sábado, 3 de outubro de 2015

O acto revolucionário de contar a verdade





por John Pilger

"Num tempo de fraude universal, contar a verdade é um acto
revolucionário", disse George Orwell.

Estes são tempos negros, nos quais a propaganda da fraude afecta todas as
nossas vidas. É como se a realidade política houvesse sido privatizada e a
ilusão legitimada. A era da informação é uma era medieval. Temos política
através dos media; censura através dos media; guerra através dos media;
represália através dos media; diversão através dos media – uma linha de
montagem surreal de clichés e falsas suposições.

Uma tecnologia assombrosa torna-se tanto nossa amiga como nossa inimiga.
Todas as vezes que ligamos um computador ou escolhemos um dispositivo
digital – nossos rosários leigos – estamos sujeitos a controle: à
vigilância dos nossos hábitos e rotinas, e a mentiras e manipulação.

Edward Bernays, que inventou a expressão "relações públicas" como
eufemismo para "propaganda", previu isto há mais de 80 anos. Chamou a isto
"o governo invisível".

Escreveu ele: "Aqueles que manipulam este elemento não visto da [moderna
democracia] constituem um governo invisível a qual é o verdadeiro poder
dominante do nosso país... Somos governados, nossas mentes são moldadas,
nossos gostos formados, nossas ideias sugeridas, em grande medida por
homens de que nunca ouvimos falar..."

O objectivo deste governo invisível é a conquista de nós próprios: da
nossa consciência política, do nosso sentido do mundo, da nossa capacidade
para pensar independentemente, de separar verdades de mentiras.

Isto é uma forma de fascismo, uma palavra que justificadamente usamos com
cautela, preferindo deixá-la num passado hesitante. Mas um insidioso
fascismo moderno é agora um perigo que se acelera. Tal como nos anos
1930, grandes mentiras são apresentadas com a regularidade de um
metrónomo. Muçulmanos são maus. Fanáticos sauditas são bons. Fanáticos do
ISIS são maus. A Rússia é sempre má. A China está a ficar má. Bombardear a
Síria é bom. Bancos corruptos são bons. Dívida corrupta é boa. A pobreza
é boa. A guerra é normal.

Àqueles que questionam estas verdades oficiais, este extremismo,
considera-se que precisam de uma lobotomia – até serem diagnosticados
como aderindo à linha. A BBC proporciona este serviço gratuitamente. Se
deixar de se submeter será etiquetado como um "radical" – seja o que for
que isso signifique.

A dissidência real tornou-se exótica; mas aqueles que dissidem nunca
foram tão importantes. O livro que estou a lançar esta noite, "The
WikiLeaks Files" [1] , é um antídoto para um fascismo que nunca pronuncia
o seu nome. É um livro revolucionário, assim como a própria WikiLeaks é
revolucionária – exactamente como pretendia Orwell na citação que
mencionei no princípio. Pois ele diz que não precisamos aceitar estas
mentiras diárias. Não precisamos permanecer em silêncio. Ou, como cantou
outrora Bob Marley: "Emancipe-se da escravidão mental".

Na introdução, Julian Assange explica que nunca é suficiente publicar as
mensagens secretas dos grandes poderes: que perceber o sentido delas é
crucial, assim como colocá-las no contexto de hoje e na memória histórica.

Este é o feito notável desta antologia, a qual recupera a nossa memória.
Ela conecta as razões e os crimes que provocaram tanta tempestade humana,
desde o Vietname e a América Central até o Médio Oriente e a Europa do
Leste, com a matriz na potência rapinante, os Estados Unidos.

Há actualmente uma tentativa americana e europeia de destruir o governo
da Síria. O primeiro-ministro David Cameron está especialmente
entusiasmado. Este é o mesmo David Cameron de que me recordo como um
untuoso homem de RP empregado por um desmembrador de empresas (asset
stripper) da televisão comercial independente da Grã-Bretanha.

Cameron, Obama e o sempre obsequioso François Hollande querem destruir o
último remanescente da autoridade multi-cultural na Síria, uma acção que
certamente abrirá caminho para os fanáticos do ISIS.

Isto é insano, naturalmente, e a grande mentira justificando esta
insanidade é que é em apoio aos sírios que se levantam contra Bashar
al-Assad na Primavera Árabe. Como revela The WikiLeaks Files, a destruição
da Síria é desde há muito um cínico projecto imperial que antecede o
levantamento da Primavera Árabe contra Assad.

Para os dominadores do mundo em Washington e na Europa, o verdadeiro
crime da Síria não é a natureza opressiva do seu governo mas a sua
independência em relação ao poder americano e israelense – assim como o
verdadeiro crime do Irão é a sua independência, e o verdadeiro crime da
Rússia é a sua independência, e o verdadeiro crime da China é a sua
independência. Num mundo possuído pela América, a independência é
intolerável.

Este livro revela estas verdades, uma após a outra. A verdade sobre uma
guerra ao terror que foi sempre uma guerra de terror; a verdade sobre
Guantanamo, a verdade sobre o Iraque, o Afeganistão, a América Latina.

Nunca contar a verdade foi tão urgentemente necessário. Com honrosas
excepções, aqueles nos media pagos aparentemente para manter as coisas
claras estão agora absorvidos dentro de um sistema de propaganda que já
não é jornalismo, mas anti-jornalismo. Isto é verdadeiro tanto para
liberais e respeitáveis como para Murdoch. A menos que esteja preparado
para monitorar e desconstruir toda afirmação especiosa, as assim chamadas
"notícias" tornaram-se inassistíveis e ilegíveis.

Ao ler "The WikiLeaks Files" recordei as palavras do falecido Howard
Zinn, que muitas vezes referia-se a "um poder que governos não podem
suprimir". Isto descreve a WikiLeaks e descreve a verdade dos
denunciantes que partilham a sua coragem.

Numa nota pessoal, tenho conhecido pessoas da WikiLeaks desde há algum
tempo. Que tenham alcançado o que fizeram em circunstâncias que não foram
da sua escolha é uma fonte de admiração constante. O seu resgate de Edward
Snowden vem à mente. Tal como ele, eles são heróicos: nada menos.

O capítulo de Sarah Harrison, "Indexing the Empire", descreve como ela e
seus camaradas estabeleceram toda uma Biblioteca Pública da Diplomacia dos
EUA. Há mais de dois milhões de documentos, agora disponíveis para todos.
"Nosso trabalho", escreve ela", "destina-se a assegurar que a história
pertence a todos". Quão emocionante é ler estas palavras, as quais se
mostram também um tributo à sua própria coragem.

Do confinamento numa sala da embaixada equatoriana em Londres, a coragem
de Julian Assange é uma resposta eloquente aos covardes que o enlamearam e
à potência canalha que procura vingar-se sobre ele e travar uma guerra à
democracia.

Nada disto desviou Julian e seus camaradas da WikiLeaks: nem um
milímetro. Não será alguma coisa?


30/Setembro/2015

[1] The WikiLeaks Files: the World According to the US Empire é publicado
pela Verso .

O original encontra-se em
http://johnpilger.com/articles/the-revolutionary-act-of-telling-the-truth

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .



IN
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/pilger/pilger_30set15.html
30/9/2015

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