terça-feira, 2 de maio de 2017

Lutas ideológicas no capitalismo contemporâneo

   
      
       por Prabhat Patnaik [*] 

       A globalização provocou sofrimento agudo para os trabalhadores de todo o
      mundo. Este sofrimento não se limita apenas ao período da crise pós bolha
      imobiliária, nem apenas aos trabalhadores dos países capitalistas
      avançados. A descoberta de Joseph Stiglitz de que o salário médio real de
      um trabalhador masculino americano em 2011 era algo mais baixo do que em
      1968 sugere claramente que este sofrimento tem tido uma longa duração. Da
      mesma forma, a presunção de que o sofrimento aflige apenas os
      trabalhadores de países capitalistas avançados cujas oportunidades de
      emprego contraíram-se porque o capital metropolitano tem relocalizado a
       actividade económica em países do terceiro mundo com baixos salários, e
      que os trabalhadores destes últimos consequentemente tem sido os
      beneficiários da globalização, é completamente falsa: esta relocalização,
      longe de reduzir as enormes reservas de trabalho do terceiro mundo, foi
      pelo contrário acompanhada por um aumento da dimensão relativa de tais
      reservas e, portanto, por um esmagamento das taxas de salários reais. Isto
      tem sido assim, dentre outras razões, devido ao assalto maciço ao sector
       da micro produção nestes países, e o despojamento de micro produtores,
      que a globalização implicou.
       Tal sofrimento está a despertar um forte ressentimento entre os
       trabalhadores de todo o mundo, o qual é mais claramente visível, como
      agora, nos países capitalistas avançados. E em face desta oposição estão a
      emergir pelo menos três diferentes posições ideológicas nestes países. Uma
      destas é uma posição de Esquerda, a qual comentarei depois. As outras duas
      são posições dentro do próprio campo burguês, cuja principal
      característica é que elas não visualizam qualquer coisa para além do
      capitalismo.
       Destas duas, uma que emergiu com força gritante é aquela da
       ultra-direita. Se bem que as posições de Donald Trump dos EUA, de Marine
      Le Pen de França e de Nigel Farage na Grã-Bretanha, e de seus equivalentes
      em outros países europeus, não sejam idênticas, no entanto pode ser
      detectado um certo elemento comum entre elas. Eles encaram a globalização
      como implicando uma pioria das condições dos trabalhadores, devido à
       imigração de trabalhadores estrangeiros e à emigração de capital
      produtivo, nomeadamente para destinos com baixos salários. Portanto, esta
      posição vê o problema básico como decorrente da competição de
       trabalhadores de outros países – e a panaceia para isso é restringir tal
      competição através do impedimento da imigração, da protecção contra bens
      estrangeiros e da penalização do capital que tenta emigrar para o exterior
      a fim de se relocalizar em países de baixos salários. Contudo,  em tudo
      isto há pouco reconhecimento do papel do capital financeiro, do facto de
      que a procura global na economia mundial, à qual podem ter acesso todos os
      países em conjunto, não pode ser aumentada por causa de hegemonia do
      capital financeiro.  O capital financeiro globalizado, confrontando
      Estados-nação, os quais quer queiram quer não têm de aceder às suas
       exigências, insiste por toda a parte em manter a dimensão do défice
      orçamental dentro de limites. Igualmente, o outro possível meio de
      financiar maiores gastos do governo para ampliar a procura agregada,
      nomeadamente através de impostos sobre capitalistas, é também impedido por
      ele. (Maiores gastos do governo financiado por impostos sobre os
      trabalhadores, os quais consomem o grosso dos seus rendimentos, não ajudam
      a aumentar a procura agregada).
       É significativo que Trump, que tem proposto agressivamente uma política
      proteccionista de "empobreça meu vizinho", chegando ao ponto de penalizar
      investimento directo estrangeiro por firmas americanas para atender o
      mercado interno dos EUA, não tenha uma palavra a dizer sobre restrições ao
      capital financeiro globalizado. (Isto tem levado alguns autores a
      afirmarem mesmo que as suas políticas são anti-capital manufactureiro, mas
      favoráveis à finança; isto entretanto é um exagero uma vez que ele também
      está ansioso por reduzir impostos corporativos  em geral  ).
       Em relação a esta oposição, há a posição neoliberal habitual, totalmente
      aprovada pela finança globalizada, a qual atribui o sofrimento dos
      trabalhadores não à globalização mas a toda espécie de outros factores e
      que afirma mesmo que proteccionismos de qualquer espécie simplesmente  não
      podem  melhorar a condição dos trabalhadores. Em suma, nada deveria ser
       feito para alterar o presente cenário de globalização. Se algo precisa
      ser feito, então tem de ser em outras áreas e não em relação ao actual
      regime de globalização. Christine Lagard, a actual
      directora-administradora do FMI, articulou esta oposição explicitamente em
       oposição à administração Trump e desde então muitos comentaristas
      financeiros têm reflectido seus pontos de vista. De facto, o FMI acaba de
      lançar um documento argumentando em favor desta posição.
       Esta posição está em tamanha bancarrota intelectual que a adesão a ela
      pela assim chamada "burguesia liberal" só está a servir para reforçar o
      apelo da ultra-direita, a qual pelo menos tem o mérito de tomar
      conhecimento do sofrimento do povo. Sua bancarrota pode ser ilustrada pelo
      exame de um artigo de Martin Wolf, um influente jornalista que escreve
      regularmente em  The Financial Times,  de Londres. Seu argumento é que o
      proteccionismo ao elevar a produção e o emprego em sectores competitivos
      importadores só afastará recursos dos sectores exportadores. Isto
      abaixaria mesmo as exportações quando reduz importações, deixando intacto
      o défice comercial e portanto, por implicação, o nível da procura agregada
      e do emprego.
       A falácia deste argumento está no facto de que um aumento na produção por
      substituição de importações será a expensas da produção de exportação  só
      numa economia onde haja pleno emprego de recursos  (de modo que um sector
      da produção possa ascender só a expensas de outro), não numa economia que
      tenha simultaneamente desemprego e capacidade não utilizada. Segue-se
      portanto que o autor está a argumentar que o proteccionismo não pode
      aumentar o emprego,  só através da assunção de que não existe nenhum
      desemprego de modo algum.  É a crueldade destes comentadores "liberais",
      exibida através de tais ideias absurdas e logicamente falaciosas, que faz
      os trabalhadores voltarem-se para os partidos da ultra-direita a expensas
      dos partidos "liberais burgueses", comprometidos com a ortodoxia do
       capital financeiro, que tais comentadores favorecem.
       Exactamente o mesmo raciocínio falacioso está subjacente a outra
       proposição de Wolf. Começando pelo truísmo de que o défice em conta
      corrente de um país deve ser igual ao excesso dos bens e serviços que ele
      absorve em relação ao que produz, ele argumenta que o actual défice
      corrente dos EUA nunca poderá ser ultrapassado a menos que a sua absorção
      de bens e serviços do resto do mundo seja reduzida. Isto é absurdo porque
       um excesso de absorção sobre o produto pode decorrer não só por a
      absorção ser demasiado alta como também porque o produto é demasiado baixo
      e, na verdade, esta última hipótese deve ser o caso numa economia afligida
      pela crise. O proteccionismo neste caso  reduzirá  o défice corrente e
       aumentará  a produção interna e o desemprego. (Isto não acontecerá se já
      houver pleno emprego na economia, o qual é o que Wolf deve estar
      implicitamente a assumir  mesmo em meio a uma crise  ).
       O argumento de que o proteccionismo da espécie que Trump está a promover
      não pode logicamente elevar o emprego e a produção está obviamente errado.
      Mas ele pode promover o emprego só se os outros países não retaliarem
      contra o proteccionismo dos EUA. Uma vez que o proteccionismo "exporta
       desemprego" para outros países, ele pode certamente "funcionar" se os
      outros países estiverem desejosos de importar desemprego. Mas se não
      estiverem, o que naturalmente é o cenário provável, então o proteccionismo
      cessa de funcionar e o proteccionismo competitivo pode mesmo agravar a
       condição de todos tomados em conjunto.
       A terceira posição, que é a posição da Esquerda, toma pleno conhecimento
      do papel do capital financeiro na globalização contemporânea. Ela gostaria
      de uma globalização despida da hegemonia da finança, na qual governos
      democraticamente eleitos são capazes de controlar a finança ao invés de
      serem por ela controlados. Há sérias diferenças dentro da Esquerda sobre o
      grau em que um país deveria desligar-se da globalização se a hegemonia da
       finança não for vencida. No contexto europeu este dilema toma a forma de
      se um país deveria permanecer na União Europeia se as suas tentativas de
      se livrar das cadeias da finança não derem fruto. O Syriza [NR] na Grécia
      decidiu permanecer na UE apesar não conseguir livrar-se da "austeridade"
      imposta pela finança sobre o povo grego. Nas últimas eleições francesas
      Melenchon, o candidato da esquerda apoiado pelo Partido Comunista exigiu
      uma renegociação do acordo da UE e controle político sobre o Banco Central
      Europeu, enquanto deixava aberta a questão de abandonar a UE
      (presumivelmente até o resultado das negociações de todas estas questões).
       Como o trumpismo e a ultra-direita em geral fracassam, uma vez que não
       enfrentam a questão básica da hegemonia da finança, e como a esquerda
      adquire maior clareza sobre a necessidade do desligamento da globalização
      no caso de a hegemonia da finança continuar a persistir, a bancarrota da
      posição "liberal burguesa" levará cada vez mais trabalhadores a apoiar a
      esquerda. Isto já está a acontecer com a ascensão de figuras como Corbyn,
      Sanders e Melenchon; isto aumentará de ímpeto se a esquerda abandonar sua
       ambivalência residual sobre a globalização.

      30/Abril/2017
       [NR] A classificação do Syriza como partido de esquerda deve-se
      certamente à má informação do autor. 
      [*] Economista, indiano, ver  Wikipedia
       O original encontra-se em 
      peoplesdemocracy.in/2017/0430_pd/ideological-struggles-contemporary-capitalism
       
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/patnaik/patnaik_30abr17.html
1/5/2017

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