quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Viagem ao Brasil ***

Viagem ao Brasil

por Jorge Figueiredo

Rever o Brasil depois de alguns anos de ausência provoca uma impressão
dolorosa. O Brasil é hoje um país arruinado e agora em crise profunda –
económica, social e política. A queda da cotação do real é vertiginosa;
falta água na Grande S. Paulo (39 municípios); no estado de S. Paulo está
previsto o desaparecimento de 610 mil postos de trabalho até o fim do ano
(Estadão, 17/Set/2015); a Petrobrás ameaça entrar em incumprimento ; os
escândalos de corrupção (endémicos) sucedem-se; as exportações de
commodities mirram tanto em termos de preço como de quantidade; a reacção
– leia-se o capital financeiro – está na ofensiva.

Apesar dos seus gigantescos recursos naturais, o país hoje encontra-se
exangue e o seu povo passa privações. A social-democracia lulista
malbaratou todas as oportunidades que teve. Hoje o PT é um dos partidos
mais odiados do Brasil e a presidente Dilma é refém das forças
reaccionárias que o lulismo tanto acarinhou. Ela acaba de comprar, ao
preço de sete ministérios, o apoio do PMDB no Congresso.

É em meio a esse caos que surgem os numerosos pedidos de impeachement da
presidente Dilma. Trata-se de uma arma da direita para chantagear a
presidente e forçá-la à capitulação total, ou seja, a fazer ainda mais
cedências do que já fez até agora. Dada a sua docilidade, é de supor que a
ameaça da utilização da arma do impeachment baste para que a reacção
alcance seus objectivos e consiga tudo o que quer sem chegar a interromper
o seu mandato.

O actual Congresso, em que o PT está em minoria, é um dos mais corruptos
da história do Brasil. Há quem o chame o Congresso BBB
(boiada-banqueiros-bispos), pois é dominado por latifundiários
pecuaristas, banqueiros e "bispos" de seitas evangélicas. A presidente
está nas mãos desse parlamento. Já lhe fez tantas cedências que
descaracterizaram totalmente as tímidas medidas sociais-democratas do PT.

Neste momento o Brasil assiste ao fracasso do lulismo. A sua figura de
proa, Lula, pôde avançar graças à "bênção" da ditadura militar. Quando
esta estava nos seus estertores, o general Golbery, seu ideólogo
principal, receava que o fim da repressão ao movimento operário
provocasse a ascensão dos comunistas nos sindicatos. Provocou assim uma
repressão ainda mais brutal contra dirigentes operários comprometidos com
a sua classe e deu graus de liberdade aos indivíduos que defendiam o
chamado "sindicalismo de resultados". Isso permitiu o começo da carreira
política de Lula, a qual depois extrapolou o movimento sindical. Além
disso, antes de tomar posse no seu primeiro mandato (2002), Lula garantiu
por escrito a manutenção da política económica neoliberal do seu
antecessor F. H. Cardoso (PSDB). O documento foi chamado de "Carta aos
Brasileiros", mas mais adequadamente deveria ser chamado de "Carta aos
Capitalistas".

A social-democracia retardatária implantada com o lulismo é um mostruário
perfeito dos malefícios do neoliberalismo. O lulismo não tinha e não tem
uma estratégia de desenvolvimento e, muito menos, qualquer veleidade de
transcender o modo de produção capitalista. Limitou-se a aproveitar o boom
das commodities, provocando a reprimarização da economia brasileira e
afunilando-a na exportação de produtos de pouco valor acrescentado
(minérios em bruto, soja, etc) a fim de obter receitas. Enquanto durou o
boom, essas receitas serviram em parte para modestas políticas
assistencialistas (programas Fome Zero, Minha Casa-Minha Vida, etc). Mas
pouco serviram para incrementar o desenvolvimento real do país. Hoje a
indústria brasileira tende à obsolescência e a Reforma Agrária (outrora
bandeira do lulismo) há muito que foi posta entre parênteses. Isto se
reflecte em tudo. Na educação por exemplo: para exportar produtos
primários não é preciso ciência nem gente muito instruída. Assim, todos os
níveis do ensino público estão degradados devido ao sub-financiamento. O
mesmo se passa na saúde e em outras áreas.

A degradação chega ao nível sensorial. Rever S. Paulo depois de alguns
anos de intervalo provoca uma impressão chocante. É uma cidade cada vez
mais suja e deteriorada. Os edifícios de condomínio, por toda a parte, têm
casamatas de vidro blindado na entrada e são cercados por grades altas com
pontas. Mesmo as casas mais pobres são cercadas por rolos de arame farpado
estendidos em cima dos muros, o que dá uma ideia dos níveis de medo ou de
criminalidade. Uma das poucas indústrias que tem prosperado é a da
blindagem de automóveis.

Os níveis de poluição são terríficos, mas a maior parte da população
parece que já se habituou à qualidade do ar produzida por milhares de
autocarros fumarentos com motores diesel (seria tecnicamente fácil
melhorá-la impondo autocarros a gás natural nos transportes públicos). Mas
os problemas do povo e as suas reivindicações são tantas que falar em
qualidade do ar parece um luxo desnecessário. A gestão da municipalidade
(Haddad, PT) é medíocre e faz demagogia pseudo-ecológica com a construção
de pistas para bicicletas. Os pobres ciclistas terão de respirar em largos
haustos a fumarada do óleo diesel.

