terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Xadrez da teoria que sustenta o golpe


Peça 1 – as ideias e a conspiração


Nessa geleia geral em que se transformou o golpe, uma boa análise estratégica
exige a tipificação mais detalhada do papel de cada personagem.
O poder de fato está em uma entidade chamada mercado.
É o mercado quem forneceu o fio agregador do golpe, o objetivo final, o
componente ideológico capaz de criar uma agenda econômica alternativa, em torno
dos quais se agruparam a mídia, o PSDB e se induziu à politização de
instituições, como o STF (Supremo Tribunal Federal) e o MPF (Ministério Público
Federal), montando o círculo inicial que passou a dar as cartas no governo Temer
e, possivelmente, no pós-Temer.
É a parte mais eficiente do golpe, seguindo um roteiro fartamente descrito em
obras como “A Teoria do Choque” de Naomi Klein. Confira, a propósito, o “Xadrez
da Teoria do Choque e do Capitalismo de Desastre” ( https://goo.gl/vZYVzy).
Dado o golpe, reza a teoria (importada da Escola de Chicago), se tem seis meses
para emplacar as medidas mais drástica e consolidar o novo modelo.
A nova equipe econômica avançou como um bólido sobre os instrumentos econômicos
do Estado, com um plano de ação completo, meticulosamente preparado desde que o
PMDB apresentou a tal Ponte Para o Futuro.
Não se trata de um plano de estabilização, capaz de reverter a crise, mas de um
desmonte do Estado que aprofundará a crise. É a estratégia da terra arrasada,
visando sepultar qualquer vestígio do antigo modelo, independentemente dos
custos para o país e seu povo.
·      Apresentou a PEC 55 que, aprovada, acaba com qualquer possibilidade de
política fiscal anticíclica e manieta todos os futuros governos.
·      Se vale da crise fiscal para garrotear os governos estaduais.
·      Esvaziou o BNDES, fazendo-o pagar antecipadamente R$ 100 bilhões ao
Tesouro.
·      Ampliou a degola das empreiteiras nacionais, proibindo financiamento à
exportação de serviços e às empresas mencionadas na Lava Jato.
·      Prepara-se para vender a carteira de ações do BNDES na bacia das almas.
·      Montou uma queima de ativos da Petrobras, em um momento em que todos os
ativos nacionais estão depreciados pela crise e os ativos petrolíferos
depreciados pelas cotações de petróleo. Vende para reduzir passivo. Deixa de
lado todos os investimentos na prospecção, nas refinarias e nos estaleiros (que
garantiriam a expansão imediata e a longo prazo) para quitar antecipadamente (!)
financiamentos contratados junto ao BNDES. Nenhuma empresa com crise de liquidez
quita antecipadamente financiamentos. No máximo, reestrutura passivos.
·      Começou a esvaziar o FGTS, facilitando o saque das contas.
·      Com a ajuda da Lava Jato, jogou a pá de cal na cadeia produtiva do
petróleo e gás, no sonho dos estaleiros nacionais, na expansão do capitalismo
brasileiro para África e América Latina. Busca a destruição da maior empresa
privada brasileira, a Odebrecht, a empreiteira que mais incomodava os
concorrentes norte-americanos.
·      Na diplomacia, acabou de matar o protagonismo do Itamarati.
Para atingir seus objetivos, o sistema tem permitido a proliferação das maiores
jogadas que o Congresso e o Executivo já ousaram em sua história recente:
·      A iniciativa de entregar às teles os ativos acumulados durante o período
de concessão. Aliás, o senador Jorge Viana (PT-Acre) deve explicações a seus
eleitores e admiradores.
·      A jogada de transformar multas das teles em obrigação de investimento,
reeditando estratagema utilizado pelo inacreditável Paulo Bernardo, quando
Ministro das Comunicações. Na prática, equivale a perdoar as dívidas, já que os
investimentos teriam que ser feitos de qualquer maneira, por obrigação
contratual ou exigência de mercado.
·      A compra gigantesca de produtos Microsoft, interrompendo o trabalho de
disseminação do software livre.
·      As jogadas escandalosas do senador Romário, de depositar nas mãos das
APAEs e das Sociedades Pestalozzi o controle de toda a educação inclusiva.
·      A tentativa de emplacar os cassinos e casas de bingo.
·      A enxurrada de dinheiro público despejado nos veículos de mídia, cujo
melhor exemplo é a campanha milionária de prevenção da Zika e falta de remédios
para as grávidas.
·       A MP 754 que faculta à CMED (Câmara de Regulação do Mercado de
Medicamentos) autorizar reajustes a qualquer momento. A lei que criou a CMED, em
2003, autorizava-a a determinar apenas reajustes anuais de preços. Agora, haverá
reajustes, a qualquer momento, dependendo de uma plêiade de Varões de Plutarco:
Ricardo Barros, Ministro da Saúde, Alexandre Moraes, da Justiça, Henrique
Meirelles, da Fazenda, o pastor Marcos Pereira, do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio, e Eliseu Padilha, da Casa Civil, todos homens piedosos.
