segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

A Essência do Neoliberalismo


 Pierre Bourdieu  


 
A actualidade deste texto de Pierre Bourdieu é notável. Publicado em 1998,
identifica lucidamente não apenas o neoliberalismo mas também a sua previsível
evolução em termos que a realidade actual confirma por inteiro. O autor não
utiliza essa linguagem, mas identifica certeiramente o seu carácter de classe
(“o programa neoliberal deriva o seu poder social do poder político e económico
daqueles cujos interesses expressa”) e a sua construção na base de um idealismo
reaccionário (“um sistema económico que se conforma na sua descrição em teoria
pura, que é uma espécie de máquina lógica que se apresenta como uma cadeia de
restrições que regulam os agentes económicos”).
......

Como pretende o discurso dominante, o mundo económico é uma ordem pura e
perfeita, que implacavelmente desenvolve a lógica das suas consequências
previsíveis e tenta reprimir todas as violações mediante as sanções que inflige,
automaticamente — ou não — através das suas extensões armadas, o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico (OCDE) e as políticas que impõem: a redução dos custos laborais,
redução da despesa pública e tornar o trabalho mais flexível. Tem razão o
discurso dominante? E o que aconteceria se na realidade esta ordem económica não
fosse mais que a instrumentalização de uma utopia — a utopia do neoliberalismo —
transformada assim num problema político? Um problema que, com a ajuda da teoria
económica que proclama, lograva conceber-se como uma descrição científica da
realidade?
Esta teoria tutelar é pura ficção matemática. Fundou-se desde o começo numa
abstracção formidável. Pois, em nome da concepção estreita e estrita da
racionalidade como racionalidade individual, marca as condições económicas e
sociais das orientações racionais e as estruturas económicas e sociais que
condicionam a sua aplicação.
Para dar a medida desta omissão, basta pensar precisamente no sistema educativo.
A educação nunca é tomada em conta como tal numa época em que joga um papel
determinante na produção de bens e serviços assim como na produção dos próprios
produtores. Desta espécie de pecado original inscrito no mito walrasiano ( ) da
«teoria pura», advém todas as deficiências e faltas da disciplina económica e a
abstenção fatal com que se junta à oposição arbitrária que induz, mediante a sua
mesma existência, entre uma lógica propriamente económica, baseada na
competência e na eficiência, e a lógica social, que está sujeita ao domínio da
justiça.
Dito isto, esta «teoria» des-socializada e des-historizada nas suas raízes tem,
hoje mais do que nunca, os meios de comprovar-se a si mesma e de tornar-se em si
própria empiricamente verificável. Com efeito, o discurso neoliberal não é
apenas mais um discurso. É sim um «discurso forte» — tal como o discurso
psiquiátrico o é num manicómio, na análise de Erving Goffman ( ). É tão forte e
difícil de combater só porque tem a seu lado todas as forças das relações de
forças, um mundo que contribui para ser o que é. Isto leva-o muito notavelmente
a orientar as decisões económicas dos que dominam as relações económicas. Assim,
acrescenta a sua própria força simbólica a estas relações de forças. Em nome
deste programa científico, transformado num plano de acção política, está em
desenvolvimento um imenso projecto político, embora a sua condição como tal seja
negada porque surge como puramente negativa. Este projecto propõe-se criar as
condições sob as quais a «teoria» pode realizar-se e funcionar: um programa de
destruição metódica dos colectivos.
O movimento para a utopia neoliberal de um mercado puro e perfeito é possível
mediante a política de desregulação financeira e consegue-se mediante a acção
transformadora e, devemos dizer, destrutiva de todas as medidas políticas (das
quais a mais recente é o Acordo Multilateral de Investimentos, feito para
proteger as corporações estrangeiras e seus investimentos nos estados nacionais)
que levam a questionar toda e qualquer estrutura que possa servir de obstáculo à
lógica do mercado puro: a nação, cujo espaço de manobra decresce continuamente;
as associações laborais, por exemplo através da individualização dos salários e
das carreiras como uma função das competências individuais com a consequente
atomização dos trabalhadores, os colectivos para a defesa dos direitos dos
trabalhadores, sindicatos, associações, cooperativas; incluindo a família, que
perde parte do seu controle do consumo através da constituição de mercados por
grupos de idade.
