terça-feira, 24 de maio de 2016

O QUE FAZER COM O FASCISMO.



Mauro Santayana


(Revista do Brasil) - Querendo ou não, o voto do Sr. Jair Bolsonaro no plenário
da Câmara, homenageando, aos gritos, o golpismo, a tortura, e fazendo alusão ao
sofrimento físico e ao terror sofridos por Dilma Roussef quando de sua prisão –
ilegal, por ilegal ser o regime – à época do regime militar, foi o ápice
emblemático, o marco, o símbolo, a evidência, de uma situação histórica
cristalina e incontornável.

Descarado, despudorado, estúpido, violento, irracional, com centenas de
milhares de votos e milhões de simpatizantes, muitos deles organizados em uma
miríade de grupos que vai de saudosistas e apologistas da tortura e dos
assassinatos de opositores políticos a fundamentalistas religiosos corruptos,
nascidos da exploração da fé, do voto e do bolso da parte mais pobre e menos
informada da população – sem oposição, sem controle por parte do Judiciário, que
a ele se alia por numerosos braços, e da polícia, que lhe fornece candidatos e
simpatizantes – o fascismo veio para ficar e ocupa já um espaço próprio na
sociedade brasileira, desafiando abertamente a Democracia e o que ela tem de
mais importante, essencial, libertário, humanístico, civilizatório.
A questão inadiável, que se coloca, para agora e o anos de eventual
pós-petismo, é a seguinte: o que fazer com o fascismo?
Denunciá-lo e isolá-lo, como a absurda excrescência que é em nosso modo de vida
e no nosso espectro político? Tentar articular uma frente possível, para
enfrentá-lo?
Ou permitir que se instale, como legado do nosso passado colonialista e
escravagista, “normalmente”, na vida do país, e que abra caminho para o poder,
ajudando a isolar e a desconstruir, institucionalmente, as forças socialistas e
nacionalistas, sabotando-as, e destruindo-as, e eliminando-as, praticamente,
institucionalmente, da vida nacional?
Por que se chegou a esse ponto de escancarado desafio às instituições e ao
Estado de direito – com o beneplácito de uma mídia parcial e partidária, e o
silêncio e a omissão do Legislativo e do Judiciário, aí incluído o Supremo
Tribunal Federal, que não disse “gato” a respeito da fala de Bolsonaro?
É fácil procurar culpados no campo dos inimigos da Democracia, como a velha
mídia entreguista, “elitista”, venal e reacionária, que estereotipa o negro, o
gay e a mulher que diz defender, em suas novelas e programas de televisão.
Também é cômodo atribuir esse estado de coisas ao próprio fascismo e a seus
expoentes surgidos nos últimos anos do ventre de um anticomunismo tosco,
ignorante, imbecil que vão, do que há de mais abjeto na imprensa brasileira a
filósofos de bolso, cantores de rock e astrólogos, passando por pastores
caçadores de passarinhos e sacerdotes católicos fundamentalistas, com ligações
com o exterior.
Mas isso equivaleria a culpar uma hiena por ser uma hiena, um abutre por ser um
abutre, um escorpião por ser um escorpião.
O fascismo não é razoável, nem cordato, nem racional. Com ele, não há como ceder
ou negociar. Se o fosse, não seria fascismo.
A culpa pela irresistível ascensão da extrema direita – e não há outro termo,
nos aspectos quantitativo e qualitativo, que possa descrever com mais
propriedade o atual processo – deve ser procurada entre aqueles que deveriam,
por natureza, ter – mais que vocação – a necessidade de defender a Democracia e
aqueles que, no poder, tinham a obrigação, a responsabilidade histórica e
ideológica, de combatê-lo, evitando que as coisas chegassem aonde estão.
Tendo enfrentado o regime militar e procurado negociar o seu fim, com o
movimento das Diretas Já e a eleição de Tancredo Neves para a Presidência da
República, cabia às lideranças e partidos que conduziram esse processo ter
promovido a defesa, didática, permanente, verdadeira, racional, dos valores
democráticos junto à população, buscando também a renovação que fosse possível
nos meios de comunicação de massa - que desde antes dos governos militares,
continuam basicamente os mesmos e são controlados pelas mesmas famílias – em
benefício da pluralidade de opinião e da amplitude de informação, evitando que
se instalasse no país um senso comum medíocre, rasteiro e estúpido, ditatorial.
Mas não o fizeram.
O Sr. Fernando Henrique Cardoso, que agora declarou que a fala do Sr. Jair
Bolsonaro em defesa de um torturador ofende o país, não procurou contar, em seu
governo, às novas gerações, o papel – a serviço também de interesses
estrangeiros – do golpismo e do fascismo, pragas permanentes na história
brasileira, no suicídio de Getúlio Vargas, na sabotagem e nas tentativas de
golpe contra Juscelino ­Kubitscheck durante todo o seu mandato, na constante
pressão contra Jango, até derrubá-lo, pela força das armas, em 1964.
Assim como não o fez o PT.
Nos 22 anos dos governos tucanos e petistas, nem sequer um miserável Dia da
Democracia foi incluído no calendário oficial, com direito a feriado, e, depois
da sua instituição pela ONU, em 2007, para ser comemorado todos os dias 15 de
setembro, sua existência sequer foi lembrada, em uma prosaica campanha do
Tribunal Superior Eleitoral.
Nesse absurdo país em que estamos vivendo, em que o Estado de Direito foi
substituído pelo Estado de Direita, e não se pode ter mais liberdade de
expressão ou de opinião, o que irrita não é o ódio irracional, sádico e sombrio
dos apologistas do pensamento único, dos assassinatos e da tortura, mas a
inação, a incompetência tática e a falta de visão estratégica – que nesse
aspecto caracterizaram os últimos anos – daqueles que deveriam dar-lhe combate.
