sábado, 19 de maio de 2018

Ofensiva imperialista e os interesses dos EUA no golpe de 2016



Por Luís Eduardo Fernandes*


Na primeira década do século XXI, acompanhamos a emergência de governos
populares na América Latina, oriundos de movimentos populares, partidos de
esquerda e centro-esquerda e das resistências às consequências nefastas do
processo de liberalização financeira capitalista e dos choques “neoliberais” que
tanto massacraram os povos latino americanos.
Trata-se de experiências heterogêneas com diferentes graus de organização
popular, radicalização política, composição social, conquistas populares e
enfrentamento ao imperialismo, em especial o estadunidense. Se, por um lado,
houve uma relativa melhora nas condições de vida, mesmo que mínima, da maioria
da população, por outro também constatamos que, mesmo nas experiências mais
avançadas, como na Venezuela, não se produziu uma clara estratégia econômica de
enfrentamento ao poder financeiro do grande capital contemporâneo.
Talvez o caso brasileiro, através dos governos petistas, tenha sido a
experiência “progressista” mais moderada e acomodada aos ditames da burguesia
brasileira e sua associação negociada ao imperialismo. O presente artigo se
propõe a apresentar um pequeno balanço das relações Brasil–EUA durante os
governos petistas. Não pretendemos realizar uma espécie de história diplomática
dos acordos de cooperação e missões comerciais, mas sim apresentar elementos
econômicos e políticos fundamentais para desenvolvermos a nossa hipótese inicial
de que, de maneira indireta, os interesses estadunidenses também influíram para
o processo de impeachment da presidente Dilma. Portanto, destrincharemos os
seguintes pontos: a) as relações comerciais entre os respectivos países e a
proposta da Alca; b) o chamado “diálogo estratégico” e a política dos EUA de
contenção à Venezuela bolivariana; c) os acordos jurídicos, policiais e a “luta
contra a corrupção”; e, finalmente, d) a questão do pré-sal e da Petrobrás.
As relações comerciais Brasil–EUA e o congelamento da Alca
No início da década de 2.000, os EUA eram os principais investidores na economia
brasileira. Segundo Moniz Bandeira (2015), seu estoque de investimentos diretos
no Brasil aumentou de 18,9 bilhões de dólares em 1994 para 35,6 bilhões em 2000.
Por isso, mesmo após a “Carta aos Brasileiros”, a extrema-direita
norte-americana e parte de Wall Street viam Lula com desconfiança, por conta do
seu passado sindical e vinculado às esquerdas, assim como por sua proximidade
com políticos non gratos em Washington, como Fidel Castro e Hugo Chávez.
Depois de eleito, o primeiro país a ser visitado por Lula da Silva foram os EUA.
No encontro com Bush, Lula manteve a promessa de não suspensão do pagamento da
dívida externa, manteve as linhas diretivas da política macroeconômica anterior
e defendia uma política exterior sem enfrentamentos diretos aos EUA. Os diálogos
sobre a Alca, embora já desgastados e contando com diversas críticas de setores
empresariais e populares no Brasil, mantiveram-se mais por conveniência política
do que por interesses comerciais.
As negociações sobre a Alca se arrastavam desde 1994, fazendo parte de um
projeto do EUA de recuperar sua balança comercial negativa junto à Europa e
parte da Ásia através da abertura de mercados na América Latina. A abertura,
contudo, não seria recíproca: os EUA manteriam tarifas protecionistas para
produtos latino-americanos em seu território. O Brasil, sendo o país com maior
parque industrial latino-americano, maior diversidade econômica e de parceiros,
sofreria sérias consequências caso assinasse o acordo, ainda mais com a
permanência de tarifas elevadas nos EUA em produtos brasileiros como o suco de
laranja, a soja, o algodão e o aço.
Mesmo durante o período de FHC, no Palácio do Planalto houve certa resistência à
Alca. Essa resistência convertia-se em alinhamento automático às posições dos
EUA em outros temas, mas de fato o governo Lula habilmente contribuiu para
congelar as negociações da Alca. Apesar disso, esse congelamento não foi
realizado sem tensões internas no Brasil e externas com os EUA.
O confronto entre interesses comerciais de Brasil e EUA, já intensificados na
conferência de Cancun em 2003, tornou inevitável o colapso da Alca em 2005.
