segunda-feira, 28 de maio de 2018

O capitalismo da super-auto-exploração



 por Fernando Horta

Em 1916, Lênin descreveu uma “fase superior do capitalismo”, que seria a união
do capital bancário com o industrial criando imensos grupos geradores de lucros
em cima de todas e quaisquer atividades humanas. Lênin descreve o processo como
parte de sua explicação para a primeira guerra mundial. Este capitalismo
financeiro teria como característica a mitigação do risco e da concorrência. Não
haveria mais o “livre mercado”, seja porque estas imensas reservas de capital
dobravam os regimes tributários e legais dos Estados, seja porque tais grupos
teriam inúmeras ferramentas (dumpings, holdings, trustes e etc.) para acabarem
com todos os concorrentes.
Lênin nomeou esta nova fase do capitalismo de “imperialismo”, onde o capital
teria tamanha capacidade e poder que seria um erro imaginar que países que
atingiram o “imperialismo” poderiam ser analisados pelas antigas ferramentas
marxistas. Claro que a lógica marxista estava presente, a concentração de
capital e a exploração são argumentos marxistas para explicar a principal
engrenagem do sistema. Lênin, contudo, desnuda o fato de que dentro do
capitalismo, os estágios de desenvolvimento eram dramaticamente diferentes. E,
sendo diferentes, criavam relações políticas, sociais e mesmo econômicas que
divergiam do modelo explicitado por Marx.
A partir das análises de Lênin, por exemplo, era possível perceber pontos de
contato e interesses semelhantes entre países capitalistas periféricos (que eram
explorados pelos imperialistas) e a URSS. Lênin cria colorações no capitalismo e
no próprio proletariado, e, ainda que alguns vejam em Marx uma estrutura fluida
e maleável (em oposição a um modelo duro dividido entre burguesia e
proletariado), é indiscutível que Lênin operacionalizou muitas categorias de
análise de Marx e Engels para os novos tempos do século XX.
Ocorre que o capitalismo, como já afirmava Schumpeter, é extremamente dinâmico e
a capacidade humana de criar meios para continuar enriquecendo (e explorando)
parece não ter fim. Nenhuma das ferramentas capitalistas atuais escapa da noção
central de exploração. O capitalismo segue crescendo como Marx estabeleceu:
explorando o homem e explorando o planeta de formas cada vez mais extremas.
Vamos para o terceiro século de capitalismo e o planeta está já incapaz de
sobreviver aos mecanismos de exploração. No mesmo tempo, o homem tornou-se cada
vez mais escravo do trabalho – e não menos. Ao aumento da produção, pela
incorporação de máquinas e toda sorte de tecnologias, não decorreu uma redução
do tempo de trabalho. Marx continua sendo essencial.
Mas, se o capitalismo continua exploratório e continua fazendo isto em níveis
insuportáveis, como a previsão marxista de revolta do proletariado não se
verifica por todo o lado?
Uma das ferramentas de defesa do capitalismo, que visa obscurecer as relações de
classe e o processo de exploração e acumulação, começou na década de setenta do
século XX e tem se aprofundado no século XXI. Ao criar termos e condições
formalmente diferentes para o trabalho, o capitalismo empreendeu uma cruzada
contra as análises críticas que é tanto mais violenta quanto maior a crise que o
sistema passa.
No final dos anos setenta, os processos de ISO e qualidade do trabalho tornavam
os proletários apenas “colaboradores” e pela racionalização das atividades em
todos os níveis afastavam as percepções críticas do sistema. A criação
ideológica de “estratos” diferenciados da mão de obra, concorria com o processo
de identificação social: ninguém mais quaria se ver como um reles proletário. Ao
esconder as relações econômicas com canetas folhadas a ouro, uniformes, cessão
de carros e outros benefícios, o capitalismo lutava diretamente contra a
formação da consciência de classe. Contra a ideia de que a relação chave da
economia é a exploração do trabalho pelo capital.
Diversas novas categorias foram sendo estudadas. Os “White collars”, os “blue
collars”, o “precariado”, o “lumpem proletariado” e por aí afora. Ainda assim,
até o final do século XX a relação de exploração era visível por entre os parcos
prêmios de produção e os baixos percentuais de “divisão de lucros” que as
empresas ofereciam como forma de mitigar a sensação de exploração. O fim da URSS
permitiu o fortalecimento do “neoliberalismo”. Sem medo de revolução, sem um
modelo a competir com o capitalista e sem um caminho claro de como superar o
sistema, bastava que se atacassem os sindicatos, e se desconstruísse a noção de
classe.
Aqui surge a ideia do “estado mínimo”. Um estado cuja única função é uma polícia
fortemente armada para garantir a propriedade e uma diplomacia para oferecer
relações internacionais ao capital. Todo o resto está fora do conceito dos
neoliberais. Saúde, educação, emprego, ciência e etc. seriam coisas para o
“mercado” já que a função do Estado seria apenas assegurar a propriedade por
meio das leis cíveis e criminais.
Neste cenário de desindustrialização e hiperexploração o capitalismo criou uma
nova forma de trabalho: a auto-super-exploração. Este sistema de extrair valor
máximo de cada trabalhador, em rede e em larga escala começou nas antigas
empresas de vendas como Amway, Mary Kai ou Herbalife. Milhões de pessoas eram
obrigadas, de início, a comprarem “kits” para uso pessoal, já garantindo um
mínimo de exploração que – por si só – mantinha o sistema de pirâmide
funcionando. O “investimento” de cada um que se agregava na base era
imediatamente transferido aos seus superiores terminando por promover uma imensa
acumulação de capital na parte superior destas estruturas que devolvia aos
estratos inferiores brindes e mais “treinamento” que, no fundo é apenas um
condicionante ideológico.
Estes “investidores”, “donos do seu próprio negócio” e “futuros capitalistas de
sucesso” eram constantemente bombardeados com histórias de conhecidos, vizinhos
ou amigos que “deram certo” e ficaram “ricos” fazendo parecer que o caminho era
possível. Na realidade a imensa maioria destas pessoas que “enriqueciam” eram
apenas abastecidas com um pouco mais de dinheiro por um breve momento para que
funcionassem exatamente como verificadores de legitimidade e veracidade da
exploração. Elas mesmas só se sustentavam se seguiam buscando mais e mais
explorados a se agregarem na base da pirâmide. Todos oferecendo seu tempo, seu
trabalho e seus recursos (porque precisam comprar sempre um “mínimo”) em troca
de um sonho, uma grande mentira.
Os estudos mostram que a sazonalidade desta oferta de trabalho na parte de baixo
da pirâmide é de seis meses a um ano. O indivíduo se auto-explora em níveis
quase insuportáveis para, findo este curto tempo, perceber que “não deu certo”.
Contudo, o bombardeio ideológico (de coachs, palestras e cursos) é tão grande
que o próprio explorado se convence que não enriqueceu por falhas pessoais.
Neste processo, continua escondido a exploração do trabalho pelo capital e são
raros os indivíduos que passam por esta experiência e percebem que
estruturalmente ela é pensada para retirar valor de todos e repassar a um ou
dois. Quase ninguém se percebe proletário explorado. A culpa é sempre do
“governo” ou do “ambiente econômico não propício ao capitalismo”.
Diante do flagrante insucesso, o explorado só tem o caminho de aceitar-se
incapaz ou ver no mundo todo uma grande “conspiração comunista” que não permite
o capitalismo – e ele mesmo explorado – crescerem e se desenvolverem.
A mesma lógica atinge os “aplicativos” hoje. O Uber é uma imensa Amway, sem cara
e mais rápida. Não importa as diferenças de custo do trabalho, o indivíduo é
incentivado a se explorar por dez, doze horas ou mais para ganhar um mínimo
suficiente para meramente pagar suas contas e sua comida. É o sonho do custo do
trabalho igual somente ao custo de reprodução física dos indivíduos. Os lucros
seguem para cima da pirâmide. Cada motorista de Uber não se vê um “proletário”,
mas “um patrão de si mesmo” porque lhe parece que pode fazer seus horários e tem
sua “liberdade”. A realidade é que o aplicativo – um entre tantos modelos de
acumulação semelhante – lucra com a sazonalidade e o desespero dos
trabalhadores. Usa de oferta de trabalho amador para baixar o valor da hora
trabalhada (estudantes, por exemplo, oferecem-se no Uber para “ganhar um extra”
apenas) e geram uma super-exploração em níveis internacionais, em rede e
ininterrupta pois os custos do negócio correm quase na totalidade por conta do
trabalhador (gasolina, manutenção, pintura, pneus e etc.)
A categoria dos caminhoneiros vive exatamente a mesma lógica, ainda que em menor
escala. Donos das carretas, “pequenos empresários”, se jogam nas estradas por 24
horas sem parar para fazerem pouco mais de quatro mil reais por mês. Rejeitam
sindicatos porque se acharem “pequenos empreendedores”, odeiam “comunistas” e
adoram “coachs” de superação. Mantém-se dentro de uma esfera ideológica que
simplesmente não consegue reconhecer seus inimigos ou quem, efetivamente, ganha
com seu trabalho. O aumento da gasolina é culpa do “governo”, “dos impostos”,
dos “sindicalistas” e dos “políticos”. Não dos investidores privados da
Petrobrás que fizeram 113 aumentos em seis meses. A culpa não é dos movimentos
internacionais de aumento e rebaixamento do preço do petróleo como arma
geopolítica.
Estes proletários que se super-exploram foram ensinados que este é o “correto”.
A forma justa de sobrevivência num mundo cão em que “vence” o mais forte. Eles
não receberam ferramentas cognitivas para compreender que a exploração que fazem
de si para pagarem os aplicativos, os empresários de transportes e todos os
outros intermediários é parte do sistema. Se matarem os “corruptos”, outros
“empresários” tomarão o lugar. Revigorando a exploração. Porque é dela que o
sistema vive. Com ou sem corrupção. Com ou sem “imposto”. Com ou sem “estado”.
Destas entidades a única que realmente não existe é o “livre mercado”. Não
existia nem no tempo de Adam Smith e, como Lênin mostrou, não existia no século
XX e nem no XXI.
O patrão de si mesmo só o é para com o chicote. Feitor de si, estes explorados
que não se reconhecem obrigam-se a um regime de trabalho ultrajante sem
compensação enquanto se convencem de que não enriquecem por uma conspiração
comunista no mundo. Nem na ficção científica poderíamos ter imaginado tamanha
alienação.

JORNAL GGN
https://jornalggn.com.br/blog/fernando-horta/o-capitalismo-da-super-auto-exploracao-por-fernando-horta
28/5/2018

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