A esquerda errou quando fingiu que não viu o que estava ocorrendo já na véspera
da Copa do Mundo. Errou quando não reagiu aos insultos, aos atentados verbais,
às calúnias, judicialmente. Errou quando entregou a internet à direita e à
extrema-direita, permitindo que esta última a usasse como um fantástico
instrumento de mobilização, mas também abandonando os portais de maior
audiência, para que o fascismo, por meio de seus trolls, conquistasse para seus
argumentos e mentirosos paradigmas, milhões de brasileiros que estavam começando
a se “politizar” justamente naquele momento – com o acesso à internet – devido à
inclusão social e digital promovida pelo próprio governo.
Errou quando não compilou suas conquistas, com dados numéricos, incontestáveis –
como o crescimento do PIB e da renda per capita ou a diminuição da dívida
líquida de 2002 a 2014 – fazendo delas a base de um discurso e de um plano
coerente de governo, que cobrisse, institucionalmente, a economia, a soberania,
o desenvolvimento e a defesa.
Errou quando não fez uma reforma política, digna desse nome, quando tinha poder
e popularidade para isso, preferindo adotar, como governos passados, o
fisiologismo, no convívio com o tipo de escolhos políticos que se viu na
televisão no dia da votação do impeachment.
E continua errando quando quer misturar alhos e bugalhos no mesmo saco de gatos
e sair atirando como uma metralhadora giratória contra tudo e contra todos, em
um momento em que já ninguém quer lhe dar a mão, e taticamente, há muito pouco a
fazer para reverter a situação em que se encontra.
Ao fazer isso, a esquerda está pedindo para ser isolada ainda e cada vez mais
dos demais partidos e parte expressiva da “opinião pública”.
E está fazendo exatamente o que dela esperam seus inimigos. Dando murro em ponta
de faca.
Deixando-se provocar e pautar, o tempo todo, pelos adversários e pelas
circunstâncias.
Estamos à vontade para criticar, porque cansamo-nos de alertar, nos últimos
anos, insistentemente, em artigos como “O PT, o PSDB e a arte de cevar os
urubus”, “Os Pilares da Estupidez”, e “De Golpes e de Labaredas”, para o que
estava ocorrendo, do ponto de vista da degradação e da expansão geométrica dos
ataques repetidos, premeditados, intencionais, contra a Democracia brasileira.
É preciso denunciar o golpe desfechado?
Sim. Mas não se pode simplesmente colocar trava na porta depois da casa
arrombada e tentar fazer na saída do poder o que não se fez em anos em que se
estava nele, do ponto de vista da defesa da Democracia, quando se viu
calmamente, da janela, de braços cruzados, que a boiada estava indo, rês a rês,
inexoravelmente, para o brejo.
Tão prioritário quanto, se não muitíssimo mais importante do ponto de vista
histórico e estratégico, é trabalhar com firmeza para não se isolar, perecendo,
politicamente – o que seria péssimo para a democracia brasileira – e tentar, em
contraposição, ir isolando o fascismo com relação ao resto da sociedade, para
evitar que Bolsonaro e, eventualmente, certo juiz de Curitiba – que tem sido
incensado permanentemente pelos Estados Unidos – triunfem, direta ou
indiretamente – transformando-se, na oposição ou no governo, em fiel da balança
eleitoral e em um elemento de permanente chantagem e desestabilização, para
qualquer um que venha a vencer as eleições presidenciais – agora,
antecipadamente – ou em 2018.
O que nos preocupa, no risco que corre o país, não são os palhaços loucos,
sempre subestimados e ridicularizados no início, como Hitler ou Mussolini, e
seus genéricos locais, mas os psicopatas que medram à sua sombra, que os veem
como líderes e exemplo messiânico, e acreditam piamente neles.
Esses se transformam na alma e no sustentáculo do totalitarismo, praticando os
piores crimes, usando o discurso ideológico como desculpa para idolatrar o mal e
desatar, doentiamente, o seu ódio, a sua devoção pela injustiça, pela dor e pela
destruição de outros seres humanos.
São eles, não em troca de voto, mas por acreditar apaixonadamente nas mentiras e
mitos mais absurdos, que defendem a tortura e dizem que poderiam espancar,
arrebentar e matar, como reles assassinos, em seus comentários nos portais e
redes sociais.
São eles que – não se iludam – poderiam tranquila e alegremente sujar suas mãos
com o sangue de pessoas desarmadas porque elas pensam de forma diferente, ou de
mulheres grávidas ou crianças indefesas, por serem filhos de seus adversários
políticos, caso lhes dessem uma arma, um uniforme, um porrete, uma máquina de
dar choque, uma carteira com o seu retrato e um emblema.
Caberá à atitude dos grandes partidos, e das forças políticas, principalmente a
esquerda, e de organizações da sociedade civil, como a OAB e a Igreja,
determinar se a absurda fala de Jair Bolsonaro na votação do impeachment – que
equivaleu a um histórico show de strip-tease moral por parte da Câmara dos
Deputados – será vista, no futuro, como um marco fundamental para a ascensão
política do que existe de pior na população brasileira, ou como o ponto de
inflexão que provocou a reação da sociedade contra o avanço, até agora,
paulatino, inconteste, inexorável, da fascistização do país.
Mais do que quem vai “governar” a nação nos próximos meses – entre aspas mesmo,
porque há cada vez menos condições de se administrar este país, ainda mais sob
condições de pressão e chantagem permanentes – é isto que está em jogo neste
momento.


In
MAURO SANTAYANA
http://www.maurosantayana.com/2016/05/o-que-fazer-com-o-fascismo.html
23/5/2016

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