terça-feira, 31 de janeiro de 2017

A evolução da linguagem: perspectiva biolinguística     

 



Entrevista a Noam Chomsky, académico e activista americano

A evolução da linguagem: perspectiva biolinguística

 C.J. Polychroniou (Truthout)   

O tema desta entrevista sai aparentemente fora do âmbito habitual dos artigos
publicados por o diário.info. Mas, para além do seu óbvio interesse científico,
muito do que é dito comporta elementos fundamentais acerca da natureza e
especificidade dos humanos e da fundamental unidade na evolução da espécie.
Compreende-se assim a aversão da direita reaccionária a Darwin e a Chomsky.
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A linguagem humana é crucial para a procura científica de compreensão sobre que
espécie de criaturas somos e portanto crucial para revelar os mistérios da
natureza humana.
Na entrevista seguinte, Noam Chomsky, o académico que revolucionou a linguística
moderna, discute a evolução da linguagem e expõe a perspectiva biolinguística (a
ideia de que a linguagem humana representa um estado de um qualquer componente
da mente). É uma abordagem que desconcerta muitos não especialistas, vários dos
quais tentaram refutar a teoria sobre a linguagem desenvolvida por Chomsky sem
realmente a compreenderem.
O jornalista e escritor “chic radical” e reaccionário Tom Wolfe foi o último a
tê-lo feito no seu novo e ridículo livro The Kingdom of Speech (O Reino da
Fala), no qual tenta atacar as teorias de Charles Darwin e Noam Chomsky com
comentários sarcásticos e ignorantes sobre as suas personalidades e exprimindo
um profundo ódio pela esquerda. De facto, este tão publicitado livro não só
demonstra uma tremenda ignorância sobre a evolução em geral e a área da
linguística em particular, como também pretende dar uma imagem maléfica de Noam
Chomsky devido às suas constantes e implacáveis denúncias sobre os crimes da
política externa dos EUA e a outros desafios ao status quo.
C. J. Polychroniou: Noam, no seu livro recentemente publicado com Robert C.
Berwick [Porquê só nós?: Evolução e Linguagem, (2016)], aborda a questão da
evolução da linguagem numa perspectiva da linguagem como parte do mundo
biológico. Foi esse também o tema do seu discurso na conferência internacional
de Física celebrada este mês em Itália e parece que a comunidade científica
mostra maior reconhecimento e mais subtil compreensão da sua teoria sobre a
aquisição da linguagem do que a maior parte dos cientistas sociais, que parecem
manter graves reservas relativamente à biologia e à ideia da natureza humana em
geral. De facto, não será verdade que a questão da capacidade específica do ser
humano para adquirir um qualquer idioma tem sido um importante tema de interesse
para a moderna comunidade científica desde os tempos de Galileu?
Noam Chomsky: É verdade que sim. Nos finais da moderna revolução científica,
Galileu e os cientistas e filósofos do mosteiro de Port-Royal colocaram um
desafio crucial aos que se interrogam sobre a natureza da linguagem humana, um
desafio que só ocasionalmente foi reconhecido até ser retomado em meados do séc.
XX para se converter na principal preocupação de boa parte dos estudos sobre a
linguagem. Para abreviar, vou referir-me a ele como Desafio de Galileu. Estes
grandes fundadores da ciência moderna admiravam-se que a linguagem permitisse ao
ser humano (cito textualmente) construir “com 25 ou 30 sons, uma variedade
infinita de expressões que, apesar de não se parecerem de nenhuma maneira com o
que se passa no nosso pensamento, conseguem revelar todos os segredos da nossa
mente e tornar tudo aquilo que imaginamos e todos os diversos movimentos da
nossa alma inteligíveis para os outros mesmo sem conseguirem lá penetrar .”
Podemos agora ver que o Desafio de Galileu requer certas reservas, mas é
qualquer coisa de muito real e deveria, na minha opinião, ser reconhecido como
uma das perspectivas mais profundas na rica história da investigação científica
sobre a linguagem e a mente dos últimos 2.500 anos.
