quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O mito das 'cidades-fantasma' chinesas





Marcelo Justo

Avenidas largas, sem carros nem pessoas, enormes edifícios desabitados, parques
impolutos, centros comerciais gigantescos e vazios. Essa imagem de filme de
ficção científica é o que se vê nas chamadas “cidades-fantasma” chinesas, que os
meios de comunicação dos países desenvolvidos apresentam como exemplo do absurdo
e faraônico desperdício estatista.

Como reflexo da ambivalência ocidental para com a China, a segunda maior
economia mundial nominalmente comunista, alguns dos grandes meios britânicos,
como o “Business Insider” e o “Daily Mail”, mostraram supostas cidades
espectrais, como Dantu, no leste do país, “vazia durante mais de uma década”,
para consolidar sua batalha contra todo tipo de intervenção estatal.

Segundo o que indicou à Carta Maior o jornalista Wade Sheppard, autor de “Ghost
cities of China” (Cidades fantasmas da China) e do blog vagabondjourney, se
trata de uma imagem simplista e distorcida. “Essas cidades foram notícia porque
contribuíam para gerar a ideia de um sistema demente, que construía monstros
urbanos não habitados por ninguém. Quando essas cidades são habitadas, como está
acontecendo agora, deixam de ser notícia porque mostram que, por trás dessas
iniciativas, existe um projeto de urbanização diferente”, indicou Sheppard.

Esse projeto “diferente” está presente, de forma evidente, na consigna oficial:
“construamos primeiro, para que se habitem depois”. Segundo as cifras oficiais,
foram levantadas 600 cidades na China, desde que Mao Tse Tung assumiu o poder,
em 1949. “A palavra `cidade´ é um termo administrativo na China. Quando dizemos
que há 600 novas cidades, significa que 600 zonas rurais foram reorganizadas
como cidades. Em muitos casos, são novos distritos, bairros ou municípios, para
milhões de pessoas. Em outros, são novas cidades, próximas a algum centro
importante. Mas todos os casos têm uma característica em comum. Foram
construídas a partir do zero, sem ter sequer um residente ou alguém que
expressasse o interesse em fazê-lo”, comenta Sheppard.

As fotos satelitais que ganharam espaço nos jornais “Business Insider” e “Daily
Mail” para denunciar o caso – publicadas em dezembro de 2010 – sobre o suposto
desperdício monstruoso dos comunistas chineses, representavam – como toda foto –
apenas um momento de um processo. A situação completa só pode ser vista contando
tudo aquilo que ocorreu: hoje, aquela Dantu que a matéria retratou como uma
cidade “sem carros nem moradores”, tem mais de 380 mil habitantes.

Bastaria esperar alguns anos e enviar um repórter para que os meios ocidentais
pudessem verificar as mudanças. “Eu a visitei em 2012, e encontrei uma cidade
ativa, com os sinais vitais em perfeita ordem. Se comparada com outras cidades
chinesas, podemos ver que está menos povoada, mas havia gente nas ruas, negócios
abertos, gente comendo miojo, roupa estendida nas janelas das casas. De
cidade-fantasma, não tinha nada”, relata Sheppard.

Um informe recente do banco Standard Chartered mostra que Dantu, que
quadruplicou sua população nos últimos anos, não é uma exceção. Todas essas
“cidades fantasmas” que tanto alarmaram os meios ocidentais, formam parte desse
sistema diferente de planificação urbana. Entre 2012 e 2014, na região de
Zhengdong, um novo distrito do tamanho de San Francisco, na província de Henan,
na zona central do país, duplicou sua população. A prefeitura de Changzhou, no
leste da China, comprovou recentemente um aumento de um terço da sua população.
Kangabashi, uma das mais conhecidas “cidades fantasmas”, na província da
Mongólia Interior, terá cerca de 300 mil habitantes em 2020, e o distrito de
Nanhui, em Shanghai, cerca de 800 mil.

Em seu informe, o banco explica que essa população em aumento é parte da
estratégia urbanística da China. “É um projeto que tem três fases. Na primeira,
a prioridade é o concreto e a infraestrutura básica de uma cidade. Em seguida,
uma segunda fase de crescimento populacional e incremento das facilidades
urbanas e comerciais necessárias. Finalmente, uma etapa final de maduração e
plena ocupação do lugar. O processo tarda normalmente entre 10 e 15 anos”,
afirma o Standard Chartered.

Sobre a contradição

Longe de ser um capricho dos funcionários com poder excessivo, o debate sobre a
urbanização da China retrocede a um famoso texto de Mao Tse Tung, de 1937,
“Sobre a Contradição”, escrito durante a guerra, com as forças nacionalistas
agindo contra a ocupação japonesa, no qual citava a contradição entre campo e
cidade como um dos principais desafios para o comunismo.

Entre a tomada do poder, em 1949, e a chegada de Deng Xiaoping, em 1978, foram
construídas umas 100 cidades. Esse ritmo se acelerou com a reforma econômica dos
Anos 80, e alcançou seu ritmo atual com a urbanização nacional do começo deste
século, o que já resultou numa mudança demográfica sem precedentes: pela
primeira vez, em sua história milenária, existem mais chineses morando nos
centros urbanos que no campo.

O último plano de urbanização nacional, que foi iniciado em 2014 e deveria ser
concluído em 2020, foi anunciado em março do ano passado, com um custo de 7
trilhões de dólares – quase a metade do PIB dos Estados Unidos. O plano forma
parte da transição chinesa, de uma economia baseada nas exportações a outra mais
centrada no consumo, e que constitui uma fonte de demanda para a economia
global, devido às necessidades de matérias-primas e produtos elaborados
implícitas em qualquer programa urbanizador.

Num país das dimenções geográficas (a terceira a nível mundial) e populacionais
(a primeira) da China, todo projeto está condenado a uma considerável
porcentagem de erro. O atual modelo urbanístico produz grandes sucessos, como
Shenzhen, um vilarejo de pescadores, que se tornou um centro financeiro,
exportador e importador, ou Pudong, um distrito de Shanghai, construído nos Ano
90, que permaneceu quase vazio durante mais de uma década, e que hoje tem cinco
milhões de pessoas.

Junto com esses casos, também se agregam os de caprichos arquitetônicos
imitativos, como a “Manhattan chinesa”, na que se transformou a cidade de
Tianjin, no norte do país, e Thames Town, uma réplica de cidade britânica criada
em Shanghai.

Mais grave ainda são os planos urbanísticos, que implicaram no deslocamento de
milhões de camponeses, com frequentes conflitos surgidos da coerção observada na
execução de alguns dos projetos, ou a escassa compensação oferecida.

O peculiar sistema de financiamento fiscal chinês explica de certa forma esses
problemas. Segundo o Banco Mundial, os municípios recebem um montante fixo do
governo central, equivalente a 40% da arrecadação: necessitam financiar por si
mesmos 80% dos seus gastos. A compra de terras dos camponeses para serem
utilizadas em novos desenvolvimentos urbanos cumpre essa função. Em 2012, foram
equivalentes a 438 bilhões de dólares em recursos.

Além desse fator, existe também o do prestígio alcançado com projetos
urbanísticos dessa envergadura, capazes de impulsar uma carreira dentro da
hierarquia partidária. O atual primeiro-ministro, Li Keqiang, é um especialista
em desenvolvimentos urbanos, que ascendeu vertiginosamente na estrutura do
Partido Comunista graças à transformação de Zhengzhou num novo distrito da China
Central, em 2003. “Muitas vezes, o processo de construção se acelera, para que
seja completado no período em que um líder partidário se encontra no comando do
projeto”, comenta Sheppard.

Hoje, há dez grandes urbanizações propostas, em lugares estratégicos do país,
projetos urbanos desenhados para receber entre 22 e 100 milhões de habitantes.
Mas também há uma reformulação do modelo. “Os últimos quinze anos foram de um
desenvolvimento urbano galopante. Agora, estão pondo um pouco o freio. Hoje,
muitas das urbanizações são financiadas por companhias privadas ou mistas, o que
é uma mudança fundamental. Existe mais planificação. Existe muito mais controle
do governo central”, indicou o jornalista, em entrevista à Carta Maior.

Tradução: Victor Farinelli

In
CARTA MAIOR
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Cidades/O-mito-das-cidades-fantasma-chinesas/38/34430
8/9/2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário