas décadas o vermelho da esquerda desbotou. Daí a
adjetivação de esquerda desbotada, esquerda rosinha-salmon e esquerda
cosmética – que é a minha preferida. Com quaisquer denominações,
estamos, como sempre estivemos na história, entre a predominância do
peleguismo ou do esquerdismo bravateiro.

A debacle do Estado Democrático de Direito pelo golpismo comprovou que,
em última instância, a democracia popular é incompatível com o
capitalismo, sobretudo com o capitalismo no Brasil, patrimonialista e
sem riscos aos capitalistas, cuja classe dominante é marcadamente
conservadora e reacionária, portadora de preconceitos e autoritarismo. A
democracia burguesa serve aos interesses dos capitalistas, assim como no
futuro a democracia popular servirá aos interesses dos trabalhadores.
Nesse entendimento, o Poder Judiciário sempre foi o garantidor dos
interesses do poder dominante. Oportunidade de alteração qualitativa nos
tribunais superiores houve e fora desperdiçada, por método errado, pelos
governos de Lula e Dilma.

Por tudo, a evolução da democracia terá limites, via golpes das classes
dominantes, ou terá ruptura, via classes trabalhadoras. Golpes e
rupturas fracassados fazem parte do cardápio da história. A construção
perene da democracia sustentada dependerá das classes trabalhadoras,
especificamente do seu estágio de consciência e organização.

Meia sola, isto é, organização tradicional e consciência reformista, não
sustenta a democracia e muito menos protagoniza uma ruptura.

A organização deve ser de base, produzindo a consciência coletiva de um
projeto capaz de ser agregador da maioria da sociedade, inclusive da
classe média.

Reformas executadas por governo popular devem estar em sintonia com a
Formação, Organização e Protagonização – FOP – dos trabalhadores, sob
pena de ficarem sujeitas a retrocessos sem efetiva e pronta resistência.

A teoria libertadora se tornará em força material à medida que a
intelectualidade de esquerda seja organicamente da classe trabalhadora
e/ou das organizações dela. A intelectualidade acadêmica fechada em
guetos não colaborará com o movimento transformador consoante a sua
potencialidade. Será necessário ligar-se às comunidades nos seus
entornos e realizar a mediação entre o saber e a práxis. Nesse sentido,
os trabalhadores do magistério, mormente do ensino médio, têm
potencialmente o papel da interseção dialética entre a teoria
revolucionária e a prática da luta de classes.

O Sistema, através dos seus aparelhos ideológicos, mantém a hegemonia.
Construir aparelhos para o contraponto faz parte do eixo FOP. O
enfretamento ao Sistema deve ser amplo, continuado e permanente.

Se entendermos a luta de classes como fenômeno objetivo (motor da
história), que independe de querer ou não, e perene, consoante à
concepção materialista da história, a estratégia terá que estar em
conformidade a essa concepção, com variações e adequações táticas.

A história da esquerda no Brasil é pendular entre o peleguismo e o
infantilismo. Como romper é um desafio tão importante quanto a busca da
unidade.

A compreensão de alguns conceitos que foram deformados na teoria e na
prática pode ser um primeiro passo.

A luta de classes ocorre em três níveis, em termos didáticos: o primeiro
no econômico, o segundo no social e o terceiro no político.

No primeiro, a demanda é basicamente por melhores salários e
eventualmente por melhorias nas condições de trabalho. Muitos líderes,
ainda repetindo o século dezoito, acreditam que essa luta atinge o
capital, quando às vezes até trabalham em seu favor, pois os patrões
aproveitam para reestruturar os meios de produção e as folhas de
pagamento. Numa falsa impressão de terem cedido, dão com uma mão e
retiram muito mais com a outra. Na luta econômica, o trabalhador mantém
a consciência de classe em si, ou seja, de preservar a sua sobrevivência
enquanto tal, ou cai na ilusão de conquistar elevados salários que
possibilitem comprar os direitos sociais, sem ir além disso.

Destaco nesse nível a importância dos trabalhadores do setor financeiro
(bancos, bolsas, corretoras de valores etc), uma vez que no ápice do
sistema econômico está o capital financeiro.

Na luta social, a classe trabalhadora amplia seus interesses e a sua
visão da estrutura do sistema e incorpora segmentos médios da sociedade,
possuidores das mesmas demandas pelos direitos sociais. Saúde,
educação/cultura, emprego/lazer, moradia, transporte, segurança e
seguridade, compõem a plêiade pelo bem-estar social dos trabalhadores.

Cada demanda social possibilita agregar a maioria da sociedade carente
de cada um desses direitos. Do salário mínimo ao transporte gratuito aos
necessitados, aos idosos e à juventude, saúde e educação gratuita para
toda a população, passando pela aposentadoria digna, compõem uma
plataforma de luta que agrega todos os segmentos de trabalhadores, da
base estrutural aos segmentos intermediários.

É na luta social que a classe trabalhadora amplia a sua consciência e
organização e começa a construir sua liderança por uma sociedade
alternativa à atual, que oprime e explora a maioria esmagadora do país.

Destaco nessa categoria a importância da luta pela valorização do
salário mínimo.

