quarta-feira, 2 de setembro de 2015

"Desligamento" e reacção interna



"Desligamento" e reacção interna

por Prabhat Patnaik [*]

Há uma visão forte em alguns círculos de esquerda, especialmente em
certos círculos da esquerda europeia, de que qualquer desligamento do
capitalismo global leva a um fortalecimento da reacção interna.
Naturalmente, mesmo na Europa isto não é necessariamente a visão dominante
da esquerda. Exemplo: os comunistas e outros segmentos da esquerda grega
– os quais defendem que a Grécia abandone a Eurozona ao invés de aceitar
as medidas de "austeridade" impostas pela chamada "troika" dos credores –
obviamente não aceitam seriamente esta conexão entre o desligamento de uma
instituição supranacional do capital e a reacção interna; mas ela
representa um ponto de vista significativo. E em vários círculos de
esquerda e de liberais progressistas em países do terceiro mundo como o
nosso, especialmente naqueles círculos que são intelectualmente
influenciados por estes segmentos da esquerda europeia, tal visão
prevalece: ela argumenta que muito embora a globalização seja
prejudicial para as condições de vida do povo trabalhador em países como o
nosso, tem de ser combatida por meios diferentes dos do desligamento, uma
vez que este só pode promover forças reaccionárias internas.

O que são estes meios diferentes nunca é deixado claro e a questão da sua
eficácia na defesa dos interesses do povo nunca é discutida. No entanto,
esta visão, de que o desligamento da globalização, através entre outras
coisas da imposição de controles transfronteiriços sobre fluxos de capital
e de mercadorias, conduz à promoção de forças reaccionárias internas,
detém uma influência considerável. De facto, no festival de Kochi há
alguns anos, Slavoj Zizek, o conhecido filósofo marxista esloveno,
argumentou que qualquer desligamento da globalização, ao promover o
"nacionalismo" e um recuo para dentro do país do terceiro mundo que o
tente, vai contra uma perspectiva internacionalista, ou no mínimo
cosmopolita, a qual é essencial para manter as forças reaccionárias
internas à distância.

Não pretendo entrar na discussão das possíveis alternativas para o
desligamento. Uma vez que os próprios oponentes do desligamento não
explicam tais alternativas, muito menos argumentam explicitamente a favor
delas, não precisamos entrar nesse território. Além disso, é lógico que
não havendo movimentos internacionais de camponeses e nem realmente
movimentos internacionais eficazes de trabalhadores, para resistir aos
efeitos da globalização, isto é, uma vez que a nação permanece como a
arena primária da resistência de classe contra os efeitos da globalização,
se tal resistência tiver êxito em chegar ao poder ela não tem alternativa
senão desligar-se da globalização. No entanto, o que pretendo fazer não é
repetir estes pontos óbvios mas ao invés disso chamar a atenção para um
"paradoxo aparente" que implica toda esta questão. E este consiste no
facto de que não é o desligamento da globalização mas sim a própria
globalização que conduz aos fortalecimento de forças reaccionárias em
países como o nosso; de que não é o "nacionalismo" dirigido contra a
globalização, o qual é uma expressão da hegemonia do capital financeiro
internacional, que promove a reacção por "olhar de dentro", mas ao invés
disso é o próprio capital financeiro internacional que promove a reacção
como meio de reter sua hegemonia.




PARALELO PERTURBADOR

Aqui há de facto um paralelo perturbador entre a crítica do Banco Mundial
à estratégia de substituição de importações do período dirigista, a qual
levou ao desenvolvimento de auto-suficiência significativa em tecnologia e
na capacidade de produzir bens, como sendo a de "olhar para dentro",
portanto errada, e o argumento destes segmentos da esquerda de que o
desligamento da globalização, sendo "olhar para dentro", é errado porque
conduz à reacção interna. Dizer isto não é difamar estes segmentos de
esquerda, mas simplesmente sublinhar dois pontos: primeiro, "olhar para
dentro" e "olhar para fora" não são expressões de classe; utilizá-las sem
levar em conta o contexto de classe pode portanto camuflar aspectos
cruciais da realidade social. Segundo, na medida em que estas expressões
são utilizadas apesar da consciência da realidade social, uma vez que
"olhar para fora" significa necessariamente forjar laços fortes com um
mundo dominado pelo imperialismo, aqueles segmentos da esquerda que
desaprovam uma trajectória de "olhar para dentro" estão a subestimar os
efeitos deletérios da dominação imperialista.