No plano estadual, a gestão da coisa pública é ainda pior. Como se
concebe que uma metrópole de 22 milhões de habitantes esteja a sofrer
racionamento de água? Para a gestão das águas o governo do estado
(Alckmin, PSDB) tem uma parceria público-privada (PPP), a Sabesp. E, de
acordo com a ideologia neoliberal, uma PPP é para dar lucro e não para
servir a população. Assim, não foram feitos os investimentos necessários e
hoje seis dos oito reservatórios que abastecem a Região Metropolitana de
S. Paulo estão em colapso. O racionamento faz-se por regiões da cidade,
cortando-se a água sobretudo aos mais pobres. A ameaça de doenças
infecciosas como o dengue e a cólera é uma realidade. A gestão dos
recursos hídricos é tão irracional que continua a ser despejado esgoto não
tratado num reservatório que existe junto à cidade de S. Paulo (represa
Billings) e a Sabesp vai buscar água potável a centenas de quilómetros.

Nos transportes públicos, S. Paulo é outra catástrofe. As gestões da
municipalidade têm sido medíocres há muitos anos (com excepção da de
Irundina, então PT). O desperdício de recursos públicos tem sido colossal
com a construção de túneis e viadutos para o automóvel privado.
Consequentemente, o congestionamento do tráfego já é constante. Mas a
extensão do metro, que agora tem apenas uns míseros 78 km, arrasta-se há
longos anos em meio a escândalos de corrupção e acidentes em obras. A
culpa é sobretudo do governo do estado, responsável pelo seu
financiamento. Mas a filosofia privatizadora prevalece: os transportes
são para dar lucro, não para servir a população. O secretário dos
Transportes do governo estadual, sr. Pelissioni, anuncia com orgulho que
"já tem 20 contratos de concessões no sector rodoviário". Além disso,
pretende instalar e operar através de PPPs as futuras linhas 4 e 5 do
Metro (revista ESPM, nº 99, pg. 142). Por sua vez, as linhas de
autocarros são concedidas pelas municipalidades da Grande S. Paulo a
empresas privadas. Vê-se assim porque os transportes de S. Paulo estão no
caos actual, quando no passado já houve uma companhia municipal (CMTC) que
proporcionava um serviço razoável à população. É de pensar no que
acontecerá à qualidade do serviço dos transportes de Lisboa e Porto depois
de consumadas as privatizações feitas pelo governo PSD-CDS.

Além da péssima qualidade os transportes são caros para o nível de
rendimento da sofrida população que os utiliza. A viagem num autocarro
(com carroçarias geralmente montadas sobre altos chassis de camião) custa
R$3,50 (€0,88). Nas carruagens do metro e comboios suburbanos a população
viaja apinhada como sardinhas em lata – e muitas vezes gasta mais de três
horas por dia na viagem casa-trabalho-casa. De um modo geral os
transportes são demasiado caros no Brasil. Uma viagem de avião
S.Paulo-Rio-S.Paulo, cerca de 400x2 km, pode custar até R$1.800 (450€).

Nas condições péssimas em que vive a população brasileira, por vezes há
revoltas espontâneas como aconteceu em 2013. Há uma efervescência que
tende a explodir, mas não ainda uma resistência organizada. Isso se deve a
várias razões, tais como: o papel perverso e desinformativo dos media
(não existe nenhum jornal ou revista progressista que chegue às bancas de
jornais); o baixo nível de cultura política de grande parte da população
(fraca consciência de classe, de nível de organização, indisponibilidade
de tempo para uma vida cultural e política) e, sobretudo, a função
apassivadora dos partidos e organizações que os media apresentam como
sendo "esquerda" (PT com o seu acólito PCdoB, central sindical CUT,
sindicalismo amarelo, etc).

Em meio a esse panorama, as forças realmente progressistas tentam elevar
o nível de consciência popular e combater o falso dilema de optar entre a
direita propriamente dita (PSDB, PMDB, etc) ou defender o governo
reaccionário da sra. Dilma que se pôs ao serviço do capital financeiro (o
actual ministro das Finanças, Levy, foi presidente do maior banco
brasileiro). Assim, no dia 18 de Setembro houve uma manifestação nacional
em S. Paulo contra o PT, o PMDB e o PSDB simultaneamente. Numerosas
organizações democráticas participaram da marcha, dentre as quais o PCB .
Durante o percurso (da Av. Paulista à Pr. da República, cerca de 5 km), os
manifestantes (cerca de 15 mil) foram ladeados à direita e à esquerda por
filas de soldados da Polícia Militar do Estado de S. Paulo – muitos deles
com escudos acrílicos e coletes acolchoados. Esse enquadramento policial
mostra os limites da democracia brasileira.

IN
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/jf/viagem_set15.html
28/9/2015

***
O blog não concorda necessariamente, no todo ou em parte, com as matérias que publica.

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