quarta-feira, 2 de maio de 2018

Nós sabemos fazer um país



Por Mauro Luis Iasi.

Diz-se que em certo momento da Revolução Russa, Lênin teria afirmado que não se
tratava de fazer um país socialista, mas de garantir um país minimamente
civilizado. Estou convencido que para o Brasil voltar a ser um país minimamente
civilizado temos que pensar na alternativa socialista.

Um país minimamente civilizado exige, hoje no Brasil, uma reversão profunda da
barbárie, isto é, o enfrentamento de três eixos inadiáveis: a reforma agrária, a
reforma urbana e a garantia das condições dignas de existência. Nesse sentido,
para pensarmos uma transformação desse tipo no país é fundamental respondermos a
três perguntas centrais. Primeiro: quais são as condições necessárias para
garanti-la; segundo, a quem ela interessa e quem se colocará contra tais
iniciativas; e, por último, quais são os meios e as formas políticas para
alcançar essa meta.
Quando estudamos os diferentes projetos que procuraram pensar o desenvolvimento
do Brasil (ver, por exemplo, Estado e Planejamento Econômico no Brasil de
Octávio Ianni publicado pela Civilização Brasileira em 1996), constatamos que
nosso país tinha diante de si três projetos distintos: a) um desenvolvimento
capitalista nacional, que exigiria o estabelecimento de condições internas de
infraestrutura, industrialização e desenvolvimento tecnológico próprio; b) um
desenvolvimento associado ao imperialismo visando um crescimento rápido; c) uma
alternativa socialista. A primeira alternativa marca o segundo governo de
Getúlio Vargas e é interrompida com sua morte; a segunda alternativa foi
iniciada por Juscelino Kubitscheck e mantida violentamente pelo golpe de 1964 e
pela ditadura que o seguiu.
Ianni avalia que a terceira alternativa ficou como que suspensa pelo fato de que
a principal força cujo interesse se manifestava em uma proposta socialista – no
período analisado, o protagonismo era do PCB –, acabara por se aliar a forças
nacionalistas na crença que o desenvolvimento de um tipo de capitalismo nacional
poderia ser a base para uma possível passagem para o socialismo. Tal postura foi
retomada com a democratização, de outras formas e por outros motivos, pelo ciclo
de governos democráticos populares protagonizados pelo PT, revivendo a
conciliação de classes na perspectiva de um desenvolvimento capitalista com
geração de emprego, distribuição de renda e políticas sociais compensatórias.
Conclui-se daí que o que predominou, seja por formas democráticas, seja por
formas abertamente autoritárias, foi a crença que o desenvolvimento econômico
baseado no “livre mercado” e na inserção subordinada do Brasil à ordem econômica
mundial (leia-se: imperialista) poderia dotar nosso país de uma economia sólida,
deslocando o problema para a questão da distribuição mais equitativa da riqueza
via políticas de Estado, ou, como no momento atual, a retomada da forma brutal
da crença mítica que garantindo as condições do crescimento econômico
capitalista todos os problemas um dia se resolverão. Entretanto, o que vemos
década após década é que ao final de um ciclo a concentração de riquezas e
propriedades aumenta, a miséria persiste e os mesmos problemas estruturais se
agravam impedindo a dignidade mínima das condições de existência para a
esmagadora maioria da população.
Acreditamos que é o momento de retomar uma alternativa que foi secundarizada: a
alternativa socialista. Essa avaliação se fundamenta em algumas evidências: a) é
necessário orientar a economia para que ela tenha como prioridade a criação dos
meios necessários à produção e reprodução em condições dignas da maioria da
população, que é quem produz de fato essa riqueza e tem direito de usufruí-la;
b) essa reorientação econômica implica um planejamento que seja capaz de dispor
dos recursos naturais, humanos, tecnológicos, culturais e outros de maneira a
otimizar a produção e distribuição de bens e serviços essenciais à vida, assim
como manter as condições de reprodução da atividade econômica; c) tudo isso
implica em uma presença do Estado, mas de uma outra forma de Estado que possa
representar os interesses da maioria e das classes trabalhadoras contra os
interesses de uma minoria que quer perpetuar sua propriedade, riqueza e
privilégios.