Na luta política é onde se dá a disputa pelo poder, tanto institucional
quanto não institucional. Os poderes institucionais reais, como o
Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Policia Federal
e Forças Armadas, são ocupados por sufrágio ou por concurso. Os poderes
ocupados via concursos estão hipertrofiados quando deveriam ser hipo,
pois não são oriundos da soberania popular. Os poderes fora do campo
institucional são os partidos, sindicatos, federações, centrais,
frentes, fóruns, movimentos sociais, conselhos, enfim, entidades
organizatórias da sociedade.

É na luta política que se concentra a disputa decisiva da luta de
classes. Dos três andares na estrutura da sociedade, é a política o
andar mais alto. Entretanto, na dialética da luta há mediações entre
eles, que se encontram e se reforçam mutuamente, e por isso se diz que
toda luta de classe é uma luta política.

Nos três campos de luta pode e deve-se travar a luta ideológica, quer
dizer, diagnosticar os males do sistema capitalista e contrapor com
outros valores. Nessa seara conscientizar que a corrupção, por exemplo,
tem origem no sistema de classes e está no coração do atual capitalismo
de desastre.

Estratégia e Projeto de nação precisam focar no modo de conquistar a
paridade de armas com vistas a construir a hegemonia ideológica (a
maioria da sociedade favorável a um sistema alternativo), que permitirá
a ruptura e transição. Nesse vetor a soberania e o patrimônio nacional
são outros valores a defender. É preciso galvanizar todos os segmentos
sociais vítimas do Sistema.

A maioria da sociedade é de mulheres, 52,5%. A maioria da sociedade é de
negros, 54,5%. A maioria da sociedade é de trabalhadores, em torno de
66% da população.

Na outra ponta, os capitalistas no país constituem uma minoria tão
ínfima que têm nome e sobrenome.

Se as mulheres são discriminadas, se os negros são discriminados, e
todos os trabalhadores são explorados e oprimidos, por que a correlação
de forças na política é favorável aos representantes da classe dominante?

As lutas segmentais/identitárias devem ser matizadas à luz da luta de
classes. Todas elas devem apontar e se inserir nesse leito, caso
contrário servirão aos carreiristas, arrivistas, que almejam chegar às
elites ao invés de objetivarem as transformações estruturais.

Estratégia e Projeto serão os instrumentos potencias da unidade na
prática. Não é a busca da unidade pela unidade, mas da unidade na
práxis. Sua construção não depende de uma pré-unidade, mas de estarem
abertos para correções e inclusões na dinâmica da política, pois, nem
uma e nem o outro são acabados.

Com os fundamentos e alicerces argamassados, as torres de edificação
sustentarão transições e impedirão, com resistência, retrocessos rumo à
barbárie.

Os parlamentares no Congresso, Assembleias e Câmaras; governadores e
prefeitos democráticos apoiando a resistência em conexão e trincheiras
próprias; juristas, advogados e demais operadores do direito, no
judiciário, nos ministérios públicos e em suas respectivas entidades;
intelectuais, artistas e demais, nas cátedras, palestras, manifestos,
teatros, cinemas, meios de comunicação; trabalhadores nas suas
organizações preparando e disparando greves – geral, locais,
departamentais, operações tartaruga e outras formas mais; movimentos
sociais em seus acampamentos, marchas e ocupações; a juventude, com sua
ousadia e destemor característicos, em passeatas, ocupações e criativas
formas de protestação; e TODOS nos Comitês Populares pela Democracia –
CPD, criando uma rede com o objetivo geral de derrubar a tirania
protofascista instalada nas instituições do Estado e de construir a
democracia de todas e todos.

Os comitês Lula livre podem e devem ser ampliados para o objetivo maior
da luta pela democracia, sem perder a centralidade de curto prazo. O
trabalho de construir uma democracia popular sustentável é de médio para
longo prazo. Recomeçar evitando os mesmos erros é a autocrítica prática,
com os ensinamentos da história.

No combate à ditadura militar tivemos a experiência exitosa dos Comitês
Brasileiros pela Anistia – CBAs –, no país e no exterior, de composição
ampla e de estruturação e ação horizontal.

Cada CPD – Comitê Popular pela Democracia – deverá definir o que fazer
no seu chão: chão da moradia, chão do trabalho, chão da terra, chão do
estudo, usando das características conhecidas como guerrilhas
democráticas: fustigamentos, constrangimentos, surpresas, ocupações
temporárias, avanços e recuos, et caterva, com inteira autonomia e
mobilidade, com os focos centrais imediatos na luta pela liberdade do
Lula e por dar um basta ao governo protofascista e seus aliados
institucionais. (Basta de Bosta!).

Parafraseando Carlos Marighella, nenhum comitê precisa pedir licença
para realizar ações contra a tirania.

Na dialética da luta política, ação e organização se retroalimentam.
Organização sem ação produz o burocratismo diletante, ação sem
organização produz aventureirismo.

Pela organização do povo em comitês!

Pela democracia popular de todas e todos os brasileiros.

* Texto escrito há dois anos, atualizado em abril/2019.

*/Francisco Celso Calmon é Advogado, Administrador, Coordenador do Fórum
Memória, Verdade e Justiça do ES; autor do livro Combates pela
Democracia (2012) e autor de artigos nos livros A Resistência ao Golpe
de 2016 (2016) e Comentários a uma Sentença Anunciada: O Processo Lula
(2017)./*

In
GGN
https://jornalggn.com.br/artigos/novos-caminhos-a-esquerda-por-francisco-celso-calmon/
21/5/2019

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