 Porém, o Desafio não tinha sido totalmente abandonado. Para Descartes, por
volta da mesma época, a capacidade humana para usar a linguagem de maneira
ilimitada e apropriada constituía o principal fundamento do seu postulado da
mente como novo princípio criativo. Anos mais tarde, dá-se um certo
reconhecimento da linguagem como actividade criativa que implica “um uso
infinito de meios finitos”, segundo formulado por Wilhelm von Humboldt, e que
proporciona “sinais audíveis para o pensamento”, nas palavras do linguista
William Dwight Whitney há um século. Houve também uma certa consciência sobre o
carácter próprio e único desta capacidade que é partilhada pelos humanos
(característica mais surpreendente desta curiosa espécie e base das suas
notáveis façanhas). Contudo, a esse respeito, era pouco o que se dizia.
 Por que motivo só depois de já bem entrado o século XX se retoma a perspectiva
da linguagem como capacidade específica da espécie humana?
 Há uma boa razão para que esta maneira de ver enfraqueça até meados do século
XX: não existiam as ferramentas intelectuais que permitissem sequer formular o
problema de modo suficientemente claro para uma abordagem séria. Esta situação
mudou graças ao trabalho de Alan Turing e de outros grandes matemáticos que
estabeleceram a teoria geral da computabilidade em bases sólidas, mostrando em
particular como um objecto finito como o cérebro pode gerar uma variedade
infinita de expressões. Tornou-se possível depois, pela primeira vez, tratar o
Desafio de Galileu pelo menos em parte de forma directa (apesar de,
infelizmente, toda a história anterior das investigações de Galileu e Descartes
no campo da filosofia da linguagem ou a Gramática de Port-Royal de Antoine
Arnauld e Claude Lancelot serem inteiramente desconhecidas na altura).
 Com estas ferramentas intelectuais disponíveis, torna-se possível formular o
que podemos chamar a Propriedade Básica da linguagem humana: a faculdade da
linguagem proporciona os meios para construir uma variedade infinita de
expressões estruturadas, cada uma das quais com uma interpretação semântica que
exprime um pensamento e cada uma das quais podendo ser exteriorizada através de
um modo sensorial. O conjunto infinito de objectos semanticamente interpretados
constitui aquilo a que por vezes se chamou uma “linguagem do pensamento”: o
sistema cognitivo que recebe determinada expressão linguística e passa à
reflexão, à inferência, ao planeamento e a outros processos mentais e que, ao
exteriorizar-se, pode ser utilizado para a comunicação e para outras interacções
sociais. De longe, a mais importante utilização da linguagem é interna (pensar
com a linguagem).
Pode desenvolver o conceito de linguagem interna?
Sabemos agora que, embora a fala seja a forma mais comum de exteriorização
senso-motora, pode também ser símbolo ou até sensação física, descobertas estas
que implicam reformular ligeiramente o Desafio de Galileu. O requisito mais
fundamental é o que tem a ver com o modo como ele é colocado, que é em termos da
produção de expressões. Formulado assim, o Desafio passa por alto algumas
questões básicas. A produção, tal como a percepção, acede à linguagem interna,
mas não se pode identificar com ela. Temos de distinguir entre o sistema interno
de conhecimento e as acções que a ele acedem. A teoria da computabilidade
permite-nos estabelecer essa distinção, que é importante e comum noutros
domínios.
Pense, por exemplo, na competência aritmética dos humanos. Quando a estudamos,
distinguimos normalmente entre o sistema interno de conhecimento e as acções que
a ela recorrem, como multiplicar números de cabeça, acção esta que envolve
muitos factores para além do conhecimento intrínseco, como por exemplo os
limites da memória. O mesmo acontece com a linguagem. A produção e a percepção
acedem à linguagem interna, mas envolvem também outros factores, incluindo de
novo a memória de curto prazo. Estas ideias começaram a ser estudadas com algum
cuidado nos primeiros dias em que foi considerado o Desafio de Galileu agora
reformulado de modo a ter no centro da questão a linguagem interna, o sistema
cognitivo ao qual a produção e a percepção reais acedem.
