quarta-feira, 30 de maio de 2018

Neofascismo e decadência: o planeta burguês à deriva


Jorge Beinstein



Conceitos nebulosos. Decadência e neofascismo são dois conceitos de difícil
definição ainda que essenciais para entender a realidade atual, suas presenças
esmagadoras, suas fronteiras imprecisas os tornam às vezes “invisíveis aos
olhos” (como o ensinou Saint-Exupéry).
Onde termina o autoritarismo burguês e começa o neofascismo? Como diferenciar um
processo de decadência de uma grande turbulência muito presente ou de um
fenómeno de corrupção social muito extenso?
Quando falamos de decadência, no geral nos referimos a processos prolongados
onde convergem um conjunto de indicadores como a redução sistemática do ritmo de
crescimento económico até chegar ao estancamento ou a retração, o declínio
demográfico, a degradação institucional, a hegemonia do parasitismo, a
desintegração social generalizada e outros. No entanto, às vezes é inevitável
assinalar a decadência de uma civilização ou de um conjunto de nações sem que se
façam presentes todos esses sinais, o que decide a questão é a evidência de um
processo duradouro de decomposição sistêmica, de desordem crescente, de entropia
que se manifesta no comportamento das classes dirigentes corroídas pelo
parasitismo, mas também das classes subordinadas.
É comum confundir decadência com crise prolongada, assim é como a chamada “longa
crise do século XVII europeu” aparenta com sua desordem, suas confrontações,
levar essa região ao desastre. No entanto, dito processo permitiu eliminar
restos pré-capitalistas, digerir as riquezas acumuladas do saqueio periférico
iniciado nos séculos XV e XVI, principalmente da América, e avançar no século
XVIII para seu aburguesamento geral cujas três expressões mais notáveis foram a
Revolução Industrial na Inglaterra, as transformações no continente desatadas
pela Revolução Francesa, seguida pelas guerras napoleônicas, e o controle do
planeta por parte do Ocidente completado em fins do século XIX.
Em um sentido contrário, o que se apresenta como superação da decadência (o
adeus à crise dos anos 1930) entre o fim da Segunda Guerra Mundial e começos dos
anos 1970, onde emergiu a superpotência estadunidense e se produziram os
“milagres econômicos” da Alemanha Ocidental, Itália, etc., na realidade não foi
mais que uma reabilitação de um pouco mais de duas décadas sustentada pelas
muletas do keynesianismo militar dos Estados Unidos e da intervenção estatal em
geral, dinamizando a oferta e a demanda dos países capitalistas centrais. Foi se
esgotando para o fim dos anos 1960 até fazer crise na década seguinte, passe
livre ao parasitismo financeiro e seus acompanhantes culturais, institucionais e
econômicos. A droga keynesiana acalmou as dores, forneceu um dinamismo
passageiro, porém inoculou venenos que terminaram por agravar mais adiante a
situação do enfermo.
De sua parte, o neofascismo aparece emparentado com o fascismo clássico
geralmente e, em certos casos, reproduz nostalgias do passado. No entanto, se
diferencia do mesmo. Às vezes ressuscita velhos demônios que se misturam em uma
marcha confusa (se a observamos desde antes de 1945) com descendentes de suas
vítimas sob a bandeira comum do racismo anti-árabe, das islamofobia ou da
russofobia. Afinal, o velho fascismo também nasceu cultivando incoerências,
mesclando bandeiras contrapostas, como o elitismo nacionalista-imperialista e
socialismo. Hitler e seu “nacional-socialismo” racista e ultra-autoritário
constitui o caso mais grotesco.
Em ambos casos, se trata de expressões que colhem pragmaticamente sentimentos de
ódio e desprezo para com os povos ou setores sociais considerados inferiores,
corruptos, bárbaros e, em consequência, potenciais objetos de agressão
(esmagamento dos mais fracos), adornando-as com títulos de nobreza (raça
superior, patriotismo, civilização, valores morais, democracia, honestidade,
etc.).
Quando observamos o velho fascismo, vemos como Hitler ou Mussolini em suas
ascensões ao poder faziam demagogia “social” ou “socialista”, captando o
espírito da época e a introduziam junto a outros condimentos em suas sopas
ditatoriais, ainda que Franco afirmasse o conservadorismo mais negro sem
necessidade dessas demagogias. E na América Latina apareciam ditaduras
militares, apêndices de subdesenvolvimento do Ocidente, cultivando ambiguidades
curiosas, como na Argentina no golpe de estado de 1930, onde se combinava o
patriotismo aristocrático, a admiração ao fascismo italiano e a submissão
colonial ao Império Inglês.
O neofascismo não fica atrás e hoje na Europa constatamos que em países como
Polônia ou Letônia se mesclam o ultranacionalismo, o antissemitismo e outras
manifestações nazista, o respeito formal à institucionalidade democrática made
in União Europeia, o neoliberalismo econômico, a fobia antirrussa e a submissão
à OTAN. No Brasil, Paraguai, Honduras ou Argentina é preservada a formalidade
democrática, bandeira cultural de seu amo imperial, junto à concentração mafiosa
do poder. Tanto no fascismo como no neofascismo os discursos oficiais não têm
sido outra coisa que que vestimentas de ocasião do lobo autoritário.
O começo da decadência
A crise na qual estamos submersos deveria ser considerada como o capítulo atual
de um longo processo de decadência pensado como fenômeno de caráter planetário.
Quando começou? Ao fazer o percurso temporal para trás, encontramos anos
decisivos como 2008, quando estoura a bolha financeira e se inicia a série de
crescimentos econômicos anêmicos no Ocidente e vai se desacelerando a expansão
chinesa. O que inevitavelmente nos leva a 2001 e seus arredores, quando
convergem o fim do auge neoliberal dos 1990 (cheio de turbulências) com o
lançamento imperial de uma desesperada (e fracassada) fuga militarista para
adiante, apontando para a conquista do coração geopolítico da Eurásia e seus
tesouros energéticos.
Esse olhar nos impulsiona a continuar retrocedendo e chegar aos anos 1970,
quando emerge a crise petroleira e a estagflação, e se instala o declínio
tendencial da taxa de crescimento econômico global que se prolonga até a
atualidade, motorizada pelas potências econômicas tradicionais e suavizadas pela
ascensão chinesa. Sem esquecer o antecedente de 1968 (com epicentro nos sucessos
de Maio na França e suas extensões), terremoto político- cultural que quebra a
ilusão da nova prosperidade civilizacional do Ocidente.
Dita ilusão se apoiava na efêmera recuperação keynesiana da Europa Ocidental e
Estados Unidos, se a medirmos em tempos históricos, enfrentada com a constante
redução de sua área de dominação territorial planetária (ampliação do campo
socialista e do espaço pós-colonial).
Atravessamos essa festa geograficamente limitada, entramos na Segunda Guerra
Mundial e navegamos pelas recessões dos anos 1930, desembocando em 1929 para,
finalmente, nos determos em 1914, ano chave que marca o final da ascensão
irresistível do Ocidente desde seus fracassos nas Cruzadas do Leste (para o
Oriente Médio e para o espaço eslavo) e seus primeiros êxitos importantes no
Oeste, desde o século XV: a conquista completa da Península Ibérica e de
posições no Oeste da África e, sobretudo, do continente americano. Ofensiva
plurissecular que culmina ao longo do século XIX, devorando a quase totalidade
da periferia.
O dito megassaqueio gerou (e continua gerando) o que Malek qualificou como
“Superávit Histórico”, ou seja, “o superávit acumulado pela Europa e Estados
Unidos sob a forma de civilização ocidental baseada no saqueio da Ásia, África e
América Latina. Imensa acumulação de poder que constitui a fonte da iniciativa
histórica dos países do Oeste, desde o princípio dos descobrimentos marítimos,
passando pela explosão da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki, até nossos
dias” . Acumulação de riquezas que permitiu criar um grande mercado interno, sua
industrialização e o desenvolvimento de uma sucessão de revoluções científicas e
tecnológicas. O mundo do ano 1900 era decididamente ocidental por integração
burguesa de seu espaço original e por suas ampliações coloniais e semicoloniais.