Segundo Moniz Bandeira (2015), após intensos debates, os países do Mercosul,
liderados pelo Brasil, apresentaram uma proposta conjunta, a ser debatida na
reunião dos ministros, marcada para novembro, em Miami. Essa proposta colocava
as negociações em “três trilhos”, prevendo a derrubada de barreiras comerciais
para outros países em desenvolvimento em um prazo menor que o que viesse a ser
fixado para Canadá e Estados Unidos e deixando os temas sensíveis, como normas
de proteção a investimentos e à propriedade intelectual e a abertura de compras
negociadas, podendo ser aceitos separadamente pelos países que o quisessem. O
que acarretou o fracasso da reunião foi, assim, o mesmo tipo de impasse que
ocorrera em Cancun.
Diante do impasse, os EUA procuraram negociar acordos parciais com setores da
economia brasileira, em especial com o agronegócio, a fim de aumentar as
pressões na negociação geral. Não por acaso, na época, Roberto Rodrigues,
Ministro da Agricultura, e Luiz Fernando Furlan, Ministro do Desenvolvimento,
Indústria e Comércio Exterior, criticaram a intransigência brasileira nas
negociações da Alca.
É notório que a luta contra a Alca não se restringiu aos salões e conferências
diplomáticas. A esquerda latino-americana, movimentos populares, nacionalistas e
setores democráticos organizaram uma extensa e vigorosa campanha continental
contra a Alca, inclusive com verdadeiras sublevações populares antineoliberais e
anti-imperialistas em alguns países como Argentina, Bolívia, Equador e
Venezuela.
Esse é um dado político e social extremamente relevante. As heterogêneas
sublevações populares combinadas com a eleição de representantes de movimentos,
partidos e líderes de esquerda e centro-esquerda fizeram emergir uma nova
correlação de forças no continente com, no mínimo, mais independência em relação
aos EUA.
No período, os Estados Unidos priorizavam suas ações internacionais na região da
Eurásia e do Oriente Médio. A “guerra ao terror” tinha poucas implicações
diretas na América Latina. A falta de apoio e a pouca quantidade de aliados na
América Latina fizeram o governo norte-americano recuar do projeto da Alca,
priorizar acordos bilaterais e potencializar o diálogo estratégico (na verdade,
tático) com a maior economia da América Latina e a experiência menos radical de
um governo de centro-esquerda no continente.
A questão energética
Em outubro de 2003, Oldair Dias Gonçalves, então presidente da Comissão Nacional
de Energia Nuclear (CNEN), anunciou que o Brasil estava a converter-se no sétimo
país a produzir urânio enriquecido em escala industrial, com capacidade para
suprir 60% das necessidades de suas usinas nucleares e exportar até 12,5 milhões
de dólares ao ano, a partir de 2014.
Segundo Moniz Bandeira (2015), no início do primeiro semestre de 2004, os EUA
intensificaram as pressões para que o Brasil aderisse a um Protocolo Adicional
específico ao acordo de salvaguarda do TNP (Tratado de não proliferação de armas
nucleares), dando aos inspetores da AIEA maior autoridade para fazer
verificações intrusivas no seu programa nuclear. Esse protocolo adicional, que
estava em negociação desde 1992, seria voluntário, mas a AIEA pretendeu fazê-lo
impositivo e ir além da prática regular. Exigia também que o Brasil suspendesse
todos os programas de enriquecimento e reprocessamento que já houvesse começado
e permitisse quantas inspeções fossem necessárias em qualquer parte do
território.
Para o historiador brasileiro, esse problema evidenciou o grande erro do governo
de FHC ter assinado o TNC, ao passo que Índia, Israel e Paquistão não aderiram.
Além disso, Moniz Bandeira (2015) apresenta algumas das razões por detrás desta
pressão norte-americana:
Por trás dessa campanha contra a atitude do governo de Lula da Silva
havia,certamente, o interesse econômico e, igualmente, político e
militar-estratégico. O Brasil, como sexta maior reserva mundial de urânio e

tecnologia própria, comercialmente competitiva, demonstrou que podia alcançar a
autonomia na produção de combustível nuclear, fonte de energia da maior
importância, ante a perspectiva de esgotamento das reservas mundiais de
petróleo, ainda na primeira metade do século XXI […]
O governo brasileiro não assinou o ato adicional, denunciou as nações
pertencentes ao conselho de segurança da ONU, dentre elas os EUA, por não
estarem destruindo parte do seu arsenal nuclear e, em 2010, mediou o impasse,
juntamente com a Turquia, sobre o programa nuclear iraniano. Mais uma vez,
apesar de não confrontar diretamente os interesses norte-americanos, a maior
inserção internacional de um país emergente como o Brasil tensionava os
interesses estratégicos de manutenção da hegemonia econômica, política e militar
do imperialismo norte-americano.
Um ponto mais convergente entre os países, valorizado conjunturalmente pelo
governo brasileiro, foi o dos acordos relativos ao etanol. Brasil e EUA são os
dois maiores produtores de etanol no mundo e, a partir da visita de Bush ao país
em 2007, os governos firmaram acordos na perspectiva de uma composição
estratégica no setor. No entanto, com a crise econômica de 2008 e,
principalmente, a descoberta do pré-sal pela Petrobrás secundarizaram, para o
governo brasileiro, o enfoque na produção de etanol.
Anunciada em 2007, a descoberta do pré-sal inseriu de vez o Brasil no mapa da
geopolítica do petróleo, com a perspectiva de colocar o país como um exportador
relevante deste combustível. Até hoje, desconhece-se o exato potencial desse
fenômeno, com estimativas de que, na camada entre os estados do Espírito Santo e
Santa Catarina, estão cerca de 80 bilhões de barris de petróleo. Para Igor
Fuser, além da alta produtividade nos poços, o que também diferencia o pré-sal é
o baixo risco geológico. Em mais de 90% dos poços perfurados verificou-se a
existência de petróleo (FUSER, 2018).
Diante de tal quadro e a emergência de intensas pressões no seio da sociedade
civil brasileira, o governo brasileira opta por adotar um marco regulatório do
pré-sal moderadamente nacionalista, utilizando um modelo de exploração adaptado
de países como Líbia, Nigéria, Rússia e China. O regime de partilha mantinha a
preferência do Estado e da Petrobrás na exploração, mas concedia parte da
exploração de poços a empresas estrangeiras. Essa medida não agradou parte das
classes dominantes brasileiras, principalmente as vinculadas ao mercado
financeiro, as quais questionavam a excessiva participação estatal no modelo e
duvidavam da capacidade tecnológica e administrativa da Petrobrás em poder
explorar tamanhas riquezas.
Conforme já apontamos, mais do que uma necessidade interna, o controle
norte-americano de grande parte da produção de petróleo e outras fontes de
energia no mundo é uma peça-chave estratégica para a garantia de sua hegemonia
imperial. A descoberta de relevantes reservas de petróleo no Brasil e a ascensão
de governos populares de esquerda e centro-esquerda na América Latina fizeram os
EUA acionarem a sua tradicional política de contenção, reativando a IV Frota.
Oficialmente, o governo norte-americano explicou que a reativação da IV Frota se
devia ao combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas na Colômbia e na tríplice
fronteira. No entanto, segundo Cristina Pecequillo (2012):

A reativação da Quarta Frota é reflexo direto das descobertas das reservas de
petróleo do pré-sal brasileiro e de gás em Angola. Além disso, corresponde a uma
tentativa de exercer poder militar em uma região de baixa projeção norte
americana, frente às ações da Venezuela, e suas relações extracontinentais com a
Rússia e o Irã. E, finalmente, é uma busca de reocupação de espaço geopolítico
no hemisfério diante do incremento da presença da China na América do Sul em
busca de matérias primas como alimentos e recursos energéticos, somada a suas
ações de fortalecimento político de alianças de geometria variável com o Brasil
[…].
Contudo, a política de contenção dos EUA não se restringiu à arena militar.
Tratou-se de um conjunto de ofensivas em campos diferentes. Ao priorizar ações
diretas na Eurásia e no Oriente Médio e com perda de influência na América
Latina, num primeiro momento, cabia ao imperialismo norte-americano combater e
isolar os polos mais radicalizados e mais antiamericanos do continente, tendo
como vanguarda a Venezuela de Chávez. Nesse sentido, a abertura de diálogos
estratégicos e o reconhecimento do Brasil enquanto potência regional e líder
global, em nossa visão, também faz parte deste objetivo.
A abertura de diálogos estratégicos com o Brasil e a contenção à Venezuela
A partir de janeiro de 2005, o início do segundo mandato de George Bush
caracterizava-se por mudanças táticas na agenda da política externa
norte-americana. Apesar de não alterar o conteúdo estratégico de sua doutrina de
“guerra ao terror”, os EUA tentaram retomar o diálogo multilateral e melhorar a
relação com as potências regionais, como os BRICS (traços na política externa
que foram mantidas durante o governo Obama). Os EUA realizam alguns recuos
táticos, como a questão do programa nuclear indiano, a defesa da entrada do
Japão no Conselho de Segurança da ONU e o apreço pela pretensão global
brasileira.
Segundo diplomatas, ministros e o próprio presidente Lula (PECEQUILO, 2012), os
diálogos entre as nações amadureceram muito e entraram em um novo patamar de
respeito e parcerias. Os EUA, ao menos conjunturalmente, apoiavam o papel do
Brasil na América do Sul, sua liderança no Mercosul, a criação da UNASUL e suas
pretensões globais. Mesmo antes de 2005, os EUA foram os grandes articuladores
para que o Brasil fosse o país líder das tropas da ONU na ocupação militar do
Haiti.