No caso específico do Brasil essa mudança implicaria na implementação de alguns
eixos prioritários e imediatos que passamos agora a enumerar:
  Reversão das privatizações nos setores estratégicos da economia como energia,
  transportes, portos e aeroportos, mineração, extração e refino de petróleo,
  etc.
  Estatização do sistema financeiro, acabando com o enorme poder dos monopólios
  financeiros e dos bancos que de fato dirigem a economia e as contas públicas
  para a prioridade da saúde do capital financeiro.
  Suspensão, auditória e não-pagamento da dívida externa e interna.
  Reforma Agrária e nova política agrícola que reverta a prioridade do
  “agronegócio” (eufemismo para descrever na verdade os interesses monopolistas
  e capitalistas no campo) na direção da produção e distribuição de alimentos.
  Reforma Urbana que altere radicalmente o modelo de cidade a serviço do
  capital, com todas as implicações que daí derivam para as políticas de
  moradia, transporte, segurança, serviços essenciais, saneamento, cultura, etc.
  Uma política de desenvolvimento científico, tecnológico, educacional e
  cultural que projete metas ambiciosas de formação de uma sólida base humana de
  compreensão do pais, seus desafios e necessidades e os meios de enfrentá-los
  na perspectiva da maioria da população.
Esta lista está longe de ser exaustiva, mas acreditamos que essas são os
pressupostos imediatos para se pensar a reconstrução do Brasil em novas bases e
para nos perguntar, afinal, a quem interessa e a quem não interessa tal
transformação, e quais são as condições e os meios para se implementá-las. As
três primeiras visam gerar os recursos para realização das três subsequentes,
mas há ainda uma questão central a ser resolvida e ela se vincula à questão
anterior sobre quais segmentos e classes sociais têm interesse em garantir as
mudanças nessa direção, e quem se colocará contra esse movimento.
Nos parece evidente que reorganizar o país nessa direção interessa aos
trabalhadores urbanos, à juventude, aos trabalhadores do campo, aos segmentos
médios empobrecidos que vivem no limite de suas possibilidades, às enormes
populações de nossas cidades obrigadas a viver em condições precárias,
sobrevivendo de trabalhos precários e em condições sub-humanas, aos povos
indígenas que lutam pelo direito a sua terra e sua identidade cultural. É por
demais evidente que isto forma a maioria da população brasileira.
Como crescemos lendo Bete Lobo e Clóvis Moura, sabemos que a classe trabalhadora
é essa imensa quantidade de setores que dispõe apenas de sua força de trabalho
como recurso de sobrevivência, grande parte a vendendo em condições precárias ou
não conseguindo vendê-la, tem pelo menos dois sexos (minha querida Amanda Palha
que o diga) e é formada majoritariamente por negros. É sobre as mulheres e os
negros que recai o maior peso desta ordem desigual, injusta e opressiva, não por
acaso são estes segmentos que tem se mobilizado e estado na linha de frente das
lutas sociais em suas mais diferentes formas. No Brasil, a questão de classe é
inseparável da questão feminista e da luta contra o racismo. E devemos afirmar
em igual medida que a luta das mulheres, a luta dos negros, dos povos indígenas,
da causa LGBT, hoje, no Brasil é a luta anticapitalista, uma vez que a forma de
sociabilidade do capital se apropriou funcionalmente da opressão sobre esses
segmentos.
Reorganizar nosso país na perspectiva apontada ataca a raiz da opressão, ainda
que não seja suficiente para erradicar as chagas do machismo, do racismo, da
homofobia etc. No entanto, transformar nossas cidades e o campo colocando as
necessidades humanas no centro de nossas prioridades cria um campo favorável
para o enfrentamento das opressões que ainda cobrarão muita luta e esforços.