Nesse momento, o “progresso”, ou seja, a marcha ascendente da civilização
burguesa (identificada com os padrões culturais do Ocidente) em escala
planetária, conseguiu impor a imagem de um processo irresistível de melhorias
sucessivas da condição humana, ditadas pela expansão do sistema ou por sua
possível “superação socialista” engendrada desde o interior do capitalismo
central industrializado. Assim foi como a geração bolchevique cultivou a
esperança de que a revolução que eles encabeçaram na periferia euroasiática
russa constituía o detonante da revolução proletária no Ocidente. Os dirigentes
da primeira grande insurreição exitosa da periferia acreditavam erroneamente ser
a avanço da chegada do pós-capitalismo socialista ocidental (e em consequência
mundial).
Como sabemos, a expansão do capitalismo liberal, que segundo as ideias
dominantes no começo do século XX irradiava o planeta para convertê-lo cedo ou
tarde em um universo próspero e livre (porém que, na realidade, desenvolvia o
centro e subdesenvolvia a periferia), foi interrompida por um massacre
espantoso, sem precedentes na história universal, chamado Primeira Guerra
Mundial. E também sabemos que a tão esperada revolução socialista no Ocidente,
impulsionada pela crise e pelo novo exemplo soviético, não chegou nunca e que o
que chegou ali foi o fascismo.
Raízes ocidentais do fascismo clássico
As interpretações tradicionais do velho fascismo europeu visam navegar entre as
que o atribuem a uma sorte de desvio moral das elites e, também, das massas
populares enganadas por elas, principal produto da Primeira Guerra Mundial ou
bem como resultado da radicalização de certas taras culturais gerada por formas
específicas, perversas, de desenvolvimento da modernidade em países como
Alemanha e Itália ou, também, como reação antiproletária da alta burguesia,
arrastando as classes médias. Neste último caso, o fascismo teria sido uma
emergência terrorista burguesa da luta de classes . Não faltaram, em certos
casos, algumas referências à história anterior que quase sempre ficam esmagadas
pelo peso confuso das desordens das primeiras décadas do século XX, que
produziram essa novidade surpreendente. Um marxista eminente daqueles tempos,
Karl Radek, afirmava em 1930, após das últimas eleições na Alemanha que marcavam
a ascensão dos nazistas: “Devemos constatar que sobre este partido que ocupa o
segundo lugar na política alemã, nem a literatura burguesa nem a socialista nada
disseram. É um partido sem história que se instala de improviso na vida política
da Alemanha, como uma ilha que emerge em meio ao mar sob o efeito de forças
vulcânicas” .
“Partido sem história”, segundo Radek. De acordo com o medievalista Karl Werner,
“Ninguém negou mais a história alemã que os ideólogos nazistas” . A Escola de
Frankfurt afirmou essa hipótese e Max Horkheimer assinalava, em 1943, que “O
fascismo em sua exaltação do passado se torna anti-histórico. As referências dos
nazistas à história só significam que os poderosos têm que mandar e que não há
com emancipar-se das leis eternas que guiam a história. Quando eles dizem
História, na realidade dizem o contrário: Mitologia”.
Inclusive em pleno auge hitleriano, Hermann Rauschning, um dos mais agudos
avaliadores do nazismo, não pode escapar a ideia do caráter absurdo, a-histórico
e efêmero do nazismo apresentado como um surpreendente estouro de niilismo.
Segundo Rauschning: “este fanatismo produzido e difundido é tão artificial e
inautêntico que todo esse gigantesco aparato poderia chegar a ser derrubado de
um dia para outro, a partir de algum acontecimento, sem deixar traço algum de
vida autônoma de alguma parte de seu mecanismo” .
Partido sem história, negador da história, substituindo a descrição científica
da história real pela mitologia, construção niilista efêmera, etc.
No entanto, a propósito do caso paradigmático por excelência do fascismo – o
nazismo alemão e sua fúria exterminadora de judeus –, autores como Goldhagen, ao
levantar uma questão se sentido comum, quem foram os executores do Holocausto?,
conclui que: “por não ter existido uma considerável inclinação entre os alemães
comuns a tolerar, apoiar e inclusive, em muitos casos, contribuir primeiro à
perseguição absolutamente radical dos judeus na década de 1930 e, depois (pelo
menos entre os encarregados de realizar a tarefa), de participar na matança de
judeus, o regime jamais teria podido exterminar seis milhões de pessoas”, ao que
acrescenta: “cabe assinalar que a existência de um antissemitismo muito
difundido em outras zonas da Europa explica porque os alemães encontraram em
outros países tantas pessoas dispostas a ajudar e desejosas de matar judeus” . A
partir daí, torna inevitável, como faz o autor, buscar referências na tradição
histórica do povo alemão e assinalar, por exemplo, a ferocidade antissemita de
Martinho Lutero (1483-1546) como uma das fontes de sua popularidade. Ao que
devemos agregar o plurissecular desprezo para com os eslavos, com especial
ênfase em russos e polacos, considerados povos inferiores destinados a ser
escravizados por povos superiores como os alemães, o que legitimava a vocação
para marchar para o Leste, para sua conquista imperial, como antecipava Hitler
muito antes de chegar ao poder. A “Drang nach Osten” (impulso ou expansão para o
Leste) que no século XIX incentivavam intelectuais nacionalistas como Heinrich
von Sybel, que postulava reviver as aventuras medievais de colonização alemã do
Europa oriental, revalorizando os mitos das cruzadas germânicas e escandinavas
para o Leste na Baixa Idade Média, paralelas às cruzadas para o Oriente Médio.
Assim foi como a Ordem Teutônica tentou conquistar a terra russa e foi
derrotada, como o relata o filme “Alexander Nevsky”, de Sergei Eisenstein,
antecipando em 1938 a derrota catastrófica que os herdeiros nazistas da Ordem
sofreriam na URSS poucos anos depois. Tudo isto nos leva a entender a aparente
loucura de Hitler em conquistar o Leste não como uma cegueira insólita, mas como
herança cultural profunda, latente na subjetividade popular alemã. Como assinala
acertadamente Ayçoberry em seu livro já citado: “No desenvolvimento da política
exterior (de Hitler) tudo estava subordinado à expansão para o Leste... o que
impôs abandonos táticos inquietantes para os nacionalistas primários: renúncia
ao Tirol para conseguir a aliança com a Itália, à expansão ultramarina para
seduzir a Inglaterra e, inclusive, a conquistas na França já que, segundo
Hitler, a guerra contra dita nação ‘só se justificaria se dessa maneira
conseguirmos cobrir nossa retaguarda e, assim, ampliar nosso espaço vital no
Leste’, cujo foco central era a captura e destruição da União Soviética” .
A mitologia, subestimada por Horkheimer, revelava a existência de uma memória
histórica imperialista nada superficial.
Necessitamos ampliar o espaço da memória europeia e colocar a descoberto um
passado monstruoso de conquistas coloniais exitosas ou fracassadas, das
gigantescas matanças dos povos originários da América, de africanos árabes ou
subsaarianos, de asiáticos da Índia e China, em suma, de vastos genocídios
periféricos que moldaram a cultura de seus assassinos ocidentais. Malek menciona
o “superávit histórico”, principalmente econômico, que acumulou o Ocidente com
ditos saqueios, que não deveria ocultar o componente criminoso do mesmo, não
como lembrança distante, mas como parte decisiva da reprodução de uma
civilização sanguinária. Matança de periféricos combinada com grandes massacres
e saqueios interno, como explicou Marx em sua descrição da Acumulação Primitiva.