Na verdade, o crescimento e a projeção brasileira de suas políticas sociais e
empresas transnacionais freavam a ampliação de um terceiro polo abertamente
anti-imperialista entre os governos populares, tendo a experiência bolivariana
na Venezuela como vanguarda. Ter o Brasil de Lula como modelo latino-americano
seria o exemplo de que a ordem mundial comportaria a ascensão de lideranças e
partidos operários, desde que estes orquestrassem grandes negociações nacionais
em prol da expansão das relações capitalistas e não questionassem
estrategicamente o status quo internamente e externamente.
Nesse sentido, apesar da grande proximidade comercial e política, o Brasil de
Lula e a Venezuela de Chávez competiam pela liderança regional. Uma competição
travada não meramente entre países e interesses comerciais, mas sim uma disputa
político-ideológica de concepções de sociedade e integração latino-americana.
Essas tensões se manifestaram, principalmente, nas propostas de organismos
multilaterais de ambos os governos. Chávez, num primeiro momento, apostou suas
fichas na ALBA. A ALBA era, inicialmente, uma “alternativa bolivariana” à
proposta da Alca, feita pelos Estados Unidos. Naquele contexto, em que havia
ainda poucos líderes dispostos a assumir uma postura mais ofensiva frente à
potência hemisférica, a ideia venezuelana teve pouco eco, contando apenas com o
apoio de Cuba. Em 2004, a ALBA ganhou forma como um tratado comercial bilateral
e, após a derrocada da ALCA, em 2005, esse novo arranjo pleiteou o papel de
alternativa às articulações capitalistas. No ano seguinte tiveram lugar as
adesões de Bolívia, Nicarágua, Dominica, Honduras (até 2010), Equador, São
Vicente e Granadinas, Antígua e Barbuda, Santa Lúcia, São Cristóvão e Nevis e
Granada ao bloco.
Em 2009 ocorre uma mudança no acrônimo ALBA, que deixa de ser “alternativa
bolivariana” para ser chamado de “Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa
América – Tratado de Comércio dos Povos”. Além do viés comercial que já estava
presente desde o início, a principal característica desse bloco é o foco na
dimensão social e em projetos de cooperação entre os países nas áreas de
educação, saúde e cultura, por meio dos projetos grannacionales, garantindo aos
seus membros a erradicação do analfabetismo e outros avanços sociais (ALIANZA
BOLIVARIANA PARA LOS PUEBLOS DE NUESTRA AMÉRICA, 2013).
Outra proposta do governo bolivariano foi o Banco do Sul (BS). Após um intenso
processo de negociação, Bolívia, Equador, Brasil e Argentina entraram como
membros em 2007, ano em que o convite para integrar o BS foi estendido a todos
os países da UNASUL. Envolto em aparente convergência, na realidade, o projeto
do Banco do Sul possuía significados diferentes para os países, conforme as
necessidades de cada um. Para a Venezuela, o organismo deveria ter a mesma
função do Fundo Monetário Internacional (FMI), agindo como um emprestador de
última instância para os países da região, porém sem as condicionalidades
“maléficas” e com uma estrutura decisória igualitária. A Bolívia e o Equador
almejavam que a prioridade do banco fosse o desenvolvimento social e a criação
de uma moeda única, uma vez que suas economias são altamente dolarizadas. Já o
Brasil tinha em mente um organismo similar ao seu Banco Nacional de
Desenvolvimento (BNDES), ou seja, de financiador de projetos de infraestrutura e
desenvolvimento.
O convênio constitutivo do Banco do Sul foi assinado em 2009 pelos presidentes
de Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai, Uruguai e Venezuela. Cinco
países chancelaram o documento em seus parlamentos, mas Brasil e Paraguai ainda
tramitam sua aprovação.  No Brasil, o convênio do Banco do Sul foi aprovado pela
Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados em 2013, mas até 2017
não foi apreciado pelo plenário da casa.
Ou seja, a liderança brasileira na América do Sul sem se antagonizar à ordem
mundial capitalista e à hegemonia dos EUA era um pouco melhor para os interesses
norte-americanos. Nesse sentido, a política externa petista apostou grande parte
das suas fichas na perspectiva de um diálogo estratégico com os EUA, continuado
por Obama, a fim de expandir a gradual projeção brasileira no cenário
internacional.
