quarta-feira, 9 de maio de 2018

Marx e o capitalismo

 

     
       por Prabhat Patnaik [*] 


       A contribuição de Marx para o entendimento do capitalismo pode ser vista
      através de duas visões reveladoras que ele teve deste sistema. A primeira
      refere-se à origem do valor excedente  (surplus value).  Num mundo de
      mercadorias onde a troca entre possuidores mercadorias, dentre as quais
      estão também os trabalhadores, ocorre voluntariamente e em equivalência,
      sem qualquer trapaça, como pode ocorrer valor excedente?
       A solução para este enigma, descoberta por Marx, jaz numa distinção entre
      trabalho e força de trabalho. O que os trabalhadores vendem não é o seu
      trabalho mas sim a sua força de trabalho, isto é, a sua capacidade para
      trabalhar, a qual se torna uma mercadoria – e como todas as mercadorias
      tem um valor igual à quantidade total de tempo de trabalho directo e
      indirecto que entra na produção de uma unidade dela, o que neste caso
      implica que está incorporada no cabaz de subsistência requerido para a
       produção e reprodução de uma unidade de força de trabalho. A força de
      trabalho como mercadoria tem entretanto esta propriedade única de que a
      sua utilização, a qual é o dispêndio real de força de trabalho, cria
      valor. A origem do valor excedente repousa no facto de que o valor que a
      força de trabalho cria é maior do que o seu próprio valor. Portanto, mesmo
      com troca equivalente, isto é, mesmo quando todas as mercadorias são
      permutadas aos seus valores, emerge um valor ascendente.
       Esta visão profunda tem um certo número de implicações. Primeiro, ela
      proporciona uma definição sucinta e rigorosa do capitalismo, como um
      sistema de produção generalizada de mercadorias onde a própria força de
      trabalho se torna uma mercadoria. Isto também significa que a dualidade
      que caracteriza qualquer simples economia produtora de mercadorias, entre
      o aspecto "coisificado" de entidades e seu aspecto relacional, tal como
      valor de uso – valor de troca; processo de trabalho – processo de criação
      de valor; produto – mercadoria; trabalho concreto – trabalho abstracto,
      torna-se agora ainda mais generalizado:   meios de subsistência – capital
      variável; produto excedente – valor excedente e assim por diante.
       Em segundo lugar, o valor excedente neste sistema é criado não na esfera
      da  troca  mas sim na esfera a  produção.  Uma vez que as firmas
      capitalistas como produtoras de mercadorias estão envolvidas na competição
      umas contra as outras, onde os produtores de alto custo são eliminados ao
      longo do tempo, a pressão para cortar custos assume necessariamente a
      forma da introdução de novos método e novos produtos, isto é, de
      revolucionar continuamente os métodos de produção. Este incessante impulso
      para revolucionar a produção é o que distingue o capitalismo de todos os
      modos de produção anteriores e está ligado ao facto de que o valor
      excedente tem origem na esfera da produção.
       Em terceiro lugar, desde que a capacidade para introduzir novos métodos
       depende da dimensão da unidade de capital, com os maiores capitais tendo
       uma vantagem e expulsando os mais pequenos, toda unidade de capital está
       sob pressão para aumentar de dimensão através da acumulação. A acumulação
      de capital, em suma, ocorre por causa da pressão exercida sobre cada
      unidade de capital devido à competição dentro do sistema. Mas
      naturalmente, muito embora cada unidade de capital actue desesperadamente
      para evitar arruinar-se nesta luta Darwiniana pela existência, algumas
       necessariamente arruínam-se, pelo facto de haver um processo de
       centralização de capital, isto é, a formação de blocos de capital cada
      vez maiores que se verificam ao longo do tempo. (Isto em última análise
      leva à emergência do capitalismo monopolista em que acordos de preço
      explícitos ou implícitos são alcançados entre capitalistas sem
       naturalmente eliminar a competição, a qual agora assume outras formas).
       Em quarto lugar, para a apropriação do valor excedente pelos capitalistas
      continuar, o valor da força de trabalho deve ser sempre inferior ao valor
      que ela cria, o que significa que o sistema não deve nunca exaurir-se de
      força de trabalho. Isto por sua vez exige que haja sempre um exército de
      trabalho de reserva em acréscimo ao exército de trabalho activo empregado
      pelos capitalistas. Este exército de reserva é criado pela própria
       acumulação de capital a qual, através do processo de centralização do
      capital e através da destruição da pequena produção, empurra continuamente
      pessoas para as fileiras dos trabalhadores. Desde que a dimensão absoluta
      do exército de reserva se mantenha a crescer, juntamente com o do exército
      activo, quando se verifica acumulação de capital, o crescimento da riqueza
      num pólo é necessariamente acompanhado pelo crescimento da pobreza em
      outro.