Significa isso que resolvemos o mistério da linguagem interna? O próprio
conceito é todavia questionado nalguns meios, apesar de haver aparentemente uma
vasta aprovação por parte da maioria da comunidade científica.
Deram-se importantes avanços na compreensão da natureza da linguagem interna,
mas o seu uso criativo livre continua a ser um mistério. E isso não surpreende.
Numa recente revisão do estado da arte sobre casos muito mais simples de acção
voluntária, dois grandes estudiosos da neurociência, Emilio Bizzi e Robert
Ajemian, escrevem que já começámos a saber alguma coisa sobre a marioneta e os
seus fios, mas que o bonecreiro permanece envolto em mistério. Isto é ainda mais
acentuadamente verdadeiro quando se trata de actos tão criativos como o uso
diário da linguagem, a capacidade humana única que tanto impressionou os
fundadores da ciência moderna.
Para formular a Propriedade Básica, partimos do princípio que a faculdade da
linguagem é partilhada por todos os humanos. Trata-se de uma ideia que parece
encontrar-se solidamente estabelecida. Não são conhecidos grupos com diferenças
de capacidade linguística e as variações a nível individual são marginais. De
maneira geral, a variação genética entre humanos é bastante fraca, o que não é
surpreendente se tivermos em conta a sua recente origem comum.
A tarefa fundamental do estudo sobre a linguagem é determinar a natureza da
Propriedade Básica, o legado genético que está na base da faculdade da
linguagem. Na medida em que se conseguir compreender as suas propriedades,
podemos procurar investigar linguagens internas particulares, cada uma delas uma
concretização da Propriedade Básica, do mesmo modo que cada sistema de visão
individual é uma concretização da faculdade humana da visão. Podemos investigar
como as linguagens internas são adquiridas e utilizadas, como a própria
faculdade da linguagem evoluiu, a sua base na genética humana e as formas como
funciona no cérebro humano. A este programa de investigação geral chamou-se
Programa Biolinguístico. A teoria da faculdade linguística com base genética
chama-se Gramática Universal. A teoria sobre cada linguagem individual chama-se
Gramática Generativa.
Mas, variando as linguagens tanto entre si, qual a ligação entre a Gramática
Generativa e a Gramática Universal?
As linguagens parecem ser extremamente complexas, variando radicalmente entre
si. E de facto, a convicção normal entre os linguistas profissionais de há 60
anos era a de que as linguagens podem variar arbitrariamente e de que cada uma
delas deve ser estudada sem ideias preconcebidas. Ponto de vista semelhante era
mantido nessa altura sobre os organismos em geral. Muitos biólogos teriam
concordado com a conclusão do biólogo molecular Gunther Stent de que a
variabilidade dos organismos é tão livre que constitui “uma quase infinidade de
particulares que têm de ser tratados caso a caso.” Quando compreendemos mal,
tendemos a ver apenas variedade e complexidade.
 Contudo, desde então aprendemos bastante. Reconhece-se agora na biologia que a
variedade das formas de vida é muito limitada, tanto assim que foi seriamente
considerada a hipótese de um “genoma universal”. O meu próprio sentimento é o de
que a linguística teve um desenvolvimento semelhante e defendo essa posição no
estudo contemporâneo da linguagem.
A Propriedade Básica considera a linguagem como um sistema computacional, onde
portanto vamos esperar ver observadas as condições gerais da eficiência
computacional. Um sistema computacional consiste numa série de elementos básicos
e em regras para construir outros mais complexos. Para gerar a linguagem do
pensamento, os elementos básicos são como palavras, embora não sejam palavras.
Para cada língua, o conjunto destes elementos é o seu léxico. As unidades do
léxico são normalmente vistas como produtos culturais, variando largamente com a
experiência e com ligação a entidades extra-mentais (objectos inteiramente fora
da nossa mente, como aquela árvore do lado de fora da janela), hipótese esta
expressa nos títulos de obras de referência, como o influente estudo “Word and
Object” (Palavra e Objecto) de W.V.Quine. Visto mais de perto, o quadro é muito
diferente e revela muitos mistérios. Púnhamos isso de lado, por agora, e
voltemos ao processo computacional.