Nesse sentido, Hitler, Mussolini ou Franco não foram os produtos de irrupções
momentâneas sem passado nem futuro.
Os mitos históricos não deveriam ser atirados à lixeira das histórias falsas,
sobretudo se aparecem na superfície ou ficam submersas na memória social para
reaparecer no momento menos pensado. São formas concretas de memória, latentes,
em consequência, componentes da cultura popular. Podem ser criticadas, acusadas
de ser visões deformadas ou “irreais” do passado como também o poderiam ser
certas construções de história “científica”, baseadas em uns pobres atos
disponíveis ou não tão pobres, porém sempre incompletos, quase sempre
distorcidos pelo observador influído pela cultura (as deformações ideológicas)
de seu tempo.
Uma observação que merece ser o objeto de uma reflexão mais ampla é que a
chegada do fascismo (sua primeira vitória na Itália) se produziu muito pouco
tempo depois do Ocidente se converter em amo do mundo, visto do longo prazo
histórico, ambos fenômenos convergem em um curto espaço temporal. A civilização
burguesa torna-se realmente universal, planetária, começou a tocar seus limites
territoriais e foi deixando de lado seus discursos democráticos (se quebra a
lógica da expansão para espaços indefesos e ganham força as do canibalismo
interimperialista, do disciplinamento terrorista interno e do expansionismo
desesperado).
Mais ainda, é possível detectar na Europa embriões significativos de fascismo
entre fins do século XIX e começos do XX, bem antes da megacrise iniciada em
1914, desde as emergências políticas protofascistas na França até manifestações
ideológicas virulentas de repúdio ao legado da Revolução Francesa, a Comuna de
Paris e a proliferação de expressões democráticas radicais, socialistas e
comunistas. Nietzsche ou Sorel anunciaram o fascismo avant la lettre, como
restabelecimento de hierarquias sociais vigorosas, de autoritarismos
rejuvenescedores do Ocidente.
Na Europa de fins do século XIX, próspera e imperialista, onde no topo de seu
sistema de poder reinava uma pequena elite financeira (a Haute Finance
assinalada por Polanyi como garantidora do equilíbrio e da paz interior ),
emergiam as origens do que será o fim do capitalismo liberal e o nascimento do
fascismo.
Inclusive fora do cenário europeu nos 1920 e ainda antes de 1914, nos Estados
Unidos (extensão neo-europeia), apareceram o que alguns autores assinalam como
as origens norte-americanas da ideologia nazista. Domenico Losurdo assinala “o
notável papel que os movimentos reacionários e racistas americanos desenvolveram
ao inspirar e alimentar na Alemanha a agitação que ao final desembocou no
triunfo de Hitler. Já os anos 20, entre a Ku Klux Klan e os círculos alemães de
extrema direita, se estabeleceram relações de intercâmbio e colaboração com a
consigna do racismo contra os negros e contra os judeus”. Losurdo acrescenta
exemplos concretos inclusive alguns referentes às raízes linguísticas de
conceitos fundamentais do discurso nazista: “O termo Untermensch, que desempenha
um papel tão central como nefasto na teoria e na prática do Terceiro Reich, não
é outro a tradução de Under Man [sub-homem]. O reconhece Alfred Rosenberg, um
dos principais ideólogos do nazismo, que expressa sua admiração pelo autor
estadunidense Lothrop Stoddard: a ele corresponde o mérito de ter cunhado pela
primeira vez o termo em questão, que ressaltar como subtítulo (The Menace of the
Under Man) [A ameaça do sub-homem] de um livro publicado em Nova York, em 1922,
e de sua versão alemã (Die Drohung des Untermenschen) aparecia três anos depois.
Quanto ao seu significado, Stoddard esclarece que este serve para mostrar ao
conjunto de “selvagens e bárbaros”, “essencialmente negados à civilização, seus
inimigos incorrigíveis”, com quem é necessário proceder a um radical ajuste de
contas, caso se queira evitar o perigo que ameaça destruir a civilização.
Elogiado, muito antes que por Rosenberg, por dois presidentes estadunidenses
(Harding e Hoover), o autor americano é posteriormente recebido com todas as
honras em Berlim, onde encontra os exponentes mais ilustres da eugenia nazista,
além dos mais altos hierarcas do regime, inclusive Adolf Hitler, que estava
empenhado em sua campanha de aniquilação e escravidão dos Untermenschen, ou seja
dos “índios” da Europa Oriental” .
Não se trata apenas da influência da teoria estadunidense da “white supremacy”,
reação protofascista de fins do século XIX contra a abolição da escravidão,
expressa na Alemanha como supremacia ariana, mas também de textos decisivos como
“O Judeu Internacional”, de Henry Ford, publicado em 1920, depois traduzido e
muito difundido na Alemanha, onde importantes chefes nazistas como Von Schirack
e Himmler assinalarão, anos depois, terem se inspirado nesse livro. Himmler fez
notar que o livro de Ford cumpriu um papel significativo na formação de Hitler .
Ascensão, auge, declínio e recomposição da maré periférica
A irrupção do fascismo clássico, porém também sua derrota e renascimento como
neofascismo, deve ser relacionado com a ascensão e posterior declínio de uma
maré periférica que ameaçou sepultar a hegemonia ocidental, fato decisivo do
século XX. Porém, que agora se apresenta principalmente sob a forma de potências
emergentes, despertando a histeria geopolítica dos Estados Unidos e uma profunda
crise existencial em alguns dos principais países europeus como Alemanha, França
ou Itália, arrastados, de um lado, por seu amo norte-americano e seus velhos
instintos ocidentalistas imperiais (que o fazem ver o Leste como um espaço de
depredação) e, pelo outro, por seus interesses econômicos concretos que apontam
para algum tipo de associação ou amizade com as grandes economias euroasiáticas
começando pela China e Rússia.
Em 1914, a expansão ocidental se converteu em guerra intestina
(interimperialista) e, em 1917, se produziu o primeiro mega desengajamento, o
maior espaço geográfico do planeta onde habitava o Império Russo, rompeu com o
Ocidente convertendo-se em União Soviética. Mais adiante chegaram a cisão
chinesa (1949), as expulsões do conquistador ocidental na península da
Indochina, a revolução cubana e um amplo leque de nacionalismos periféricos, que
quebraram os velhos laços coloniais. Era possível mostrar uma sorte de filme
onde o espaço de dominação global do Ocidente se retraía gradualmente.
A ilusão marxista-eurocêntrica de superação pós-capitalista a partir do centro
imperial (desenvolvido) do mundo foi substituída por outra ilusão não menos
pretenciosas, segundo a qual dita superação se expandia a partir da periferia
subdesenvolvida, desde os capitalismos ou semicapitalismos submetidos. No
entanto, quando nos anos 1970 e 1980 começou e foi se agravando a crise do
capitalismo central, quando perdia dinamismo produtivo e em seu seio se
propagava o parasitismo financeiro, a ameaça comunista e anti-imperialista
também foi perdendo dinamismo. A radicalização maoísta da revolução chinesa
começou a converter-se, desde fins dos anos 1970, em “socialismo de mercado” e
daí um curioso capitalismo burocrático com o partido comunista encabeçando,
fazendo da China no século XXI a segunda potência do mundo tendendo a se
transformar em primeira. A URSS foi apodrecendo e colapsou no início dos anos
1990, arrastando todo seu espaço “socialista”, inclusive países que tinham
mantido autonomia, como Albânia e Iugoslávia.
Sobretudo a partir do fim da URSS, porém com manifestações anteriores, até fins
do século XX, em boa parte da Europa emergia uma onda reacionária que retomava
componentes do velho fascismo incorporando elementos novos. Racismo contra os
imigrantes, ódios interétnicos, recuperação mais ou menos sinuosa, mais ou menos
desavergonhada de bandeiras enterradas em 1945. Tratou-se de um processo confuso
que levava em consideração os novos tempos globais e que deu seus primeiros
passos antes da derrubada soviética. Na França de 1981, por exemplo, a esquerda
ganhava as eleições, porém se estavam na moda os chamados “novos filósofos” como
Bernard Henri Levy ou André Glucksmann, que se apresentavam como supostos
“humanistas anti-stalinistas”, rapidamente se converteram em um anticomunismo
raivoso, convergindo em muitos aspectos com a direita neofascista.
Aparentemente, a França girava politicamente para a esquerda (depois se
comprovou que se tratava de uma pura aparência), enquanto se deslocava
culturalmente para a direita. A socialdemocracia, da Espanha até a Alemanha, ia
abandonando seus modelos keynesianos, produtivistas e integradores, e penetrava
no universo neoliberal governado pela especulação financeira. As chamadas
direitas “democrática” faziam algo parecido e, gradualmente, se estendia uma
mancha pestilenta que começava a ser qualificada como neonazismo, neofascismo,
extrema direita, nova direita, etc. Na Europa Oriental, em lugares como a
Polônia, países bálticos, Croácia ou mais recentemente na Ucrânia, reapareceram
os velhos fantasmas do fascismo. Já em pleno século XXI, na Alemanha, Áustria,
França e outros países europeus, os neofascistas obtém grandes progressos
eleitorais, em vários deles associando estilos e tradições do passado hitlerista
com sólidas amizades sionistas. A nova islamofobia substitui (e às vezes se
mescla com) a velha judeofobia e até se produziram casos tragicómicos, onde em
um mesmo movimento, se apertavam alguns veteranos (e inclusive jovens)
admiradores de Hitler e Mussolini... e de Benjamin Netanyahu. Também aflorava
neste europeu, e não apenas na Ucrânia (Guerra Fria 2.0 mediante), o revanchismo
antirrusso disposto a vingar-se da derrota sofrida sete décadas atrás.
Nos Estados Unidos, sobretudo desde 2001, emergiu uma onda ultraimperialista que
foi se desenvolvendo através dos governos de Bush e Obama até desembocar em
Trump, ao ritmo da degradação financeira. Multiplicação de intervenções
militares diretas e indiretas, golpes brandos e sanções contra países rebeldes à
dominação imperial, racismo, islamofobia, confronto com a Rússia se aproximando
ao limite da guerra... a era Trump foi assumindo todas as características de um
protofascismo.
Regressando à ascensão e derrota do velho fascismo, é necessário ressaltar não
só a persistência imperialista alemã em torno da “marcha para o Leste”, motor do
expansionismo hitleriano, mas os delírios mussolinianos acerca da restauração do
império romano ou o espanholismo não menos delirante de José Antonio Primo de
Rivera, nostálgico do império espanhol desaparecido. A tentativa de conquista da
União Soviética tomou a forma de uma grande cruzada europeia contra o gigante
euroasiático, onde participaram não apenas alemães, mas também franceses,
espanhóis, italianos, belgas, ucranianos ocidentais, letões, etc. O aspecto
imperialista-ocidental do fascismo clássico e em consequência dos fascismos
periféricos como satélites coloniais, seguidores elitistas de seus amos
históricos, fica ao descoberto.
Nesse sentido, para além dos debates acerca da natureza socialista da URSS, de
sua legitimidade comunista e de seu lugar na história das ideias e práticas
pós-capitalistas, é importante destacar que provavelmente, visto a nível da
história universal, o maior mérito da experiência soviética foi o da destruição
da barbárie fascista, inscrita no multissecular percurso de saqueios e
genocídios ocidentais. Esse fato por si só é suficiente para justificar,
reivindicar sua existência. Sem a URSS, Hitler teria conquistado esses
territórios, a exitosa marcha para o Leste teria outorgado à Alemanha a
liderança da Europa e certamente a primazia global como cabeça de um novo
império.
A captura de Berlim pelo exército soviético poderia ser vista como o símbolo da
vitória da humanidade condenada à escravidão, a periferia, o “Oriente” tantas
vezes estigmatizado. Oriente desprezado (e temido) cujos prolongamentos se
estendiam para as periferias interiores do centro do mundo (os judeus e os
ciganos europeus e demais grupos locais considerados inferiores, perigosos,
indesejáveis).
Os ciclos fascista e neofascista aparecem como etapas da longa decadência
sistêmica global, tentativas brutais de salvação, de recuperação da vitalidade
perdida. Derrotada a primeira arremetida reacionária (1945), as formas
autoritárias extremas do capitalismo realizaram uma prudente retirada
estratégica, porém coincidente com a evaporação da maré periférica nos anos 1980
e começos dos 1990, a peste começou a se recompor, renovando discursos e
técnicas de intervenção. Tratou-se de uma transformação conforme os novos
tempos, onde o fenômeno entrópico está experimentando um gigantesco salto para
frente. No passado, o retrocesso do polo hegemônico ocidental (do espaço
territorial sob seu controle, de sua dominação financeira, tecnológica, etc.)
capturou, arrastou para o fracasso ensaios de autonomização capitalista ou com
pretensões pós-capitalistas. O caso do Japão entre a restauração Meiji e
Hiroshima mostrou os limites da criação de uma potência capitalista
(imperialista) independente respeito da trama de dominação ocidental. O caso da
URSS expressou a debilidade de uma construção pós-capitalista híbrida,
geopoliticamente antagônica ao Ocidente, mesclando entre outras coisas
estatismo, aspirações comunistas e modernização negadora de heranças culturais
coletivistas repudiadas como pré-capitalistas. Tampouco devemos esquecer neste
caso as consequências da cruzada nazista que custou 27 milhões de mortos e o
posterior acosso político-militar sofrido durante a Guerra Fria, formas
concretas de exercício do poder do Ocidente, prisioneiro de sua dinâmica
expansionista, estrategicamente incompatível com algum tipo de coexistência
medianamente durável (essa obsessão ocidental por controlar tudo que se
expressou no passado como anticomunismo renasce atualmente como russofobia).
Agora, quando se aprofunda o declínio ocidental, emergem novos desafios
periféricos, principalmente os da China e Rússia. Em ambos casos e depois de
diferentes percursos, se constituíram sistemas que de maneira muito geral podem
ser caracterizados como capitalismos burocráticos, com amplas margens de
autonomia a respeito do Ocidente e arrastando o peso de suas perspectivas
heranças culturais socialistas. Com um bem orquestrado giro para o capitalismo
insertado na trama global, porém preservando o governo do Partido Comunista no
caso chinês, demolindo primeiro o edifício soviético para depois de uma efêmera
tentativa de instauração neoliberal, impor controles estatais sobre a economia
no caso russo .
Em princípio, ficam abertos dois cenários entre outros, se partirmos do
pressuposto de que a crise global vai se agravar. O primeiro, mostra a China e a
Rússia arrastadas pelo desastre geral, suas estruturas exportadoras dependentes
dos mercados da Europa e Estados Unidos, a trama financeira internacional da
qual constituem e as exigências de militarização derivadas da agressividade dos
países da OTAN, as atariam à degradação euro-norte-americana-global.
O segundo cenário apresenta estas potências sobrevivendo ao desastre, afirmando
seu espaço euroasiático. Uma das variantes (atenção, não a única) desse futuro
possível seria a introdução em suas sociedades de componentes defensivos
pós-capitalistas, para o que dispõem de reservas culturais mais que suficientes.