       Economistas clássicos ingleses atribuíram o facto de os salários serem
      mantidos a um nível de subsistência à tendência entre os trabalhadores
      para procriarem excessivamente no caso de obterem salários acima da
      subsistência. Esta ideia absolutamente repugnante foi rejeitada por Marx,
      o qual classificou a Teoria Malthusiana da População sobre a qual estava
      baseada como "uma calúnia à raça humana". Ele aduziu, ao invés, as razões
      sociais que mencionámos para os salários permanecerem cravados no nível de
      subsistência.
       Em quinto lugar, a própria origem do sistema repousa numa separação dos
      produtores dos seus meios de produção e de uma concentração destes meios
      de produção em poucas mãos de modo que duas classes de possuidores de
      mercadorias, uma com meios de produção e de subsistência em suas mãos e a
      outra com nada para vender excepto a sua força de trabalho, são criadas e
      ficam "frente a frente e em contacto". Esta dicotomia fundamental é
      reproduzida ao longo do tempo através da operação do próprio sistema.
       Em sexto lugar, através do contínuo revolucionamento dos métodos de
      produção, a produtividade do trabalho aumenta ao longo do tempo. Mas a
      existência do exército de reserva do trabalho actua sempre,  ceteris
      paribus,  para manter os salários a um nível de subsistência
       historicamente determinado, o qual pode no melhor dos casos aumentar
       vagarosamente ao longo do tempo. Uma vez que os salários são mais ou
      menos plenamente consumidos, ao passo que só uma proporção do valor
      excedente o é, mantém-se baixa a procura por bens de consumo na economia
      em relação ao valor produzido. Se todo o valor excedente não consumido
      fosse utilizado para acumulação  unicamente na forma de acréscimos ao
      stock de capital constante e variável,  então nunca haveria qualquer
      problema de deficiência da procura agregada em relação ao valor produzido,
      como havia postulado a  Lei de Say . Mas como a acumulação pode assumir a
      forma de acréscimo ao capital monetário, a ascensão da fatia do valor
      excedente no valor total produzido dá origem a uma tendência para crises
      de super-produção.
       Marx chamou a atenção para várias diferentes espécies de crise que podiam
      emergir dentro do sistema, inclusive através de um aumento na composição
      orgânica do capital, isto é, no rácio entre o capital constante e o
      capital variável. Mas o seu reconhecimento das crises de super-produção
      devido à natureza do capitalismo na utilização do dinheiro, o qual
      necessariamente faz do dinheiro uma forma de manutenção de riqueza, não só
       assinalou um avanço sobre economistas clássicos ingleses que haviam
      aceite a Lei da Say como também antecipou em três quartos de século a
      assim chamada Revolução Keynesiana, a qual foi desenvolvida durante a
      Grande Depressão da década de 1930 a fim de compreendê-la.
       Esta fundamental visão penetrante da natureza da exploração sob o
      capitalismo e o facto de que o sistema reproduz sua natureza exploradora e
      as contradições dela decorrentes, através da sua própria operação, foi
      integrada por sua vez dentro da sua descoberta de uma característica
      básica do sistema, nomeadamente que é um  sistema espontâneo.  Se bem que
      funcione através das acções empreendidas por um conjunto de entidades
      individuais, estes indivíduos actuam do modo como o fazem porque são
      coagidos pelo sistema a assim fazer. O sistema portanto é essencialmente
      autónomo  (self-driven),  uma autonomia cuja natureza é mediada por acções
       individuais mas acções que são elas próprias determinadas pela lógica do
      sistema. Qualquer indivíduo que não actue do modo exigido pelo sistema
      perde o seu lugar dentro dele e dá-se por vencido, tal como por exemplo um
      capitalista que decida não empreender acumulação. E as acções de
       indivíduos na sua totalidade dão origem a certas tendências imanentes que
      caracterizam o sistema, tais como a tendência rumo à centralização do
      capital, a tendência rumo à reprodução ampliada do exército de trabalho de
      reserva, a tendência rumo à expropriação de pequenos produtores, a
      tendência rumo à produção de riqueza num pólo e a pobreza em outro e assim
      por diante.