Como é óbvio, por razões implícitas nos objectivos gerais da investigação
científica, vamos procurar o processo computacional mais simples consistente com
os dados da linguagem. Tem-se reconhecido que a simplicidade de uma teoria se
relaciona directamente com a profundidade da sua explicação. Uma versão mais
concreta desta procura de compreensão foi dada por uma famosa máxima de Galileu
que serviu de guia às ciências desde as suas modernas origens: a natureza é
simples e é missão do cientista demonstrá-lo, desde o movimento dos planetas,
até ao voo de uma águia, ao funcionamento interno de uma célula e à evolução da
linguagem na cabeça de uma criança. A linguística tem uma razão própria
adicional para procurar a mais simples das teorias: tem que considerar o
problema da adaptabilidade evolutiva. Não se sabe muito sobre a evolução dos
humanos modernos, mas os poucos factos que são bem conhecidos e outros que
recentemente vieram a lume são bastante sugestivos e estão bem de acordo com a
conclusão de que a faculdade da linguagem é quase óptima como sistema
computacional, objectivo a que devemos aspirar em bases puramente metodológicas.
Será que existia linguagem antes da emergência do Homo Sapiens?
Um facto que parece estar bem estabelecido, como se referiu, é que a faculdade
da linguagem é uma verdadeira propriedade da espécie, invariante entre os grupos
humanos e, além disso, exclusiva sua no essencial das suas características.
Segue-se que houve pouca ou nenhuma evolução dessa faculdade desde que os grupos
humanos se separaram. Recentes estudos genéticos colocam essa data não muito
distante do aparecimento há cerca de 200.000 anos dos humanos anatomicamente
modernos, talvez 50.000 anos mais tarde, quando o grupo San em África se separou
de outros humanos. Existem algumas provas de que possa até ter sido mais cedo.
Não existe qualquer prova de nada que se assemelhe à linguagem humana ou a
actividades simbólicas antes da emergência dos humanos modernos, Homo Sapiens
Sapiens. Isso leva-nos a esperar que a faculdade da linguagem tenha emergido com
os humanos modernos ou não muito depois, período bastante breve no tempo
evolucionário. Segue-se então que a Propriedade Básica deva de facto ser muito
simples. A
 conclusão está de acordo com o que foi descoberto nos últimos anos sobre a
natureza da linguagem, concordância esta bem acolhida.
As descobertas sobre a separação prematura dos povos San são bastante sugestivas
, já que têm linguagens externalizadas significantemente diferentes. Com
excepções irrelevantes, todas as suas linguagens são a mesma linguagem com
estalidos fonéticos e correspondentes adaptações do trato vocal. A mais provável
interpretação para estes factos, desenvolvida em detalhe no trabalho actual do
linguista holandês Riny Huijbregts, é a de que a posse de linguagem interna
antecedeu a separação, que por sua vez antecedeu a externalização, seguindo esta
diferentes vias em grupos separados. A externalização parece estar associada com
os primeiros sinais de comportamento simbólico no registo arqueológico após a
separação. Juntando estas observações, parece estarmos a chegar a um ponto de
compreensão em que as circunstâncias da evolução da linguagem podem talvez ser
expostas de forma inimaginável até há muito pouco tempo.
Quando é que se tornam evidentes as propriedades universais da linguagem?
As propriedades universais da faculdade da linguagem começam a surgir à luz logo
que se empreenderam esforços sérios na construção de gramáticas generativas,
incluindo as mais simples que nunca tinham sido notadas e são bastante
intrigantes – fenómeno familiar na história das ciências naturais. Uma dessas
propriedades é a dependência estrutural das regras que produzem a linguagem do
pensamento, as quais obedecem apenas a propriedades estruturais, ignorando as
propriedades do sinal externalizado, mesmo propriedades tão simples como a ordem
linear. Para exemplificar, consideremos a frase “as aves que voam
instintivamente nadam.” É ambígua porque o advérbio “instintivamente” pode ser
associado ao verbo precedente (“voam instintivamente”) ou ao seguinte
(“instintivamente nadam”). Suponhamos agora que retiramos o advérbio e formamos
a frase “instintivamente, as aves que voam nadam”. Agora, a ambiguidade
desapareceu. O advérbio fica ligado apenas ao verbo “nadar” mais afastado em
linha, mas estruturalmente mais próximo, e não ao verbo “voar” mais próximo, mas
estruturalmente mais afastado. A única interpretação possível “as aves nadam” é
antinatural, mas não interessa: as regras aplicam-se rigidamente,
independentemente do significado e dos factos. O que é intrigante é que as
regras ignorem a computação simples pela distância linear e guardem a computação
bastante mais complexa pela distância estrutural.
A propriedade de dependência estrutural é válida para qualquer construção em
qualquer linguagem e é de facto intrigante. Além disso, é conhecida sem especial
relevância, como é evidente em casos como o referido e em inúmeros outros. A
experiência mostra que as crianças compreendem que as regras são dependentes da
estrutura logo a partir da altura em que podem ser testadas, por volta dos 3
anos, e não cometem erros, e evidentemente sem que sejam ensinadas. Podemos
estar confiantes portanto que a dependência estrutural decorre dos princípios
que estão nos fundamentos da faculdade humana da linguagem. Existem provas de
outras fontes em apoio da conclusão que a dependência estrutural é um verdadeiro
universal linguístico que está profundamente enraizado no desenho da linguagem.
A investigação conduzida em Milão há uma década e iniciada por Andrea Moro
mostrou que linguagens inventadas obedecendo ao princípio da dependência
estrutural provocam uma activação normal das áreas do cérebro ligadas à
linguagem, mas que sistemas muito mais simples que utilizam o ordenamento linear
em violação desses princípios produzem uma activação difusa, o que implica que
os sujeitos experimentais as tratam como um puzzle e não como uma linguagem.
Resultados semelhantes se encontram na obra de Neil Smith e Ianthi Tsimpli na
sua investigação sobre um deficiente cognitivo, embora linguisticamente dotado.
Fizeram também a interessante observação de que [pessoas com aptidão cognitiva
média] podem resolver um problema quando apresentado como um puzzle, mas não
quando apresentado como um idioma e activando talvez a faculdade da linguagem.
A única conclusão plausível é então que a dependência estrutural é uma
propriedade inata da faculdade da linguagem, um elemento da Propriedade Básica.
E porque tem de ser assim? Há apenas uma resposta conhecida que, felizmente, é a
resposta que procuramos por razões gerais: as operações computacionais da
linguagem são as mais simples possíveis. De novo, é este o resultado que
esperamos alcançar com bases metodológicas e é o que é esperado à luz das já
mencionadas provas sobre a evolução da linguagem.
E sobre a chamada doutrina representacional da linguagem? O que faz dela uma má
ideia a aplicar à linguagem humana?
Conforme mencionei, o ponto de vista convencional é o de que os elementos
atómicos da linguagem são produtos culturais e que os que são básicos, aqueles
que são utilizados para nos referirmos ao mundo, estão associados a entidades
exteriores à mente. Esta teoria representacional foi quase universalmente
adoptada nos tempos modernos. A doutrina parece ser válida para a comunicação
animal: as vocalizações de um macaco, por exemplo, estão associadas a
acontecimentos físicos específicos. Contudo, a doutrina é radicalmente falsa
para a linguagem humana, conforme reconhecido pelo menos desde a Grécia
clássica.
Para o verificar, tomemos o primeiro caso discutido na filosofia pré-socrática,
o problema posto por Heráclito sobre como podemos atravessar o mesmo rio duas
vezes. Dizendo de outra maneira, porque é que duas aparências são entendidas
como duas fases do mesmo rio? Os filósofos contemporâneos sugeriram que o
problema pode ser resolvido considerando o rio como um objecto
quadri-dimensional, mas isso apenas desloca o problema: porquê este objecto e
não outro diferente ou mesmo nenhum?