Essa aposta se relaciona com a própria política interna petista que visava
viabilizar uma grande conciliação nacional em torno da expansão da
internacionalização do capitalismo brasileiro. Como já bastante discutido pelo
pensamento social brasileiro, o imperialismo, inclusive estadunidense, não é um
fenômeno externo à formação social brasileira. Ele se associa e se alia a
frações significativas das classes dominantes brasileiras. Ao depender e se
aliar ao agronegócio, à burguesia industrial e financeira, o petismo
naturalmente deveria desenvolver um diálogo mais ameno, enfrentar os conflitos
de interesses comerciais, cumprir os contratos e os ditames do capital
financeiro e realizar concessões às pressões do imperialismo norte-americano.
O governo Obama, ao menos nos discursos, valorizava ainda mais a projeção global
brasileira. Acordos comerciais e na cooperação técnica são ampliados, a partir
de 2009 a balança comercial entre os países se torna favorável aos EUA, mas
apesar do reconhecimento ao Brasil e demais emergentes esse reconhecimento é
baseado na manutenção da hegemonia norte-americana. É durante o período do
primeiro presidente negro dos EUA que se ampliam novas formas de intervenção do
imperialismo, como destaca Moniz Bandeira, principalmente através da
desestabilização de regimes contrários aos interesses do império
norte-americano, financiamento de grupos de extrema direita, incremento da
guerra virtual, espionagem e guerra jurídica.
Parece-nos que, no caso brasileiro, sob um discurso de diálogos estratégicos e
reconhecimento da projeção brasileira, articula-se, conjuntamente com setores
das classes dominantes e frações privilegiadas do Estado brasileiro, uma
progressiva guerra jurídica a fim de reenquadrar o Brasil e a América Latina à
hegemonia norte-americana, radicalizar choques neoliberais na economia
brasileira e abrir mercados para empresas norte-americanas.
A guerra jurídica
Apesar de escrevermos sobre a influência dos EUA no golpe de 2016, seria um
equívoco tratarmos tal influência desarticulada da própria dinâmica das lutas de
classes no Brasil, assim como os privilégios secularmente existentes no interior
do Estado brasileiro como legado do regime escravista colonial. Obviamente,
neste breve artigo não temos o espaço devido para relacionarmos com a devida
profundidade a ação e interesses do imperialismo norte-americano com uma análise
esmiuçada das frações e disputas no interior da burguesia brasileira.
Também reconhecemos que as ações que culminaram no golpe de 2016 tiveram como
protagonistas as classes, frações e grupos sociais internos ao Brasil. Sabemos,
porém, que a hegemonia norte-americana, mais do que a hegemonia de um
Estado-nação sobre os demais, representa a dominação do capital em expansão
globalmente. O golpe de 2016 representou essa inserção do Brasil numa fase da
acumulação capitalista ainda mais espoliativa e predatória, cujo aprofundamento
corresponde à manutenção, ao menos passageira, da hegemonia norte-americana.
O poder judiciário, no Brasil, é um exemplo do caráter autocrático do Estado
brasileiro. Uma verdadeira caixa-preta cujo funcionamento dá-se com base em
sistemas hierárquicos nos quais os ocupantes dos postos mais importantes não são
eleitos pelo povo (no máximo, são escolhidos entre seus pares), além do peso que
o o sistema judiciário em nosso país representa no consumo de nossa riqueza.
Dados mostram que a Justiça custa ao Brasil 1,3% do PIB (três vezes o programa
Bolsa Família). Comparando-se com outros países, vê-se o tamanho da diferença,
conforme demonstra o gráfico abaixo. Temos um custo alto para serviços de pouca
qualidade e muito morosos.
Durante os governos Lula e Dilma esses privilégios não foram enfrentados. Ao
contrário, as indicações ao STF, através de um discurso republicano, primaram
pelo burocratismo e pela conciliação com as estruturas hierárquicas e
corporativas do poder judiciário. Ampliou-se a chamada autonomia do Ministério
Público e concepções vinculadas ao chamado “populismo penal”, militarização da
segurança pública e de guerra às drogas cresceram. Os índices da população
carcerária no Brasil apenas aumentaram e o grau de autonomia do judiciário era
visto como um necessário avanço “democrático”.
O elo de aproximação do poder judiciário, do Ministério Público e das polícias
com instituições norte-americanas deu-se, principalmente, através de programas
de cooperação no combate ao tráfico de drogas e de combate à corrupção. Em 2001,
Brasil e EUA firmaram um acordo de cooperação jurídica entre os países para fins
de troca de informações e inteligências, o que possibilitou a legalização, por
exemplo, da atuação livre do FBI e da CIA em território brasileiro.