·       A tentativa de jogar a Fiocruz sob o comando de Ricardo Barros e Temer. 
      
Peça 2 – a economia de um país retardatário
Toda essa conspiração política repousa em um edifício teórico que está sob forte
processo de questionamento em países culturalmente mais avançados. No Brasil, os
temas se tornaram matéria de fé.
Os ideólogos desse manual – tão velho quanto a Escola de Chicago – são os
economistas Marcos Lisboa e Samuel Pessôa, ambos competentes em suas funções.
Lisboa é um brilhante economista que, na gestão Antônio Palocci, foi responsável
por vários avanços microeconômicos relevantes. Foi alçado à condição de guru
pelo megainvestidor Jorge Paulo Lehman. Ao perceber que as eleições de 2002
marcariam o fim do período tucano, Lehman enganchou Lisboa na campanha de Ciro
Gomes, por indicação de Alexandre Scheinkman, o brasileiro que dirigia o
prestigioso Departamento de Economia da Universidade de Chicago. Depois, coube a
mídia o trabalho de, em pouco tempo, torna-lo conhecido e com fama de gênio –
seguindo o roteiro conhecido de criação de gurus, mesmo sem uma produção
acadêmica robusta.
Eleito Lula, o primeiro aceno de seu Ministro da Fazenda Antônio Palocci ao
mercado foi a nomeação de Lisboa como Secretário Executivo da Fazenda. Quando
canalizou seu talento para as questões microeconômicas, conseguiu feitos
notáveis, como o de destravar o Sistema Financeiro da Habitação.
Agora, seu papel é o desmontar o Estado nacional e implementar um modelo de
mercado, não um plano de estabilização, menos ainda um projeto de
desenvolvimento equilibrado, que junte as virtudes de mercado com a de Estado. O
objetivo único é ideológico, impor terra arrasada em todos os instrumentos de
intervenção do Estado na economia – mesmo aqueles consagrados em todos os países
civilizados, e peças centrais na recuperação da economia, como bancos de
desenvolvimento, ou de comércio exterior, compras públicas, financiamentos à
inovação etc. – ainda que à custa de um aprofundamento maior da crise.
Dilma não soube transformar o Estado em um articulador do mercado. Lisboa
simplesmente quer abolir o Estado, como se fosse possível a um país da dimensão
do Brasil depender do mercado como agente originário das expectativas, algo que
nem os Estados Unidos ousam. E tudo isso jogando com o destino de milhões de
trabalhadores, de empresários, jogando fora anos de investimento em novos
processos, novas tecnologias.
É chocante como a chamada pós-verdade se infiltra até nos círculos tidos como
bem informados, com afirmações sobre o ajuste fiscal na União Europeia, quando o
próprio FMI está revendo os problemas dos ajustes recessivos.
Peça 3 – a política econômica de manual
Durante o longo período de neoliberalismo – que se inicia em 1972, com a
desvinculação das cotações do ouro e do dólar – criou-se a fantasia de que a
economia global se articularia passando ao largo das políticas nacionais.
Aboliu-se a história econômica como vetor de análises. E, com o advento dos
microcomputadores e das planilhas, entrou-se na era do uso abusivo de
estatísticas e fórmulas ilusórias em cima de macro-números que encobrem as
realidades nacionais e de blocos, e que só trabalham um conceito de equilíbrio
utópico, sem nenhum diagnóstico para os grandes stress econômicos.
Especialmente nas ciências humanas –a medicina, as ciências sociais ou a
economia – as teorias são instrumentos para se analisar a realidade local e suas
circunstâncias. Não existem regras universais. O exame de laboratório não
substitui a análise do paciente pelo médico, assim como a teoria econômica não é
um manual de aplicação universal. Para cada circunstância, há um conjunto de
medidas específicas.
A crise de 2008 abriu os olhos do primeiro time de economistas dos países
centrais. Percebeu-se que a economia é muito mais complexa do que as realidades
captadas em modelos matemáticos que compensavam a escassa sofisticação analítica
com excesso de estatística.
Vale a pena ler a entrevista de Eric Beinhocker na Carta Capital
(https://goo.gl/DirQsb). Para cada circunstância, há que se apelar para os
instrumentos de política econômica adequados, sem part-pris ideológico. E
recorrer também ao conhecimento empírico, especialmente nos casos de stress
agudo da economia que criam situações não identificadas na história econômica
recente. De tal modo, que o exercício da política econômica é um misto de
técnica e arte, de teoria e intuição.
Nos 8 anos de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, todas as crises
econômicas, quase todas nas contas externas, eram tratadas do mesmo modo, com
ajustes fiscais severíssimos, que apenas agravavam a recessão. A política de
juros e de câmbio produziu um dos períodos de maior estagnação econômica da
história.
Em 2008, Lula decidiu enfrentar a mega-crise que se avizinhava recorrendo a
todos os instrumentos possíveis para reanimar a economia. Saiu consagrado. E
também deu sorte. Se a crise não catapultasse o dólar para as alturas,
provavelmente o país teria quebrado em 2008, tal o rombo nas contas externas
promovido por uma política cambial imprudente que, além disso, prorrogaria
estagnação do período FHC.
A crise do governo Dilma foi decorrência da incapacidade de montar cenários e
estratégias alternativas para o fim do ciclo das commodities. Deveu-se também à
elevação imprevista de juros em 2013, à sucessão infindável de subsídios que
fragilizaram a parte fiscal e, depois, um ajuste fiscal severíssimo,
pró-cíclico, que aprofundou a crise: medidas tomadas nos momentos errados.
Em fins de 2015, quando aparentemente conseguira chegar a um diagnóstico mais
razoável, com uma estratégia racional de saída da crise, e os analistas previam
a recuperação a partir do segundo semestre, foi fuzilada pela ação conjunta da
Lava Jato e do Procurador Geral da República, associados ao boicote do PSDB e de
Eduardo Cunha na Câmara e no Senado.
As lições que ficam é que as medidas econômicas não são virtuosas em si:
dependem das circunstâncias em que são implementadas. Há um conjunto de
princípios de responsabilidade fiscal a serem seguidos por qualquer governo.
Mas, em períodos de recessão, a política fiscal precisa ser anticíclica –
através do aumento dos gastos públicos -, caso contrário a cada corte de
despesas se seguirá uma queda maior da receita. Em tempos de economia aquecida,
pratica-se política fiscal mais severa. Nenhum economista com um mínimo de bom
senso
Esse quadro era nítido no início de 2015, quando Joaquim Levy deu inicio a seu
plano suicida. Uma dose de conhecimento empírico seria suficiente para mostrar
que os cortes fiscais aprofundariam ainda mais a recessão, ampliando o déficit
fiscal via queda de receita.
Levy preferiu acreditar em estudos dos anos 90, que supostamente atestariam que
cortes de despesas têm pouco impacto no PIB. Nem se deu conta que, em 2012, o
próprio FMI tinha revisto essas conclusões.
Para os cabeças de planilha, conhecimento empírico não é ciência e as
experiências históricas não tem validade. Valem apenas as estatísticas baseadas
em séries históricas contemporâneas.
A cada situação nova, criam desastres monumentais pela incapacidade de só
recorrer a manuais montados em cima de situações passadas. Os desastres só serão
inteiramente compreendidos quando estudados a posteriori. E, como aqui é o país
do Macunaíma, nm mesmo grandes erros recentes – como o pacote Levy – servem de
lição para o pacote Lisboa.
Peça 4 – próximas etapas
A fantasia do pote de ouro no fim do arco-íris acabou. A história de que
bastaria tirar Dilma para a economia se recuperar já está sendo percebida como
blefe pelo cidadão comum.
Tem-se um presidente tão desmoralizado que, a maneira que a revista Veja
encontrou para retribuir o megapacote publicitário, foi uma capa-fantasia com a
senhora Temer, tal a falta de atratividade em qualquer outro aspecto do primeiro
marido.
A economia não irá se recuperar com esse viés ideológico predominando na
política econômica. Pelo contrário, há no horizonte próximo o pior dos mundos: o
default dos Estados.
Em março o STF (Supremo Tribunal Federal) deverá liberar os inquéritos contra
políticos. A quantidade de jogadas planejadas pela camarilha de Temer e pelo
Congresso aumentará ainda mais a fragilidade do governo.
A oposição vê nas eleições diretas a saída para a crise. Ocorre que Sérgio Moro,
os procuradores da Lava Jato e o TRF4 têm lado político. Ao menor sinal de
renascimento de Lula, tratarão de impugnar sua candidatura através da condenação
relâmpago em 1a e 2a instância.
Por outro lado, o presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) Gilmar Mendes,
deixa transparecer seu cansaço com o Supremo e a possibilidade de aceitar algum
cargo executivo futuramente.
No momento, a aposta com maior probabilidade é a degola de Michel Temer seguido
de eleições indiretas sob controle do mercado-PSDB, com o PGR cumprindo o papel
de agente intimidador de políticos recalcitrantes.
Há muita confusão e poucos personagens, para permitir a montagem de cenários
mais precisos.
In
jORNAL GGN
http://jornalggn.com.br/noticia/xadrez-da-teoria-que-sustenta-o-golpe
3/1/2017

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