O programa neoliberal deriva o seu poder social do poder político e económico
daqueles cujos interesses expressa: accionistas, operadores financeiros,
industriais, políticos conservadores e sociais-democratas que foram
transformados nos subprodutores tranquilizantes do laissez faire, altos
funcionários financeiros decididos a impor políticas que procuram a sua própria
extinção pois, ao contrário dos gerentes de empresas, não correm nenhum perigo
de ter que eventualmente pagar as consequências. O neoliberalismo tende a
favorecer como um todo a separação da economia das realidades sociais e portanto
a construção, na realidade, de um sistema económico que se conforma na sua
descrição em teoria pura, que é uma espécie de máquina lógica que se apresenta
como uma cadeia de restrições que regulam os agentes económicos.
A globalização dos mercados financeiros, quando se unem com o progresso da
tecnologia da informação, assegura uma mobilidade sem precedentes do capital. Dá
aos investidores preocupados com a rentabilidade a curto prazo dos seus
investimentos, a possibilidade de comparar permanentemente a rentabilidade das
maiores corporações e consequentemente penalizar as derrotas relativas dessas
firmas. Sujeitas a este desafio permanente, as corporações têm que ajustar-se
cada vez mais depressa às exigências dos mercados, sob pena de perder a
confiança nos mercados, como dizem para apoiar os seus accionistas. Estes
últimos ansiosos por obter lucros a curto prazo, são cada vez mais capazes de
impor a sua vontade aos gerentes, usando comités financeiros para estabelecer as
regras sob as quais os gerentes operam e para formatar as suas políticas de
recrutamento, emprego e salários.
Assim se estabelece o reino absoluto da flexibilidade, com empregados com
contratos a prazo fixo ou temporário e repetidas reestruturações corporativas e
estabelecendo, dentro da mesma firma, a concorrência entre divisões autónomas
assim como entre equipas forçadas a executar múltiplas funções. Finalmente, esta
concorrência estende-se aos próprios indivíduos, através da individualização da
relação de salário; estabelecimento de objectivos, de rendimento individual,
avaliação do rendimento individual, avaliação permanente, aumentos salariais
individuais, ou a concessão de bónus em função da competência e do mérito
individual, carreiras individualizadas, estratégias de «delegação de
responsabilidade» tendentes a assegurar a auto-exploração do pessoal, como
assalariados, em relações de forte dependência hierárquica, que são ao mesmo
tempo responsabilizados pelas suas vendas, os seus produtos, a sua sucursal, a
sua loja, etc., como se fossem contratados independentes. Esta pressão para o
autocontrole aumenta o «compromisso» dos trabalhadores de acordo com técnicas de
«gerência participativa» consideravelmente mais além do nível de gerência. Todas
elas são técnicas de domínio racional que impõem o sobre-compromisso no trabalho
(e não só entre gerentes) e no trabalho em emergência e sob condições de alto
stress. E convergem para o enfraquecimento ou abolição dos níveis e
solidariedade colectiva ( )
Deste modo surge um mundo darwiniano — é a luta de todos contra todos, a todos
os níveis da hierarquia, que encontra apoio através de todos os que se aferram
ao seu posto e organização sob condições de insegurança, sofrimento e stress.
Sem dúvida, o estabelecimento prático deste mundo de luta não triunfaria
totalmente sem a cumplicidade de acordos precários, que produzem insegurança e
da existência de um exército de reserva de empregados domesticados por estes
processos sociais que tornam precária a sua situação, assim como pela ameaça
permanente de desemprego. Este exército de reserva existe em todos os níveis da
hierarquia, incluindo nos níveis mais altos, especialmente entre os gerentes. A
fundação definitiva de toda esta ordem económica colocada sob o signo da
liberdade é com efeito a violência estrutural do desemprego, da insegurança da
estabilidade laboral e a ameaça de despedimento que esta implica. A condição de
funcionamento «harmónico» do modelo microeconómico individualista é um fenómeno
maciço, a existência de um exército de reserva de desempregados.
A violência estrutural pesa também no que se chama o contrato laboral
(sabiamente racionalizado e transformado em irreal pela «teoria dos contratos»).