Curiosamente, as concepções de “guerra às drogas” e de “combate à corrupção”
emergem nos anos de 1970, nos Estados Unidos, período, conforme já relatamos, de
reestruturação do capitalismo internacional e do imperialismo norte-americano. A
“guerra contra o narcotráfico” promovida pelos EUA tem um aspecto econômico,
político e militar. O aspecto econômico busca impedir que surja uma forte
burguesia nos países periféricos apoiada neste grande negócio, já que isto
permitiria o controle de um negócio mundial que alcança cifras em torno de
trilhões de dólares. Daí sua política de repressão seletiva, que ataca os
pequenos produtores, com a destruição das plantações de coca na Bolívia, Peru e
Colômbia, e os consumidores, sem atacar os grandes atravessadores que detêm os
maiores lucros no processo, principalmente as máfias americanas e os grandes
bancos, que recolhem o grosso dos lucros do narcotráfico.
Já o combate à corrupção se fortalece com uma lei norte-americana, aprovada em
1977. A Foreign Corrupt Practices é uma lei que pune as empresas listadas nas
bolsas dos EUA e que tenham se envolvido em corrupção (propina) no exterior.
Trata-se de mais um mecanismo de possível controle dos EUA na regulação das
disputas interimperialistas.
No século XXI, a guerra jurídica e a “luta contra a corrupção” aparenta já ser o
grande elo de intervenção do imperialismo norte-americano no continente
latino-americano. Um documento lançado em 2016, assinado por 23 acadêmicos
norte-americanos na América Latina (dos quais, boa parcela trabalhou no governo
Obama), sustentava que o próximo presidente dos EUA deveria trabalhar com os
governos da América Latina para estabelecer um painel independente de juristas e
autoridades públicas para coordenar a batalha que os países da região estão
travando contra a corrupção nos setores público e privado.
Os graves problemas econômicos experimentados pelos países da região, em
especial na América do Sul, são apontados como oportunidade para os EUA. Os
Estados Unidos são o primeiro ou o segundo maior parceiro comercial de
praticamente todos os países da região e, diferente da China, importa bens e
serviços mais sofisticados, de modo geral, segundo o manifesto. Os acadêmicos
sustentam uma política externa dos EUA mais próxima e intervencionista,
fortalecendo a OEA.
Desde a descoberta do pré-sal, a Petrobrás era um alvo direto da guerra jurídica
articulada pelo imperialismo norte-americano e setores da classe dominante
brasileira. No Brasil, a política do governo de promover o avanço da
oligopolização da economia nacional, mediante relações privilegiadas com o
governo, gerava fissuras e disputas políticas, econômicas e regionais
interburguesas. Já para os EUA, era fundamental abrir mais mercados às
corporações norte-americanas a exploração do pré-sal e outros setores econômicos
no Brasil, na América Latina e África.
Em 2013, os documentos divulgados por Edward Snowden, ex-analista contratado
pela NSA, comprovam a espionagem da então presidente Dilma, assessores,
ministros e diretores da Petrobrás. A resposta da presidente foi de denúncia na
Assembleia da ONU e cancelamento de sua viagem agendada aos EUA. Após o pedido
formal de desculpas do presidente Obama, Dilma amenizou o tom das suas críticas.
Em 2014, sites nos EUA ofereciam recompensas para que investidores fizessem
denúncias de corrupção da Petrobrás com base na lei FCPA (SILVA JÚNIOR, 2014).
A questão da corrupção estrutural é endêmica às disputas entre as grandes
corporações, na fase imperialista do capitalismo. A corrupção é um instrumento
para a reprodução ampliada do capital, porque através dela maximizam-se lucros,
neutralizam-se concorrências e reparte-se parte da extração de mais-valia com
agentes públicos e privados que viabilizaram esse processo. A edificação de leis
internacionais, tratados e acordos anticorrupção é mais uma peça da guerra
comercial que se intensifica com o declínio econômico do polo imperialista
ocidental e com o crescimento de novos centros capitalistas regionais.
Em 2011, o governo brasileiro se recusou a assinar um tratado na OMC que
apontava pela necessidade de maior transparência nas licitações públicas. O
acordo era restrito a um pequeno número de países europeus e os EUA. Parte do
objetivo do acordo era viabilizar a participação competitiva de empresas
norte-americanas e europeias nas licitações de prestações de serviços na Copa do
Mundo de Futebol, em 2014, e nos Jogos Olímpicos, em 2016. O governo brasileiro
foi pressionado e a questão repercutiu na imprensa brasileira (CHADE, 2011).
O caldo cultural anticorrupção na sociedade brasileira era crescente. A
conciliação do PT com diversas oligarquias políticas, com a maioria delas
vinculadas ao PMDB, a política de privilégios com as empresas chamadas de
“campeãs nacionais”, a oposição à direita liderada pela grande mídia tendo como
principal diretriz a questão moral e, até mesmo, um certo oportunismo eleitoral
de partidos de esquerda ajudaram a contribuir para que o diagnóstico quase
consensual de que a corrupção seria o principal problema do país.
A pressão por um aparato legislativo mais punitivo, maior “independência” do
judiciário e do Ministério Público foram, assim, pautas incorporadas pelos
governos petistas e sua base de sustentação. Desde a primeira década dos anos
2000, setores do judiciário brasileiro e, até mesmo, da Polícia Federal firmavam
parcerias, cursos de capacitação e troca livre de informações.
Segundo documento divulgado pelo Wikileaks, em 2009, após a boa receptividade do
seminário sobre “crimes financeiros ilícitos”, promovido pelo “Projeto Pontes”
(bancado com recursos dos EUA), cursos de formação em São Paulo e Curitiba foram
solicitados por juízes, promotores e policiais brasileiros interessados em
aprofundar o conhecimento sobre como, por exemplo, arrancar, de maneira prática,
revelações de acusados de lavagem de dinheiro e outras testemunhas.
Sérgio Moro participou do seminário na condição de palestrante, em outubro de
2009, expondo, de acordo com o telegrama recebido pelo governo dos EUA, as “15
questões mais frequentes nos casos de lavagem de dinheiro nas cortes
brasileiras”.
Em 2014, o Ministério da Justiça organiza reuniões do Grupo de Trabalho sobre
Suborno Transnacional da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE) e do Grupo de Trabalho Anticorrupção do G-20. Nestas reuniões,
representantes brasileiros falaram dos esforços de combate a corrupção no país,
dentre estes a Operação Lava-Jato, e requereram ajuda. Os EUA, por meio do FBI,
ampliaram a equipe no Brasil especializada na lei de combate à corrupção no
exterior (FCPA) a fim de facilitar a troca de informações.
Os impactos da Operação Lava-Jato não se encerram exclusivamente no Brasil, mas
avançam para o resto da América Latina. Em 2018, além da condenação do
ex-presidente Lula, outros oito ex-presidentes (ou ex-vice-presidentes)
latino-americanos foram condenados ou já estão presos, sendo a maioria
lideranças de centro-esquerda e com relações diretas com a expansão do
capitalismo brasileiro. O curioso é que a guerra jurídica é revestida de
legalidade nacional e internacional e a cooperação internacional entre Brasil e
EUA foi a base legal para tais intervenções e associações.
Apontamentos conclusivos
O presente artigo procurou sintetizar um balanço das relações Brasil–EUA,
durante os governos Lula e Dilma, a fim de compreender um possível interesse
norte-americano no impeachment de 2016 da presidente Dilma. Acreditamos que
conseguimos apontar razões bem factíveis para isto. O ciclo de expansão do
capitalismo brasileiro, acomodado num pacto social conjuntural, e a projeção
global do Brasil e sua associação com os BRICS eram um entrave estratégico para
a garantia da hegemonia do imperialismo norte-americano.
Não se tratava de um entrave político-ideológico: a política externa petista não
tinha como objetivo questionar a ordem mundial liderada pelos EUA. Mas procurava
reformá-la e aumentar a competitividade internacional de grandes empresas
brasileiras, a fim de prolongar ainda mais o pacto social entre as classes
dentro do país, conforme tentamos explicar, através da valorização do salário
mínimo, programas sociais de transferência de renda, manutenção dos contratos e
tripé macroeconômico pró-capital financeiro e investimentos na formação de
transnacionais brasileiras.
Constatamos também que as relações com os EUA, apesar de conterem algumas
tensões comerciais e políticas, a partir de 2005, se notabilizaram por um
diálogo mais recorrente, intenso e o que se convencionou chamar de
“estratégico”. Os EUA reconheciam o Brasil como potência regional e liderança
global, com o governo Lula  fazendo o contraponto moderado necessário a governos
abertamente anti-imperialistas como o da Venezuela de Chávez.
No entanto, a descoberta do pré-sal e a política de privilégios dos governos
petistas às transnacionais brasileiras eram elementos que se chocavam com os
interesses estratégicos dos EUA na América Latina. Os Estados Unidos tinham que
lidar com o seu déficit fiscal, comercial e as consequências da crise de 2008 e
a retomada da influência estadunidense na América Latina passa a ser fundamental
para a manutenção de seu projeto imperial.