       Esta segunda visão penetrante de Marx também tem um certo número de
      implicações profundas. Ao contrário da sua afirmação de que assegura
      liberdade individual, o capitalismo é caracterizado pela alienação
      universal, onde todo agente económico é coagido a actuar de modos que não
      são da sua própria vontade. Mesmo o capitalista é alienado sob o
       capitalismo, sem liberdade para actuar de acordo com a sua própria
       vontade, mas sim coagido a actuar de modos específicos devido à luta
      Darwiniana na qual todos os capitalistas estão empenhados. Marx chamou o
      capitalista de "capital personificado", indicando que a pessoa do
      capitalista era simplesmente um veículo para a actuação das tendências
      imanentes do capital.
       Em segundo lugar a "espontaneidade" do sistema significa que ele não é
      maleável de modo a que se possa provocar qualquer mudança no seu
      funcionamento e resultado económico através da intervenção política. Na
      verdade, o papel normal da intervenção política pelo Estado capitalista é
       reforçar a "espontaneidade" do sistema, no sentido de acelerar as
      realizações das suas tendências imanentes. Mas mesmo que possivelmente,
      sob certas circunstâncias, a "espontaneidade" do sistema seja restringida
      através da intervenção política, tal restrição torna o sistema
      disfuncional, necessitando ou de nova intervenção para alterar o sistema
      ou de repelir a própria intervenção original a fim de restaurar a
      "espontaneidade".
       O argumento em favor do socialismo levanta-se precisamente devido a esta
       "espontaneidade". Se o capitalismo fosse um sistema maleável onde
      quaisquer espécies de "reformas" pudessem ser executadas com êxito e
      duradouramente para torná-lo mais humano, mais "amigo do trabalhador",
      mais "socialmente responsável", mais igualitário e mais "assistencialista"
       ("welfarist"),  então não valeria a pena argumentar em favor da sua
       transcendência por uma ordem socialista. Mas a "espontaneidade" do
      sistema impede tal maleabilidade, torna inaceitáveis quaisquer reformas
      significativas do mesmo, torna o "capitalismo do bem-estar" uma
      contradição em termos como fenómeno sustentável, razão pela qual ele tem
      de ser transcendido.
       O socialismo consequentemente tem de ser visto como uma ordem totalmente
       diferente, uma ordem não-"espontânea". A diferença entre capitalismo e
      socialismo jaz não apenas no facto de que este último está associado à
      propriedade dos meios de produção pelo Estado em favor da sociedade como
      um todo:   se firmas possuídas pelo Estado competissem umas contra as
      outras no mercado como fazem as firmas capitalistas, então elas
      reproduziriam a anarquia do capitalismo juntamente com crises, desemprego
      e muitas das tendências imanentes do capitalismo. Esta diferença não
       repousa apenas no facto de os rendimentos serem melhor distribuídos sob o
      socialismo:   isso também pode ser desfeito ao longo do tempo se se
       permitir que a tendência para a criação do exército de reserva do
      trabalho persista. A diferença jaz no facto de que o socialismo não é
      conduzido por quaisquer tendências económicas imanentes, de modo que os
      trabalhadores podem conscientemente modelar o seu destino económico
      através da intervenção política colectiva. Uma economia socialista tem de
      ser o que torna isto possível.
       Mas como pode o socialismo chegar a nascer se o capitalismo coage todos
      os indivíduos a actuarem dos modos exigidos pela sua própria lógica? A
      resposta de Marx foi que o capitalismo, apesar de promover a competição,
      fragmentação e alienação entre os trabalhadores, também os capacita a
      actuarem em conjunto através de "combinações". Isto representa uma ruptura
      na representação da sua lógica interna; e esta ruptura, ajudada por um
      entendimento teórico que encare o sistema "do lado de fora", isto é, de
      uma perspectiva de "exterioridade epistémica", conduz à praxis em favor do
       socialismo.
       Uma diferença básica entre o marxismo e o liberalismo é que este último,
      não obstante sua ênfase na liberdade individual, encara esta liberdade
      como sendo constrangida apenas pelo Estado ou por alguns indivíduos ou
      grupos, mas nunca pelo próprio sistema. Isto acontece porque ele considera
      todos os relacionamentos económicos terem sido acordados voluntariamente;
      ele nunca reconhece que indivíduos podem ter sido coagidos a entrar em
      relacionamentos económicos.
       A coerção do sistema económico que Marx destacou não reside apenas na sua
      actuação como um constrangimento sobre projectos e acções individuais. Ao
      contrário, o capitalismo é conduzido pelas tendências imanentes dentro de
      cuja teia o indivíduo é capturado. A liberdade do  indivíduo,  portanto,
      longe de ser realizada sob o capitalismo, exige para a sua realização a
      transcendência do mesmo pelo socialismo, o qual está livre de quaisquer
      tendências imanentes. A existência destas tendências imanentes sob o
      capitalismo também explica porque uma condição  necessária  para  toda 
      emancipação, quer de casta, de género, étnica ou outra opressão, é a
      transcendência deste sistema. O socialismo é uma condição necessária para
      acabar com toda a opressão.
       A análise de Marx do capitalismo em  O Capital  encara o sistema
      capitalista em isolamento; suas interacções com modos de produção pré
      capitalistas em torno dele não são discutidas, apesar da sua importância
      óbvia. Isto é curioso uma vez que no próprio tempo em que Marx estava a
       trabalhar no  Capital  ele também estava a ler extensamente sobre o
      impacto colonial britânico sobre a Índia, acerca do qual escreveu uma
      série de artigos para o  New York Daily Tribune.  Sua não integração do
      imperialismo dentro da sua análise do capitalismo foi talvez porque
      estivesse preocupado naquele tempo com um Revolução Proletária na Europa
      Ocidental, a qual ele pensava estar iminente. Mas no fim da vida ele
      voltou sua atenção para outras regiões, quando as perspectivas de
       Revolução na Europa Ocidental recuaram. Apenas dois anos antes da sua
      morte ele escreveu uma carta a N.F. Danielson, o economista  narodnik ,
      onde mencionou uma "drenagem" maciça do excedente da Índia para a
      Grã-Bretanha.
       Em suma, a análise de Marx do capitalismo deve ser vista como o ponto de
       partida da mesma, não de chegada. A tarefa de desenvolver o marxismo
      tanto pela incorporação do imperialismo dentro da análise, no próprio
      contexto de Marx, e pelo exame dos desenvolvimentos subsequente, cabe a
      autores marxistas posteriores, o que é precisamente o que fez Lenine. E
      quando tal tarefa é cumprida, várias das visões penetrantes básicas de
      Marx acerca do capitalismo são justificadas ainda mais fortemente.
       Exemplo:   quando é considerada a persistente usurpação pelo capitalismo
      da economia de pequena produção que o rodeia, a qual esmaga ou desloca
      tais produtores sem absorvê-los no exército de trabalho activo do
      capitalismo, a visão penetrante de Marx de que o sistema produz riqueza
      num pólo e pobreza no outro fica imensamente fortalecida. De facto,
      aqueles que argumentam contra o prognóstico de Marx dizendo que tal
      polarização não se verificou em terras onde o capitalismo triunfou em
      primeiro lugar ignoram tipicamente esta relação dialéctica entre
      capitalismo e seu mundo circundante. As visões penetrantes de Marx são
      realmente fortalecidas ao "ir mais além" do que Marx havida escrito
       originalmente.
       O mesmo é verdadeiro em relação ao projecto revolucionário de Marx.
      Quando o capitalismo é encarado na sua totalidade, incorporando o
      imperialismo, as perspectivas e possibilidades da revolução tornam-se
      imensamente maiores; pois falamos então não mais apenas de uma revolução
       proletária em países capitalistas desenvolvidos mas também de uma
      revolução democrática baseada numa aliança operária-camponesa mesmo em
      países onde o capitalismo está menos desenvolvidos, com mesmo nestes
      últimos a revolução prosseguindo por etapas rumo ao socialismo. As
      perspectivas de uma aliança operário-camponesa que Lenine havia
      conceptualizado como decorrente da incapacidade do capitalismo de avançar
      a revolução anti-feudal em países onde chegou atrasado, fica ainda mais
      fortalecida quando tomamos conhecimento da usurpação pelo capitalismo da
      economia dos pequenos produtores, a qual pressiona estes últimos à
      indigência e a suicídios mesmo na presente altamente "moderna" era da
      globalização.

      06/Maio/2018
      [*] Economista, indiano, ver  Wikipedia
       O original encontra-se em 
      peoplesdemocracy.in/2018/0506_pd/marx-and-capitalism . Tradução de JF. 
In
RESISTIR.INFO
http://resistir.info/patnaik/patnaik_06mai18.html
6/5/2018

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