O discurso organizacional nunca teve tanta confiança, cooperação, lealdade e
cultura organizacional numa era em que a adesão à organização se obtém a cada
momento pela eliminação de todas as garantias temporais (três quartas partes dos
empregos têm duração fixa, a proporção dos empregados temporais continua a
aumentar, o emprego à vontade» e o direito de despedir um individuo tendem a
libertar-se de qualquer restrição).
Assim, vemos como a utopia neoliberal tende a transformar-se na realidade numa
espécie de máquina infernal, cuja necessidade se impõe até sobre os governantes.
Como o marxismo numa época anterior, com o que este aspecto tem muito em comum,
esta utopia evoca a crença poderosa — a fé do livre comercio — não só entre os
que vivem dela, como dos financistas, dos donos e gerentes de grandes
corporações, etc., mas também entre aqueles que como altos funcionários
governamentais e políticos, aceitam a sua justificação vivendo dela. Eles
santificam o poder dos mercados em nome da eficiência económica, que requer a
eliminação de barreiras administrativas e políticas capazes de obstruir os donos
do capital na sua busca da maximização do lucro individual, que se transformou
num modelo de racionalidade. Querem bancos centrais independentes. E pregam a
subordinação dos estados nacionais aos requisitos da liberdade económica para os
mercados, a proibição dos défices e a inflação, a privatização geral dos
serviços públicos e a redução das despesas públicas e sociais.
Os economistas podem não compartilhar necessariamente os interesses económicos e
sociais dos devotos verdadeiros e podem ter diversos estados psíquicos
individuais em relação aos efeitos económicos e sociais da utopia, que
dissimulam a sua capa de razão matemática. Mas têm interesses específicos
suficientes no campo da ciência económica para contribuir decisivamente para a
produção e reprodução da devoção pela utopia neoliberal. Separados das
realidades do mundo económico e social pela sua existência e sobretudo pela sua
formação intelectual, na maior parte das vezes abstracta, livresca e teórica,
estão particularmente inclinados a confundir as casas da lógica com a lógica das
casas.
Estes economistas confiam em modelos que quase nunca têm oportunidades de
submeter à verificação experimental e são levados a desprezar os resultados de
outras ciências históricas, em que não reconhecem a pureza e transparência
cristalina dos seus jogos matemáticos e cuja necessidade real e profunda
complexidade com frequência são incapazes de compreender. Ainda assim algumas
das suas consequências horrorizam-nos (podem ligar-se a um partido socialista e
dar conselhos instruídos aos seus representantes na estrutura do poder), esta
utopia não pode molestá-los porque, com o risco de poucas falhas, imputadas ao
que às vezes se chama «bolhas especulativas», tendem a dar realidade à utopia
ultralógica (ultralógica como certas formas de loucura) a que consagram as suas
vidas.
E no entanto o mundo está aí, com os efeitos imediatos visíveis da implementação
da grande utopia neoliberal: não só a pobreza de um segmento cada vez maior das
sociedades economicamente mais avançadas, o crescimento extraordinário das
diferenças de ingressos, o desaparecimento progressivo de universos autónomos de
produção cultural, tais como o cinema, a produção editorial, etc. através da
intrusão de valores comerciais, mas também e sobretudo através de duas grandes
tendências. Primeiro, a destruição de todas as instituições colectivas capazes
de contrariar os efeitos da máquina infernal, primariamente as do Estado,
repositório de todos os valores universais associados à ideia do reino do
público. Segundo a imposição em todas as partes, nas altas esferas da economia e
do Estado tanto como no coração das corporações, desta espécie de darwinismo
moral que, com o culto do vencedor, educado nas altas matemáticas e em salto de
grande altura (bungee jumping) institui a luta de todos contra todos e o cinismo
como a norma de todas as acções e condutas.
Pode esperar-se que a extraordinária massa de sofrimento produzida por este
género de regime político-económico possa servir algum dia como ponto de partida
de um movimento capaz de parar a corrida para o abismo? Estamos certamente
perante um paradoxo extraordinário. Os obstáculos encontrados no caminho para a
realização da nova ordem do indivíduo solitário mas livre podem imputar-se hoje
a rigidez e a vestígios. Toda a intervenção directa e consciente de qualquer
espécie, pelo menos no que diz respeito ao Estado, é desacreditada
antecipadamente e assim condenada a desaparecer em benefício de um mecanismo
puro e anónimo: o mercado, cuja natureza como local onde se exercem os
interesses é esquecido. Mas na realidade o que evita que a ordem social se
dissolva no caos, apesar do crescente volume de populações em perigo, é a
continuidade ou sobrevivência das próprias instituições e representantes da
velha ordem que está em processo de desmantelamento e o trabalho de todas as
categorias de trabalhadores sociais, assim como todas as formas de solidariedade
social e familiar. Ou se não…
A transição para o «liberalismo» tem lugar de um modo imperceptível, como a
deriva continental, escondendo da vista os seus efeitos. As suas consequências
mais terríveis dão-se a longo prazo. Estes efeitos escondem-se, paradoxalmente,
pela resistência a que esta transição opõem actualmente os que defendem a velha
ordem, alimentando-se dos recursos que continham, nas velhas solidariedades, nas
reservas do capital social que protegem uma porção inteira da actual ordem
social de cair no absurdo. Este capital social está condenado a fenecer — embora
não a curto prazo — se não for renovado e reproduzido.
Mas estas forças de «conservação», que é demasiado fácil tratar como
conservadoras, são também, de outro ponto de vista, forças da resistência ao
estabelecimento da nova ordem e podem transformar-se em forças subversivas. Mas
se há motivo para abrigar alguma esperança, é que todas as forças que
actualmente existem, tanto nas instituições do Estado como nas orientações dos
actores sociais (principalmente os indivíduos e grupos mais ligados a essas
instituições, os que possuem uma tradição de serviço publico e civil), que, sob
a aparência de defender simplesmente uma ordem que desaparece com os seus
«privilégios» correspondentes (acusação imediata) serão capazes de resistir ao
desafio só trabalhando para inventar e construir uma nova ordem social. Uma que
não tenha como única lei a busca de interesses egoístas e a paixão individual
pelo lucro e que crie espaços para os colectivos orientados para a procura
racional de fins colectivamente conseguidos e colectivamente rectificados.
Como poderíamos não reservar um espaço especial nesses colectivos, associações,
uniões e partidos ao Estado: o Estado nação, ou, ainda melhor, o Estado
supranacional — um Estado europeu, a caminho de um Estado mundial — capaz de
controlar efectivamente e sobrecarregar com impostos os lucros obtidos nos
mercados financeiros e, sobretudo, conter o impacto destrutivo que estes têm
sobre o mercado laboral. Isso pode conseguir-se com o auxílio das confederações
sindicais, organizando a elaboração e defesa do interesse público. Queiramos ou
não o interesse público nunca emergirá, embora à custa de uns quantos erros
matemáticos, da visão dos contabilistas (num período anterior poderíamos ter
dito, dos «comerciantes») que o novo sistema de crenças apresenta como a suprema
forma de realização humana.
____________________________________
Auguste Wairas (1800-1866), economista francês, autor De la nature
 de la richesse et de l’origine de la valeur [da Natureza da Riqueza e da Origem
do valor (1848) Foi uma dos primeiros que tentaram aplicar as matemáticas à
investigação económica.
 Erving Goffman, 1961, Asylums: Essays on the social situation of
 mental patients and Other inmates (Manicómios: ensaios sobre a situação dos
pacientes e outros reclusos) Nova Iorque, Aldine de Gruyter.
 Ver os dois números dedicados a «Nouvelles formes de domination dans le
travail» [Novas formas de dominação no trabalho»] Actas da pesquisa em ciências
sociais n.o 114, Setembro de 1996, e 115, Dezembro de 1996, principalmente a
introdução por Gabrielle Balazs e Michel Pialoux. «Crise du travail e crise du
politique (crise do trabalho e crise da politica n.o 114, p. 3, 4
Originalmente publicado em “Le Monde”, Dezembro 1998
Tradução: Manuela Antunes

In
O DIARIO.INFO
http://www.odiario.info/a-essencia-do-neoliberalismo/
2/1/2017

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