Nesse sentido, os EUA desenvolvem dois tipos de política no continente. A mais
coercitiva, através de ameaças, bloqueios econômicos e financiamentos a grupos
de extrema-direita e golpistas como na Venezuela. E uma mais branda, a partir do
financiamento de ONGs e grupos de jovens contra a corrupção, pressões midiáticas
e, principalmente, a guerra jurídica, como foi no Brasil e espalhou-se para a
Argentina, Equador, Peru, El Salvador, dentre outros países.
Obviamente, não concordamos com afirmações taxativas de que as ações do
judiciário brasileiro, em especial a Operação Lava-Jato, seriam produtos
exclusivamente da ação direta do imperialismo estadunidense. Tais afirmações,
além de serem simplistas, não compreendem a complexidade da guerra jurídica. Uma
guerra, independentemente de suas características, pressupõe também a disputa de
hegemonia nos âmbitos econômicos, políticos e culturais. A doutrina de guerra
jurídica orquestrada pelos interesses imperialistas articula-se com importantes
aliados entre as classes dominantes brasileiras, burocracia estatal e grande
mídia. E, é claro, sendo determinante a luta de classes no país. Grandes eventos
e transformações não ocorrem somente por meio de grandes conspirações, mas fruto
da ação direta ou consentida das massas.
As manifestações em 2013, no Brasil, revelaram uma enorme explosão social. Foram
os primeiros grandes protestos sociais na história recente do país que passaram
longe de qualquer influência petista. A pauta política e cultural da hegemonia
imperialista para a América Latina acabou por ser predominante na síntese
política das manifestações, como a luta contra a corrupção e ineficiência dos
serviços públicos. No entanto, as manifestações também revelaram o início do
esgotamento do modelo econômico e político petista e a insatisfação das massas
urbanas. Posteriormente, a resposta do governo Dilma foi a inflexão neoliberal e
antipopular nos rumos do governo.
Nesse sentido, nesse breve artigo ensaístico (que pretendemos aprofundar),
podemos afirmar que os interesses dos EUA não são estranhos a setores da classe
dominante brasileira. Após 2016, o enfraquecimento de transnacionais brasileiras
abriu mercado para empresas norte-americanas e seus sócios minoritários
brasileiros. Segundo Brier Mier (2018), a Boeing está prestes a tomar o controle
acionário da Embraer, conglomerado aeroespacial de capital misto, terceiro maior
fabricante de aviões do mundo. Após um encontro com diretores da Monsanto em
fevereiro de 2018, a administração Temer anunciou planos de legalizar o uso do
pesticida Glifosato, da Monsanto, que fora recentemente proibido na Europa. Logo
após leiloar oito campos de petróleo offshore para corporações petroleiras
internacionais como Chevron e Shell em outubro de 2017, Michel Temer
providenciou um decreto presidencial com cerca de R$1 trilhão em abatimento de
impostos para companhias petrolíferas estrangeiras atuantes no Brasil. M
Microsoft Monsanto, Boeing, Chevron e Shell, todas se beneficiaram da mudança de
governo no Brasil.
Mais do que uma mera troca de governos, disputas entre oligarquias políticas e
frações da burguesia brasileira, nos parece que desvendarmos o real significado
do golpe de 2016 requer compreendermos as novas dinâmicas da acumulação
capitalista pós-crise de 2008 e as disputas interimperialistas.
Não por acaso, após 2008, a combinação de crises econômicas e políticas estourou
no Oriente Médio, Ucrânia e países emergentes, como Turquia, Rússia e Brasil.
Grandes manifestações de massa tomaram as ruas, sem lideranças e organizados por
redes sociais.
Obviamente, a insatisfação social das classes populares e classes médias urbanas
nesses países é um fenômeno que se relaciona com a própria dinâmica das lutas de
classes locais. Ao nos depararmos, porém, com as resultantes que estes protestos
sociais tiveram (a ascensão fascista na Ucrânia, o crescimento da influência de
grupos fundamentalistas mulçumanos no poder no Oriente Médio e o fortalecimento
de organizações terroristas como o Estado Islâmico, a guerra civil na Síria, as
sanções econômicas à Rússia, o cerco às liberdades democráticas na Turquia e o
golpe jurídico parlamentar no Brasil) percebemos que as mudanças ocorridas, se
não totalmente favoráveis aos interesses dos EUA, ao menos enfraqueceram
possíveis inimigos e adversários de seus interesses.
*Membro do comitê central do PCB e doutorando em serviço social UFRJ

In
PCB
https://pcb.org.br/portal2/19565/ofensiva-imperialista-e-os-interesses-dos-eua-no-golpe-de-2016
7/5/2018

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