Eles assim o fazem por duas possíveis razões: ou porque não reconhecem
de todo a presença do imperialismo como um fenómeno (embora possa
reconhecer "o império" como uma entidade empírica, ou reconhecer e
condenas "aventuras imperialistas" individuais tal como no Iraque onde os
países avançados estavam de olho nos recursos petrolíferos), ou porque,
baseando-se nos escritos de Marx sobre a Índia no princípio da década de
1850, vêem um "lado positivo" na exposição do "terceiro mundo" às
principais potências capitalistas. Se bem que este "lado positivo" possa
ter sido historicamente pertinente, ele não tem relevância uma vez que
os povos do terceiro mundo levantaram-se em revoltas anti-imperialistas a
fim de impor a descolonização. (De facto, pretender um "lado positivo"
para o imperialismo depois de se ter verificado a descolonização
equivale a negar o papel histórico positivo da própria descolonização).

Uma vez que aceitamos a natureza permanente do imperialismo e vemos a
actual globalização como uma expressão do mesmo, embora naturalmente num
contexto mudado, o desligamento da globalização num mundo onde resistência
e lutas são organizadas nacionalmente torna-se um ítem necessário na
agenda. E também constitui o meio para ultrapassar, ao invés de abrir
caminho, a reacção interna.

Isto é óbvio no nosso próprio contexto. A luta anti-colonial na Índia
activou o povo e mobilizou-o em torno de uma agenda que incluía entre
outras coisas uma pessoa-um voto, certos direitos fundamentais para todo
cidadão, igualdade diante da lei sem consideração de casta, religião e
género e separação da religião do Estado, toda esta agenda representou uma
ruptura drástica em relação à desigualdade social praticados durante
milénios. Grande parte desta agenda está hoje ameaçada, em perigo de ser
minada de facto pelas forças comunais que ocupam as principais posições
no Estado, com a ajuda da oligarquia corporativo-financeira que está
alinhada com o capital financeiro internacional. Estas forças comunais,
vale a pena recordar, estiveram completamente arredadas da luta
anti-colonial, nem um único dos seus ícones e líderes esteve alguma vez
nela envolvido (e Savarkar, que esteve envolvido a princípio, dela
dissociou-se depois de apresentar uma "desculpa" aos governantes
coloniais).

Dito de modo diferente, a "modernidade" no sentido da ultrapassagem da
herança de milénios de desigualdade institucionalizada e o entendimento da
noção de uma fraternidade de "cidadãos" iguais, embora representando por
si mesma mais o ideal do que os projectos da ordem burguesa, não pode ser
alcançada nem através de uma ligação ao imperialismo, nem sob a égide da
burguesia interna que forja esta ligação com o imperialismo e com a sua
agência principal na era da globalização, isto é, o capital financeiro
internacional. O progresso rumo à própria "modernidade" é uma tarefa
delegada à esquerda em sociedades como a nossa. Por isso ela tem de lutar
contra a hegemonia do capital financeiro internacional e, portanto, pelo
desligamento de uma ordem por ele dominada.

O "capital financeiro", enfatizou Lenine, quer sempre a "dominação". Por
isto ele deve dividir o povo, promover o comunalismo, minar a activação
política do povo e subverter todas as tendências para a realização de uma
"fraternidade de cidadãos iguais", a qual é o declarado ideal da
democracia. A luta contra o capital financeiro é necessariamente
inclusiva, ao passo que a hegemonia do mesmo é necessariamente
acompanhada pela imposição do divisionismo, pelo farejar das linhas de
fractura da sociedade pré existente a fim de exacerbá-las.

Mas então, pode-se perguntar, como explicar a abundância de movimentos
fundamentalistas e reaccionários que encontramos nestes dias por todo o
terceiro mundo, os quais posicionam-se em absoluto contraste com o
humanismo aparentemente professado e pregado pelos países capitalistas
avançados (aos quais designamos como potências imperialistas) que
posteriormente aparecem como oásis de "modernidade" e tolerância dentro
de um oceano de fanatismo e intolerância? Subjacente a este fenómeno está
um facto de considerável importância, nomeadamente a destruição
sistemática pelas próprias potências imperialistas do surto progressista
que representou a luta anti-colonial no terceiro mundo, da "modernidade"
que a luta anti-colonial representou.

IMPERIALISMO, PAI DOS FANÁTICOS

Todas as arenas principais do fundamentalismo islâmico de hoje são
lugares que estiveram outrora na vanguarda de lutas progressistas do
terceiro mundo e cada uma de tais lutas foi destruída pelo imperialismo. O
regime democrático laico de Mossadegh no Irão, apoiado pelo Partido Tudeh,
foi derrubado, com a ajuda do ayatola Kashani, porque ousou nacionalizar o
petróleo. O partido Baath de Saddam Hussein foi ajudado pelo imperialismo
a derrubar o regime progressista do general Kassem no Iraque, o qual fora
apoiado pelos comunistas; e posteriormente o próprio regime de Saddam
Hussein que pelo menos era laico foi derrubado, mais uma vez pelo
imperialismo, o qual deliberadamente promoveu a divisão xiitas-sunitas a
fim de fortalecer sua posição. O regime do presidente Sukarno, na
Indonésia, o qual tinha o apoio dos comunistas, foi derrubado pelo
imperialismo num sangrento golpe militar de Suharto, ao qual se seguiu um
massacre que matou meio milhão de comunistas, e hoje o fundamentalismo
faz sentir sua presença na Indonésia. O Sudão, outro lugar onde forças
fundamentalistas estão a levantar a cabeça, tinha o maior Partido
Comunista da África, mas um golpe de Nimieri apoiado pelo imperialismo
tomou o poder e o líder comunista, camarada Mahjoub, foi executado. E é
claro que no Afeganistão foi o imperialismo que promoveu a jihad contra
o regime apoiado pela União Soviética e que desovou o Taliban e a Al
Qaeda.

Em suma, o imperialismo, que por toda a parte aparece como o benigno
defensor de "valores humanos" contra os fanáticos fundamentalistas, é ele
próprio o pai dos fanáticos. Ele sistematicamente destruiu todos os
regimes progressistas, laicos e nacionalistas no terceiro mundo, enquanto
promovia directamente os fanáticos fundamentalistas ou deixava o cenário
vazio preparado para eles.

Isto não quer dizer que os regimes laicos nacionalistas do terceiro mundo
não tivessem as suas próprias falhas, fraqueza e contradições. Sabemos na
Índia do compromisso com o latifundismo (landlordism) em que entrou o
governo pós independência, compromisso esse que esvaziou a viabilidade do
regime económico dirigista. Histórias semelhantes podem ser repetidas a
partir de outros contextos. Mas o ponto básico é isto: nunca foi
permitido aos países do terceiro mundo resolverem suas próprias
contradições e antagonismo de classe. O imperialismo, inevitavelmente,
entrou por toda a parte; interveio por toda a parte e o resultado da sua
intervenção foi o fortalecimento por toda a parte das forças da reacção.
Portanto, ver a reacção como o produto de uma estratégia de "olhar para
dentro", e uma ultrapassagem da reacção como ficando facilitada pela
ligação ao imperialismo, é ignorar um ponto crucial acerca da realidade
contemporânea.


30/Agosto/2015

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2015/0830_pd/“de-linking”-and-domestic-reaction .
Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
http://resistir.info/patnaik/desligamento_30ago15.html

2/9/2015

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