Quando olhamos para a questão, surge uma quantidade de dúvidas. Suponhamos que a
corrente do rio se inverte. É ainda o mesmo rio. Suponhamos que a corrente fica
com 95% de arsénio devido a descargas de uma fábrica a montante. É ainda o mesmo
rio. O mesmo é verdade com outras alterações bastante radicais no objecto
físico. Por outro lado, com alterações muito ligeiras pode deixar de ser um rio.
Se nas margens forem construídas barreiras fixas e se for utilizado por
petroleiros, é um canal e não um rio. Se a sua superfície sofrer uma mudança de
fase e endurecer, se se pintar uma linha ao meio e for usado no transporte de
carros para a cidade, é uma estrada e já não um rio. Continuando a explorar o
assunto, descobrimos que o que conta como “rio” depende de actos e construções
mentais. O mesmo se verifica geralmente com os mais elementares conceitos:
árvore, água, casa, pessoa, Londres ou de facto com qualquer das palavras
básicas da linguagem humana. Ao contrário dos animais, os elementos da linguagem
e do pensamento humanos violam radical e sistematicamente a doutrina
representacionista.
Além disso, o intricado conhecimento dos meios que são próprios mesmo das
palavras mais simples, para não falar das outras, é adquirido virtualmente sem
experiência. Em períodos de pico da aquisição da linguagem, as crianças adquirem
cerca de uma palavra por hora, quer dizer, frequentemente à sua simples
apresentação. Isso deve significar então que o significado mesmo das palavras
mais elementares é substancialmente inato. A origem evolucionária de tais
conceitos é um completo mistério, um daqueles que podem não ser resolvidos pelos
meios que nos estão disponíveis.
Precisamos então de distinguir entre fala e linguagem?
Voltando ao desafio galilaico, ele tem de ser reformulado para se distinguir
entre linguagem e fala e produção de conhecimento interno, sendo este último um
sistema computacional interno que produz uma linguagem de pensamento, sistema
este que pode ser notavelmente simples, de acordo com o que o registo
evolucionário sugere. As estruturas da linguagem são mapeadas por processos
secundários em determinados sistemas sensório-motores para a externalização.
Estes processos parecem ser o centro da complexidade e variedade do
comportamento linguístico e da sua mutabilidade ao longo do tempo.
 São estas as sugestivas ideias recentes sobre a base neuronal das operações do
sistema computacional e sobre as suas possíveis origens evolucionárias. A origem
dos elementos da computação mantém-se no entanto completo mistério, tal como a
mais importante questão que preocupava os que formularam o desafio galilaico: a
questão cartesiana sobre como pode a linguagem ser usada da sua maneira criativa
normal, apropriada às situações mas não causada por elas, de forma incitada e
tendencial mas não compelida em termos cartesianos. O mistério mantém-se mesmo
para as mais simples formas de movimento voluntário, conforme vimos
anteriormente.
Aprendeu-se muito sobre a linguagem desde o início do Programa Biolinguístico.
Penso que é justo dizer que se aprendeu mais sobre a sua natureza e sobre a
enorme variedade de linguagens tipologicamente diferentes do que em todos os
2.500 anos de história da investigação da linguagem. Porém, como costuma
acontecer nas ciências, quanto mais aprendemos, mais descobrimos o que não
conhecemos. E mais intrigante parece.
Copyright, Truthout. Reprodução proibida sem autorização.
 C.J. Polychroniou
 C.J. Polychroniou é um cientista político/economista que ensinou e trabalhou em
universidades e centros de investigação na Europa e Estados-Unidos. Os seus
principais temas de investigação são a integração económica europeia, a
globalização, a economia política dos Estados-Unidos e a desconstrução do
projecto político-económico do neoliberalismo. É colaborador regular de
Truthout, assim como membro do Projecto Intelectual Público de Truthout.
Publicou vários livros e os seus artigos aparecem numa variedade de revistas,
magazines, jornais e sítios de notíciais populares da internet. Muitas das suas
publicações foram traduzidas em várias línguas estrangeiras, incluindo o croata,
francês, grego, italiano, português, espanhol e turco.
 Tradução do original inglês: Jorge Vasconcelos

In
O DIARIO.INFO
http://www.odiario.info/a-evolucao-da-linguagem-perspectiva-biolinguistica/
25/1/2017

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