Se por um lado esses segmentos tendem a se beneficiar da direção dessas
mudanças, nos parece óbvio que, por outro lado, elas batem de frente com outros
interesses, e eles são facilmente identificáveis: tratam-se dos grandes
monopólios capitalistas da indústria, do agronegócio, do comércio, das finanças,
dos transportes, da mineração, dos serviços, em síntese, da grande burguesia
monopolista, que somados não chegam à 3% da população economicamente ativa e
representam 1% que concentra a riqueza neste país.
Posto nestes termos, o mistério é por que a maioria esmagadora da população se
curva aos interesses dessa minoria. O problema é que essa minoria tem a seu
dispor os meios políticos e ideológicos para garantir sua ordem. Esses meios se
materializam em um conjunto de instituições, formas políticas, aparatos privados
de hegemonia que logram o efeito de apresentar sua proposta plutocrática como se
fosse a vontade e os interesses do país. A eficiência desta dominação se
comprova quando um segmento dos explorados e oprimidos se empenha em defender
aqueles que os exploram e oprimem. É neste ponto que qualquer programa
transformador esbarra na questão do poder político e da forma do Estado burguês
no Brasil.
A atual forma política se mostrou eficiente para garantir a ordem, seja nos
termos de uma “democracia de cooptação”, seja de forma aberta cínica e brutal
como agora. A constatação inevitável para aqueles que apostam na direção das
mudanças é que mesmos estas medidas iniciais, que não são propriamente
socialistas, mas que apontam nesta direção, não são possíveis mantendo-se a
forma política atual.
A própria crise se encarregou de mostrar os limites desta forma que literalmente
faliu e se dissolve diante dos olhos de todos. As famosas premissas que a teoria
política da burguesia se esmerou em defender se transformam em ilusão
consciente, em hipocrisia deliberada. A divisão de poderes, na qual quem governa
não faz a lei, quem faz a lei não governa e quem julga não faz a lei nem
governa, se embaralham para revelar os fios que ligam os fantoches àqueles que
os controlam.
A democracia brasileira se revelou uma fraude. Poderosos interesses econômicos
(aqueles mesmos que descrevemos acima) financiam as eleições, controlam os
eleitos, ditam o que os governos decidem e define o que os magistrados julgam.
Os meandros da democracia representativa criam uma imagem invertida da sociedade
nas instituições “representativas” nas quais as minorias sociais se transformam
em maiorias parlamentares e as maiorias em minorias. Quando o esquema
fraudulento falha por algum motivo, ainda que limitadamente, todos os mitos da
neutralidade jurídica e da ordem institucional são jogados pelos ares,
presidentes são depostos e eliminados da cena política, uma vereadora é
assassinada a tiros, leis e garantias são rasgadas e o arbítrio impera.
A ordem jurídica e a democracia já eram descartáveis para a maioria de nossa
classe em seu cotidiano. Você tem direito a uma vida digna, mas é obrigado a
viver na miséria, você tem direito ao devido processo legal, mas é jovem e negro
e será executado para depois se forjar flagrantes e autos de resistência, todos
são iguais perante a lei, mas você é mulher e negra e está condenada a opressão
e a violência, você é de uma nação indígena e tem direito a demarcação de suas
terras, mas terá que esperar a maioria do congresso do agronegócio definir os
termos da demarcação que lhes retirará o solo sobre o qual vive, sua sexualidade
é livre no âmbito privado, deste que você não saia de casa, do quarto, do
armário, você tem direito a livre manifestação, mas será espancado pela polícia,
se for no campo será assassinado como os 70 companheiros e companheiras que
foram mortos só em 2017, todos têm direito à vida, a menos que você viva no
Pará.
A ordem “democrática representativa” faliu. Assim que essa democracia revela
seus limites, a burguesia que desde o século XVIII a vendia como balsamo
redentor, a descarta em nome do seu domínio sem máscaras e flerta com o
fascismo.
A mudança exige uma nova forma política. Mas que forma é essa? De certa maneira
esta é uma pergunta que esta mal colocada, pois não se trata de adivinhar formas
ideais e utópicas. As formas políticas são a expressão de formas societárias e
das relações sociais de produção e formas de propriedade que estão em sua base.
A própria burguesia não sabia quais as formas que lhe serviriam: demorou muito
para se chegar à ordem institucional e política que agora está ruindo sob seus
pés. Todos os grandes teóricos da democracia, a começar pelo maior deles que é
Rousseau, duvidavam da viabilidade da democracia. A pergunta correta talvez
seja: qual é a fonte de novas formas políticas?
A ordem burguesa quer nos fazer crer que a única fonte do direito e da alteração
das formas institucionais que pretendem organizar a vida são os seus próprios
espaços instituídos – nesse caso, o executivo que governa, o parlamento que faz
leis e o judiciário que julga (com capas pretas chiquíssimas e solenes) a partir
da ordem jurídica instituída. Mas essa própria ordem política e jurídica não
brotou nesses espaços. Eles foram instituídos por um longo processo de
revoluções que se levantaram contra e por fora do que havia de instituído.
O parlamento não tem o monopólio da política. O direito ao voto, antes de norma
instituída, foi luta pelo voto; a igualdade formal entre homens e mulheres foi
antes luta feminista; a união homoafetiva, antes de ser lei é a realidade
daqueles que amam e vivem juntos; a abolição da escravidão foi antes luta
abolicionista e resistência secular dos escravos; os direitos dos trabalhadores,
agora retirados, foram greves, confrontos, sangue de mártires e muita luta; a
moradia é só letra morta do direito sem a luta dos que ocupam o solo urbano; a
terra improdutiva é tomada pelo trabalho de quem luta por ela.
Ao lado da velha forma política constituída existe outra forma política que
contra ela resiste e pulsa. Nas resistências cotidianas dos trabalhadores, nos
movimentos sociais, nas organizações políticas e nos sindicatos, nas massas que
explodem em ira e paixão como em 2013, na vida cultural que canta nossas dores e
nossa alegria, em cada poro em que avida resiste contra a morte e a barbárie
desta ordem desumana.
A questão é em qual forma as pretensões transformadoras irão apoiar sua
governabilidade. Uma coisa é estarmos obrigados a viver em uma ordem política e
jurídica instituída, outra é se rendar aos limites dessa ordem. Quando a vida e
nossos direitos (os que existem e aqueles que necessitamos) se chocam contra as
formas instituídas, é hora de criar novas formas. E vamos criá-las, já as
estamos criando. Nossa classe hoje vive em Quilombos modernos, em parte criados
por nós, parte nos foram impostos, mas é lá que vivemos, criamos nossas leis,
nossos juízos e nosso destino diário.
Chamamos isso de “poder popular”, um conjunto de formas instituídas e a serem
criadas que teria por função apresentar os interesses desta maioria como vontade
política com força e legitimidade. Em um primeiro momento ao lado e muitas vezes
contra a ordem instituída. Formas dentro das quais possamos exercitar uma
democracia direta e substantivamente superior a esta velharia que agora
desmorona. É nessas formas que devemos apoiar a governabilidade para mudar este
país. Elas não servem apenas para levar líderes nos braços, elas são o
verdadeiro poder, sua fonte, sua raiz, a força que os verdadeiros líderes sabem
que são apenas uma expressão.
Nós sabemos como transformar essa catástrofe em um país, mas para isso
precisamos derrotar aqueles que ganham muito transformando este país em uma
catástrofe.
***
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador
do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro
do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser
da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe
Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a
emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora
para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

In
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https://blogdaboitempo.com.br/2018/04/26/nos-sabemos-fazer-um-pais/
26/4/2018

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