Aprofundamento da decadência
A vocação planetária-imperialista do capitalismo (de seu motor ocidental) nos
permite estabelecer paralelos com ciclos de civilizações anteriores que não
alcançaram essa dimensão geográfica. Impérios condenados a expandir-se de acordo
com as leis que regeram sua reprodução, ampliando seu espaço de dominação até
chegar ao limite estabelecido pelas técnicas de sua época. Nesse momento, sua
lógica de reprodução ampliada chocava com a barreira territorial, então o
desenvolvimento vigoroso ia se transformando em decadência, as virtudes em
corrupção, os equilíbrios em desordem, a exploração eficaz de povos e recursos
naturais em superexploração devastadora da periferia que destruía a
sustentabilidade do sistema, enquanto a multiplicação de controles
administrativos-repressivos, entre outros fatores, contribuía com o crescimento
do parasitismo.
A comparação com o caso de Roma é inevitável, é o melhor documentado. Pierre
Chaunu nos explica que “a conquista se desenvolveu mediante a expansão em
círculos concêntricos realizando a extração de homens e produtos da periferia
para o centro. O característico de dito sistema é que excluía o estado
estacionário, não podia subsistir sem agregar novas zonas de extração às
existentes chegando, finalmente, depois de um enriquecimento incessante, à
degradação do centro já que não podia viver dentro de limites estáveis, sem a
existência em suas fronteiras de um espaço aberto explorável, de uma “fronteira
aberta”, de uma zona de extração não integrada. O ponto de inflexão ocorreu sob
o reino de Trajano, em começos do século II quando se alcançou o limite da
expansão em Dacia, Escócia, Armênia... o norte da África de Mauritânia ao
Egito... quando a conquista romana tinha chegado a um pouco mais de 6 milhões de
quilômetros quadrados, tendo absorvido a totalidade do espaço disponível
possível” . As técnicas de comunicação e transporte da época permitiram chegar
ao máximo de território para além do qual os custos de conquista e sua
preservação superavam os benefícios, o que obrigou o processo de reprodução do
polo dominante a superexplorar o espaço sob controle. Os equilíbrios e consensos
periféricos entraram em crise, as bases tributárias e escravistas foram
tensionadas para além do tolerável. Engels assinalava que quando o Império
começou a declinar: “o estado romano tinha se convertido em uma máquina
gigantesca e complicada com o exclusivo fim de explorar os súditos. Impostos,
tributos e confiscos de toda classe, afundavam a massa da população em uma
pobreza cada vez mais miserável, pelas exações dos governantes, dos
arrecadadores, dos soldados... (em consequência) os bárbaros contra os quais
pretendiam proteger os cidadãos eram esperados por estes como salvadores” .
Junto a isso, Roma e as outras grandes cidades do Império invadidas pelo
parasitismo foram se convertendo como explica Chaunu em “cidades cancerosas,
gulosas, insaciáveis, de crescimento anárquico, destruidoras do tecido
ambiental, que se expandem para além das condições que as fizeram nascer e
desenvolver-se” . Dito de outra maneira, a cidade ordenadora foi submergindo na
desordem, a eficácia urbana (a cidade como mecanismo de controle e exploração de
sua periferia) foi derivando em ineficácia parasitária, o que desordenava o
sistema em seu conjunto, o que exigia expandir, tornar mais complexas as
estruturas de controle, aumentando assim sua ineficácia geral, etc., etc., o
círculo vicioso da decadência se expandiu de maneira irresistível.
Ao passarmos ao mundo moderno, observamos como, segundo o assinala Fieldhouse,
“a proporção da superfície terrestre ocupada de fato pelos europeus, já sob
controle europeu direto como colônias, já como antigas colônias, era de 35% em
1800, de 67% em 1878 e de 84,4% em 1914. Entre 1800 e 1878, a média da expansão
imperialista foi de 560 mil km2 ao ano” . O que a partir de fins do século XV se
tinha estendido em zonas costeiras da América, África e Ásia, somado a espaços
territoriais mais vastos, se converteu em uma investida avassaladora no século
XIX. Grandes espaços interiores desses continentes foram ocupados e começaram a
ser explorados. Em alguns casos, submetendo as populações originárias,
destruindo suas culturas e, em outros, exterminando-as. A tudo isso se denominou
progresso, vitória da civilização, etapa inevitável do desenvolvimento das
forças produtivas do capitalismo amalgamando, assim, as imagens de mudança
positiva e do genocídio, do bem como objetivo superior junto ao crime como dano
de menor importância histórica. As vítimas apareciam como seres inferiores
(sub-homens, Untermenschen) destinados a ser civilizados (superexplorados) ou
exterminados, dualidade cultural que antecipava o duplo discurso nazista, sua
dupla imagem: a bela estética do desfile das juventudes arianas junto à estética
sinistra dos campos de concentração. O capitalismo ascendente do século XIX,
desde sua base europeia, que se autorreferenciava como civilização portadora da
história universal, do maravilhoso destino do mundo, completava a tarefa
iniciada vários séculos atrás.
O processo de ocupação quase total do planeta, do espaço territorial possível
coincidiu com o que Polanyi chamou “a paz de cem anos” (entre o fim das guerras
napoleônicas, em 1815, e o começo da Primeira Guerra Mundial, em 1914) ao
interior do espaço europeu só turvado por pequenos conflitos ou de muito curta
duração . O fim vitorioso do expansionismo europeu, entre fins do século XX,
convergiu com o começo de uma super crise, com uma guerra intestina que marcou
para 1914 o começo da decadência.
A partir daí, ocorreram no espaço ocidental recessões, hiperinflações, a guerra
civil espanhola, as ascensões fascistas, a Segunda Guerra Mundial e a derrota do
fascismo, a prosperidade ocidental e do Japão durante algo menos de três décadas
até chegar à crise dos anos 1970, com a crise energética e a estagflação. No
entanto, desde 1917, o espaço de dominação territorial do ocidente foi se
retraindo ao mesmo tempo que a guerra fria, a militarização e a saturação da
onda consumista geravam em seu seio as condições para a emergência da
hipertrofia financeira como centro de uma expansão parasitária sem precedentes.
É possível argumentar que a etapa colonial extensiva sentou as bases para uma
posterior exploração mais intensiva do conquistado e que as turbulências do
século XX permitiram digerir o conquistado, atravessando um percurso complexo
que incluiu grandes perdas territoriais. Porém, ao final desse século, a URSS e
sua área de influência tinham desaparecido, dando lugar a grandes reconversões
capitalistas e a China tinha ingressado ao sistema global do capitalismo,
contribuindo, entre outras coisas, com cerca de 230 milhões de trabalhadores
industriais baratos. No entanto, essa incorporação não permitiu superar a
decadência ocidental. Certamente a agravou. Tanto os Estados Unidos como a
Europa e o Japão sobreviveram ao ritmo de bolhas financeiras para, finalmente,
depois de 2008, ingressar em uma etapa de crescimentos anêmicos, deteriorações
institucionais e degradações de vastos setores sociais, onde as burguesias
dominantes tornaram-se lumpemburguesias e onde o aparato militar do amo
estadunidense (Guerra de Quarta Geração) se converteu em um parasita cada vez
mais sofisticado do ponto de vista tecnológico e cada vez mais custoso e
ineficaz, em que o mercenário vai substituindo o cidadão-soldado (notável
paralelo com a decadência romana).
Debaixo da chamada recuperação territorial do capitalismo, se reproduz
agravando-se a degradação geral do sistema. Tendências pesadas,
sobredeterminantes, impõem o declínio.
Uma delas é o declínio tendencial plurissecular da taxa de lucro, que foi se
manifestando ao longo do século XX para chegar mais recentemente a uma sorte de
piso provisório muito baixo, provavelmente este anunciando uma futura queda
catastrófica (numerosos indicadores financeiros, energéticos, laborais, de
demanda, etc. assim o indicam) o que confirma uma das hipóteses decisivas de
Marx.
Taxas baixas que impulsionam, ao mesmo tempo, o resfriamento nos investimentos
produtivos, a expansão dos negócios financeiros parasitando sobre a atividade
econômica geral e o declínio tendencial da taxa de crescimento da economia
global. Personagens chaves do establishment como Larry Summers vêm anunciando há
quase um lustro o ingresso a um prolongado período de estancamento com centro no
declínio da economia dos Estados Unidos.
A decadência promove o parasitismo que, por sua vez, exacerba a decadência. Já
ingressamos na etapa em que o parasitismo financeiro decai porque sua vítima
produtiva se aproxima do estancamento. Em fins de 2013, os negócios globais com
produtos financeiros derivados, representavam 9,3 vezes o Produto Bruto Global.
Em fins de 2015, tinha caído 6,6 vezes, mantendo-se aproximadamente nesse nível
até a atualidade . A contração não apazigua o parasita. Pelo contrário, exacerba
suas piores inclinações: o canibalismo financeiro, as operações mafiosas, os
golpes de mão, os saqueios, as aventuras delirantes vão cobrindo um clima de
negócios cada vez mais enrarecido. Não se trata de uma enfermidade limitada à
cúpula do sistema, mas abarcando a totalidade das sociedades chamadas de alto
desenvolvimento, onde se agrava a fragmentação social, se deterioram as
instituições, se estendem as irrupções neofascistas.
A tão publicizada globalização comercial, maravilha neoliberal que se expandia
quebrando tecidos sociais e acumulando desocupação e pobreza, chegou a seu
máximo em 2008, quando as exportações representavam 30,7% do Produto Bruto
Global (em 1963, chegavam a 11,7%). Então, deixou de crescer e iniciou o caminho
descendente.
Além disso, vai cumprindo outro dos prognósticos de Marx, o da polarização
crescente do sistema entre uma minoria cada vez menor e mais rica e uma massa
global, o proletariado e semiproletariado do século XXI, cada vez mais
paupérrima. Os anos da prosperidade keynesiana viram proliferar a ilusão do fim
do prognóstico marxista. Inclusive, ao começar o século XXI, organismos
internacionais e especialistas midiáticos anunciavam uma maré de novas classes
médias na periferia, que entre 2020-2030 alentaria um grande salto industrial
global apoiado no futuro consumismo. Porém, a chegada da crise de 2008 marcou o
fim dessa fantasia, a concentração global de rendas avança incontrolável não só
na periferia, mas também nos capitalismos centrais, e a miséria das massas se
estende.
Neofascismo
Assim como o fascismo clássico, o neofascismo significa a radicalização da
exploração de recursos humanos e naturais, ainda que o primeiro não tenha tido
aplicação a nível planetário e a capacidade tecnológica do segundo. Em ambos os
casos, trata-se de um grande salto qualitativo da dinâmica de
exploração-opressão do capitalismo triturando liberdades democráticas, garantias
sociais das classes baixas, identidades culturais, etc. Todavia, continuamos
impactados pelas atrocidades passadas do fascismo sem nos dar conta muitas vezes
da carga de barbárie, muito maior, da qual é portador o neofascismo. Os grandes
genocídios do século XX se ofuscam ante as consequências possíveis da devastação
neofascista em curso, protagonizada pelo Império e seus aliados.
É necessário aprofundar a análise do fenômeno, detectar suas principais
características. Algumas constatações podem nos servir para isso.
Primeira constatação: do quebra-cabeças ideológico fascista ao pensamento
confuso neofascista.
O velho fascismo não escondia seu nome e a mundialização do capitalismo sob a
forma de cultura ocidental . Segundo seus propagandistas, se estendeu de suas
bases europeias e apareceu como uma mistura de renovação vivificante da
modernidade e de restabelecimento da ordem conservadora e autoritária corrompida
pelo liberalismo e ameaçada de morte pelo comunismo. O repúdio à democracia
burguesa, desde sua forma monárquica constitucional até o elitismo republicano,
servia na Europa como cavalinho de batalha para desqualificar toda forma de
democracia. Desse modo, colhiam as críticas populares de esquerda ante a estafa
da democracia realizada pelas classes dominantes e as introduziam na mochila
autoritária.
Os fascismos italiano, alemão ou espanhol encontraram partidários nas elites
periféricas. Em 1936 nasceram as Falanges Libanesas, em 1937 aparecia a Falange
Socialista Boliviana, ambas formadas por admiradores do falangismo espanhol e do
fascismo mussoliniano. Nos anos 1930, governou El Salvador o ditador Martínez,
um general admirador de Hitler ainda que administrando um país economicamente
dependente dos Estados Unidos . Já assinalei a forte influência do fascismo
italiano no golpe militar de 1930 na Argentina, ao que é preciso acrescentar,
entre outras coisas, as relações amistosas (sobretudo na esfera militar) da
presidência do general Agustín P. Justo (entre 1932 e 1938) com a Alemanha e
Itália, e sob a influência do Grande Mufti de Jerusalém, se formou em 1941 a
Legião Árabe Livre como parte do exército alemão .
A partir de um pragmatismo muito audaz, o fascismo clássico conseguiu armar um
quebra-cabeças ideológico relativamente sólido, o fundou não só graças à
inescrupulosidade de seus dirigentes, mas também contando com ideólogos de peso,
como Oswald Spengler ou Martin Heidegger na Alemanha, ou Tommaso Marinetti e
Gabrielle d’Annunzio na Itália. Conseguiu situar em um espaço comum variantes
mais ou menos distanciadas das estruturas religiosas cristãs, católicas ou
protestantes, até outras ultracatólicas, como a espanhola.
O neofascismo é muito mais pragmático, não repudia a democracia burguesa, mas
tenta mimetizar-se nela, assumindo-a demagogicamente para colocá-la a serviço de
suas bandeiras racistas e autoritárias. O governo da Letônia, por exemplo, não
encontra incoerência em aderir aos postulados democrático-liberais da União
Europeia, da qual faz parte, com a realização do desfile anual em Riga dos
veteranos das Waffen SS, integrante do exército nazista alemão (tampouco a União
Europeia se alarma por esses fatos) . A russofobia, bem vista pela OTAN,
perseguição à população de língua russa, nostalgias nazistas e formalismo
democrático.
Tampouco na Polônia, também membro da União Europeia, parecem produzir-se graves
problemas ante a existência de um governo neofascista, a russofobia mais extrema
e a adesão às regras europeias em matéria de direitos humanos e
institucionalidade democrática. Na França, a Frente Nacional adapta suas origens
fascistas aos novos tempos, acentua sua xenofobia, sua agressividade
anti-islâmica, une laços com a extrema direitas dos Estados Unidos, porém busca
suavizar (maquiar com cores republicanas) sua imagem extremista a nível local .
Em todos esses casos, o antigo antissemitismo é colocado debaixo do tapete o
atirado à lixeira (enquanto se observa com simpatia a cruzada anti-islâmica de
Benjamin Netanyahu), a obsoleta demagogia “social” de Mussolini é substituída
pela das instituições democráticas.
Na América Latina, podemos encontrar similar acatamento formal às regras da
democracia representativa em regimes ditatoriais e protoditatoriais como em
Honduras, Brasil, Argentina, México ou Paraguai, em alguns casos apoiados na
histeria neofascista das classes médias. Em vários desses governos autoritários
se acotovelam velhos fascistas antissemitas com sionistas, resultado de curiosas
convergências de gerações diferentes. A amplitude neofascista não se detém nas
portas do império onde Donald Trump agrupa o racismo branco das classes baixas
(onde se nota um certo aspecto da Ku Klux Klan), persegue os imigrantes e
estreita sua amizade com a ultradireita governante em Israel. Tampouco o faz
quando se trata de realizar operações na periferia, promovendo, por exemplo, o
Estado Islâmico no Oriente Médio, visando destruir a Síria e encurralar o Irã.
Ainda que neste caso não devêssemos nos limitar ao aspecto conspirativo do tema,
pois a manobra se apoia em mercenários e, também, em forças sociais concretas da
região. A decadência ou desaparecimento dos velhos nacionalismos pós-coloniais
(nasserismo, kadafismo, nacionalismo argelino) em um contexto de agravamento da
crise, deu início à emergência de uma sorte de neofascismo islamista,
tradicionalista ao extremo em matéria religiosa (que como outros
tradicionalismos religiosos extremistas, deforma de maneira delirante a história
religiosa). Se estende assim, de maneira bizarra, o espaço neofascista global
que, entre outras coisas, não tem ideólogos de peso, não os necessita, nem
interessa tê-los. Seu projeto pragmático se corresponde a um grau muito maior de
degradação civilizacional que do fascismo clássico. Aqui já não existe
quebra-cabeças ideológico a ser organizado. A nova barbárie não busca enquadrar
ideologicamente populações, discipliná-las culturalmente, militalizá-las, mas
introduzi-las em uma sorte de dualidade caótica, com um polo dominante
saqueador, superexplorador, socialmente restringido e grandes massas humanas
marginalizadas. Heidegger está em voga, bem-vindos os manipuladores midiáticos,
os magos da pós-verdade injetada nas redes sociais, os exitosos do imediatismo
niilista.
Segunda constatação: do fascismo industrial ao neofascismo financeiro.
O fascismo emergiu das causas do capitalismo liberal europeu, em cujo topo se
encontrava a Haute Finance, assinalada por Polanyi como imperialista, ou seja,
como ensinava Lenin dominado pelo capital financeiro. No entanto, esse tipo de
dominação, para expressá-lo em termos gramscianos, não se converteu em
hegemonia. A cultura financeira não era a cultura da totalidade do mundo
burguês, seu controle era exercido sem que seu veneno ideológico tenha invadido
completamente o corpo produtivo onde predominava a indústria. A modernidade
ainda tinha alma industrial.
De maneira acertada, Jeffrey Herf caracteriza o nazismo como modernismo
reacionário, como aceitação e, inclusive, exacerbação das inovações tecnológicas
combinada com o repúdio ao legado da Revolução Francesa, principalmente seus
aspectos democráticos, igualitários . Desse modo, o autor desautoriza a
apresentação do hitlerismo como simples obscurantismo, como retrocesso a uma
sorte de medievalismo troglodita. Ainda que Herf o assinale como especificidade
alemã, no entanto o fascismo italiano e, inclusive, o franquismo e seu
fundamentalismo católico ultramontano poderiam ser caracterizados da mesma
maneira.
Albert Speer, que foi ministro de armamento e guerra de Hitler, tentou
justificar-se durante os Julgamentos de Nuremberg e, depois, em suas memórias,
assinalando que “os criminosos sucessos daqueles anos não só foram fruto da
personalidade de Hitler. O alcance dos crimes também se deveu ao fato de que
Hitler foi o primeiro capaz de empregar os instrumentos tecnológicos para
multiplicar o crime. A maior tecnologia é o perigo” . A culpabilização da
tecnologia leva a outorgar-lhe um alto nível de autonomia a respeito das
decisões humanas. Trata-se de uma sorte de fetichismo tecnológico que cumpre um
papel decisivo na cultura moderna.
No imaginário modernista de começos do século XX, a tecnologia era quase
equivalente à tecnologia industrial, com suas máquinas cada vez mais eficazes,
com grandes organizações estatais ou privadas, civis ou militares, tentando
funcionar à perfeição, imitando as máquinas visualizadas como paradigma superior
do progresso. O paraíso autoritário aparecia como uma grande máquina humana,
obedecendo mecanicamente àquele que a maneja. O fascismo clássico pode ser,
então, apresentado como expressão autoritária da modernidade industrial durante
as primeiras décadas da decadência. Não é exagerado falar, então, de fascismo
industrial.
Diferente dele, o neofascismo emerge muito tempo depois, arrastando velhas
histórias, porém inserido em um universo capitalista completamente
financeirizado, onde as inovações tecnológicas da indústria, da agricultura ou
da mineração formam parte de uma dinâmica geral de negócios, na qual prevalece a
cultura financeira, seus ritmos, sua reprodução parasitária; onde a urbanização
se degenera em caos, onde a fragmentação social e a transnacionalização
quebraram integrações nacionais e articulações estatais, com taxas de lucros
produtivas tendencialmente baixas e taxas de crescimento econômico anêmicas nos
capitalismos dominantes tradicionais e desacelerando-se na China. A hegemonia
parasitária na área central histórica do capitalismo global, capturando de
maneira irregular vastas zonas periféricas, se corresponde com uma etapa muito
avançada da decadência sistêmica, sua imagem financeira, ou seja, não produtiva,
mafiosa, volátil, aventureira, define a identidade neofascista.
Terceira constatação: o neofascismo como ruptura do metabolismo
humanidade-natureza.
Antecipado por Marx (que recolhia estudos avançados de sua época, como os de
Liebig), ainda que sem ocupar um lugar central em sua obra, o fenômeno de
ruptura do equilíbrio entre a reprodução social e a da natureza termina por ser
realidade no século XXI. A devastação do meio ambiente, o esgotamento de
recursos naturais, formam agora parte da dinâmica do capitalismo. As avalanches
da agricultura transgênica, da mineração a céu aberto, da hipertrofia e poluição
urbanas, são algumas e decisivas manifestações de um processo cuja magnitude
ameaça com restringir de maneira significativa as condições da existência humana
no planeta. A superexploração de recursos energéticos, por exemplo, conduziu a
uma rápida redução das reservas petroleiras com substituições insuficientes à
vista do que levará a uma dramática degradação das atividades econômicas e
sociais em geral.
Uma das características das tendências neofascistas é seu repúdio às chamadas
“bobeiras ecológicas”, que desalentariam os investimentos prejudicando o
desenvolvimento empresarial. Não se trata de um capricho autoritário, mas sim da
expressão da necessidade profunda do grande capitalismo de rentabilizar seus
negócios em uma era onde as baixas taxas de lucros produtivos os obrigam não só
a praticar o canibalismo financeiro, mas também a reduzir custos e tempos
saqueando recursos naturais.
Os Estados Unidos e seu governo estão na vanguarda do processo destrutivo global
. O abandono do Acordo de Paris sobre mudança climática em nome do emprego e o
desenvolvimento industrial aparecem como uma medida demagógica nacionalista de
Donald Trump, que responde às pressões dos grandes grupos econômicos dos Estados
Unidos cujo único objetivo é aumentar seus lucros, destruindo todos os
obstáculos ecológicos que se apresentem.
O aspecto financeiro do neofascismo converge com suas práticas devastadoras da
natureza, de articulações sociais e de sobrevivências culturais, cuja interação
metabólica começa a fraturar-se em começos do século XXI.
Quarta constatação: o caráter ocidental-imperialista do neofascismo
sobredetermina suas manifestações ideológicas parciais.
Existiu um discurso fascista, com suas variantes nacionais, regionais,
religiosas ou pondo a religião em um segundo plano, para além de suas misturas
oportunistas, exibindo um conjunto de paradigmas, estilos, e até cenografias que
lhe outorgavam uma certa identidade universal: as camisas pardas na Alemanha, as
negras na Itália, azuis nas falanges espanholas ou nos lanceiros (Lăncieri)
romenos, as camisas brancas da falange boliviana, que uniformizavam as forças
militarizadas que exerciam a violência contra a população civil.
É muito difícil encontrar algo parecido no neofascismo. Seu caráter universal
vem sendo dado pela intervenção do império global estadunidense e não pode
cenários ou discursos comuns. Trata-se de uma onda reacionária de configuração
variável. Na Europa, predomina o discurso racista contra os povos periféricos,
xenofobia propagada em sociedades afetadas pelo envelhecimento demográfico e a
perda de dinamismo econômico (tem o aspecto de um neofascismo defensivo). Na
América Latina, mobiliza principalmente as classes altas e médias contra os
pobres, onde se combina, segundo os casos, racismo e segregação social internos.
Nos Estados Unidos, um dos baluartes da vitória de Trump foram as classes Baixas
brancas decadentes dominadas pelo ressentimento social e a xenofobia. Porém, no
Oriente Médio, uma força de choque decisiva foi o ultra islamismo do Estado
Islâmico, Al Qaeda e outras organizações “antiocidentais” financiadas e
treinadas pelo Ocidente, nutrindo-se de bases sociais politicamente à deriva,
desencantadas com a modernização. O objetivo imperial não é regimentar, mas
controlar estrategicamente populações caóticas ou apáticas, encurralar e se
possível destruir estados rivais ou fora de controle. Sobredeterminação
imperialista que por sua dimensão planetária, sua apresentação ideologicamente
confusa e seu impacto devastador não deveria ser visto como loucura do polo
dominante mundial mais amplo da reprodução ampliada negativa da civilização
burguesa, que abandona completamente seus mitos progressistas para submergir no
niilismo. É um fenômeno que se expressa através de indicadores produtivos,
tecnológicos, financeiros, ambientais, demográficos, urbanos e outros que
integram um processo mais vasto, onde também aparecem a agonia da racionalidade,
o pessimismo social, o descrédito da solidariedade.
Luzes e sombras
O fascismo aparentava ser uma avalanche incontrolável, assim acreditou por
exemplo Stefan Zweig, escritor de grande popularidade internacional entre as
duas guerras mundiais. O austríaco representativo da alta burguesia liberal
nunca pode repor-se do choque causado pela chegada da barbárie nazista. Marchou
para o exílio e terminou suicidando-se no Brasil, em 1942, três anos antes da
derrubada do nazismo. Morreu acreditado na vitória universal do nazismo. O mundo
que sentia saudade, o do capitalismo europeísta, não voltaria mais. “Não somos
senão fantasmas e recordações”, assinalou sobre seu universo desaparecido, que
reconhecia ser repleto de injustiças, mas também de possibilidades de superação.
Assim o descreveu em sua obra póstuma, “O Mundo de ontem”, que curiosamente
termina talvez contradizendo seu pessimismo: “O sol brilhava com plenitude e
força. Enquanto regressava à casa, rapidamente observei minha sombra diante de
mim, do mesmo modo que via a sombra da outra guerra atrás da atual. Durante todo
esse tempo, aquela sombra já não se afastou de mim; ela pairou sobre meus
pensamentos noite e dia. Porém, toda sombra é, ao fim e ao cabo, filha da luz” .
Porém, também mãe da luz seria necessário acrescentar, de uma luz diferente,
nova. A catástrofe nazista (sua emergência e derrubada final) significou,
engendrou como reação, o desdobramento de forças sociais regeneradoras de
dimensões nunca antes vistas. O fim da Segunda Guerra Mundial abriu as portas
para o socialismo no centro e leste europeu, a revolução chinesa, as grandes
descolonizações na periferia, obrigando as burguesias dos países centrais a
ceder seus próprios territórios ante as demandas de seus trabalhadores. Ali, não
regressou o velho capitalismo liberal, mas se instalou a adaptação keynesiana.
Isso era impensável, por exemplo, em 1940, para aqueles com critério “realista”,
que observavam as forças em presença, incapazes de perceber a dinâmica profunda
do mundo, o devir possível que incluía entre suas alternativas o despertar de
grandes massas humanas subestimadas, buscando superar um sistema decadente.
O desafio neofascista é muito superior ao que representou o fascismo. Sua
capacidade letal é muito maior, suas vítimas potenciais já não se contam em
dezenas de milhões, mas, no melhor dos casos, em centenas de milhões. Sua
reprodução devastadora ameaça a vida no planeta. O colosso imperial dispõe do
maior maquinário de guerra que jamais conheceu a humanidade. Seu desenvolvimento
comunicacional permite atacar em qualquer lugar do mundo. No entanto, sua
natureza parasitária, o distanciamento psicológico de sua elite com relação à
realidade paralela, sua financeirização, a corrupção que a aprisiona, seu
imediatismo desenfreado, a conduzem para derrotas ou impasses surpreendentes
como os que sofreu na Síria e Afeganistão, ou em suas tentativas de domesticação
da Rússia e China, como parte de sua estratégia fracassada de controle da
Eurásia. Ou que o caso latino-americano o levou a instaurar regimes autoritários
sumamente frágeis, como no Brasil ou Argentina.
O Império se degrada empurrado por suas estratégias de recomposição, respostas
selvagens que, ao tentar impor uma reprodução devastadora que nega
estrategicamente a sobrevivência da maior parte da humanidade, cria as condições
de sua queda. Se não fizer nada continuará afundando. As taxas de lucro
corporativos caem, os tecidos sociais produtivos se enfraquecem, porém se fizer
o que ditam seus interesses concretos, afundará muito mais.
Quando Hitler assumiu como Chanceler do Reich, Carl Schmitt, um dos mais
destacados ideólogos do nazismo, declarou: “Hoje, 30 de janeiro de 1933, é
possível afirmar que Hegel morreu” . Ou seja, a Razão como fundamento da
civilização burguesa, a aposta em uma visão racional, científica, da história
humana, de seu desenvolvimento presente e futuro. Porém, a reconfiguração
ideológica nazista durou pouco. Hegel começava a sofrer seus primeiros
acharques, porém continuou com vida, sobrevivendo a esse primeiro momento de
decomposição civilizacional cujo final foi simbolizado pelo soldado soviético
colocando a bandeira vermelha no alto do Reichstag, em 2 de maio de 1945. Não só
Hegel continuava vivo, mas também outro alemão: Karl Marx, aparecia na cena
anunciando sua vitória.
Encontramo-nos agora submersos em uma decadência muito mais profunda e extensa
que a dos anos 1920-1930, ameaçando converter-se em um processo de
autodestruição de alcance planetário. Além disso, segundo afirma uma multidão de
comunicadores e académicos, a ilusão pós-capitalista do século XX foi enterrada,
Marx morreu. Porém, ocorre que os amos do mundo e seus seguidores não são os
únicos protagonistas desta história. A humanidade sofredora assustadoramente
majoritária também existe, tem memória e capacidade de rebeldia (e a exerce). A
cúpula do Capitólio em Washington é um bom lugar para que no futuro, o fim dos
devastadores culmine com a colocação de uma bandeira libertadora e com o sorriso
irônico de Marx anunciando que seu óbito não era mais que uma pós-verdade
propagada pelo Império.
A imagem da bandeira sobre o Capitólio me gera algumas interrogações... Como
será essa bandeira? Será vermelha, será uma whipala, talvez uma não criada? Quem
a portará? Um estadunidense, um chinês, um francês, um mexicano, um egípcio, um
peruano? No caso de Berlim, em 1945, a coisa estava clara: tinha que ser
inevitavelmente um soviético levantando a bandeira vermelha, mas agora a
multiplicidade de ofensivas imperiais e de resistências, de alterações
econômicas, sociais e ambientais periféricas, mas também no centro do mundo, o
caos global de deslocalizações industriais e estafas financeiras, me fazem
pensar que o portador da bandeira pode ser qualquer um e que a bandeira será o
resultado da criação de uma humanidade rebelde. Em sua última etapa declinante,
a civilização burguesa tornou-se completamente universal, a densidade das
intercomunicações globais, a transnacionalização da economia foram desfocando
especificidades, criando novas formas de pluralismo do real, reabilitando
memórias esquecidas. Em suma, tornando possível a superação global do sistema.
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)

In
IELA
http://www.iela.ufsc.br/noticia/neofascismo-e-decadencia-o-planeta-burgues-deriva
21/5/2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário