terça-feira, 29 de setembro de 2015

Ser Docente/Investigador no país da austeridade ***




Catarina Casanova


A política de sucessivos governos para o Ensino Superior e a Investigação criou
no nosso país um quadro cerceador da democratização e do desenvolvimento,
medíocre, burocrático e gritantemente subfinanciado. Se, por absurdo, um tal
quadro tivesse sido generalizadamente aplicado há século e meio, teria
inviabilizado alguns dos mais notáveis avanços da ciência, e teria mantido o
Ensino Superior amarrado aos interesses e concepções do “ancien régime”.




1. Investigação e “excelência”

Era uma vez um jovem que gostava de história natural e de estudar fósseis.
Passava a vida no campo ou num gabinete a comparar asas de aves ou “perninhas” e
“antenas” de borboletas. Fascinado pela enorme diversidade do mundo biológico
que o rodeava, este nerd mergulhava a fundo na sua paixão: o estudo da
morfologia, comportamento e evolução das espécies. Se vivesse nos dias em que a
“excelência” obedece sobretudo a critérios economicistas, este jovem nunca teria
conseguido obter financiamento para embarcar no navio Beagle, cartografar a
costa da América do Sul e andar pelo arquipélago das Galápagos. Este nerd é o
Charles Darwin e jamais teria obtido financiamento para um projecto I&D
(Investigação e Desenvolvimento) para estudar a morfologia dos tentilhões, as
suas asas, os seus bicos.

No mundo da “excelência” tudo é contabilizado em outputs: patentes, artigos,
livros e outros “produtos”, sendo que nas revistas de “open-access” o autor tem
que pagar pela publicação dos seus trabalhos. As verbas destinadas à
investigação são no mínimo ridículas. A FCT (Fundação para a Ciência e
Tecnologia), uma das entidades financiadoras, caminha a passos largos para
acabar com a ciência em Portugal, metendo-a a reboque do dinheiro: não é sequer
possível comparar a dotação de fundos para a área da biotecnologia ou da
biomedicina (que estão ligadas às patentes e à criação de medicamentos e outros
produtos que movimentam grandes somas de capital), por exemplo, com as ciências
sociais (que poucos fundos recebem). Mas dentro da biomedicina também há
discriminações: uma coisa são os fundos para investigar parkinson ou alzheimer,
outra são os fundos para investigar a malária ou outra qualquer patologia do
chamado 3º mundo. Afinal no “3º mundo” não há gente com dinheiro para comprar os
medicamentos à indústria farmacêutica e às grandes corporações que estas
integram.

O jovem Charles Darwin também teria que se sujeitar a nunca saber quando
abririam concursos para submeter os seus projectos ou como estes seriam
classificados: a FCT não tem agenda e inventa novas classificações. De
“Excelente”, que era a classificação máxima, passou a existir, por exemplo, o
“Outstanding”; qualquer dia teremos o “Miraculous”. Mas se ainda assim Darwin
obtivesse financiamento para um projecto seu, esperava-o depois um longo e
tortuoso caminho: a burocracia para conseguir fazer cumprir planos de trabalho,
cronogramas e orçamentos, que tantas vezes implica significativos atrasos para a
componente científica de um projecto.

2. Docência, gestão não colegial e antidemocrática

Vivendo no nosso tempo e no nosso país Darwin teria que ter tempo para leccionar
e para participar nos chamados cargos de “gestão” (variáveis que compõem a
avaliação do desempenho). Poderia era acabar sem tempo para investigação, já que
existem muitas faculdades onde uma grande percentagem dos docentes dá aulas
muito para além daquilo que é legalmente permitido. O desrespeito pelo ECDU
(Estatuto da Carreira Docente Universitária) é algo a que se fecha os olhos
desde que isso implique roubar e explorar ainda mais aqueles que trabalham.
Dando aulas a mais, lutando diariamente para conseguir ter os seus projectos I&D
a funcionar, supervisionando o trabalho dos seus orientados e desdobrando-se
para se manterem a par das actualizações do conhecimento, os docentes afundam-se
em preenchimentos de papelada ou plataformas electrónicas ditadas pelos
burocratas. Em algumas universidades, este jovem até teria que ser um
docente/investigador que paga o seu próprio salário através de fund-raising.
Horários desregulados e noturnos seriam outro dos “mimos” reservados a este
jovem: docentes com dias de aulas que têm início às 8:00 da manhã e que terminam
às 22:30 são muitos.

Adicionalmente, com a imposição do RJIES (Regime Jurídico das Instituições do
Ensino Superior), o ambiente de trabalho tem vindo a piorar. A legislação foi
feita por gente que não quer a democracia nas escolas, que impôs as propinas,
que reduziu a Acção Social a um valor tão ridículo que é praticamente
inexistente. Assim temos uma universidade para quem tem dinheiro: o conhecimento
não é para todos, muito menos para os filhos da classe operária, dos
assalariados. A esses resta o politécnico e o ensino profissional. Por sua vez
os alunos de Darwin aguardariam em longas filas de espera para aquecer, no
micro-ondas da faculdade, a comida que levariam de casa. Eles e alguns
professores. Porque já nem o “preço social” das refeições universitárias está ao
alcance de todos.

3. O papel das universidades e a mediocridade como “excelência”

Bolonha, o RJIES e o novo ECDU são tudo peças de um mesmo puzzle que não só
abrem a porta para a vergonhosa privatização do Ensino Superior Público (ESP) e
do conhecimento, transformando-os em mercadoria, como metem a liberdade
académica no caixote do lixo. Com Bolonha as universidades passaram a ensinar
cada vez menos a pensar e cada vez mais a executar, formatando o pensamento.
Afinal numa sociedade burguesa as universidades têm um papel muito claro: são um
veículo de transmissão do pensamento dominante, que é apresentado como único.
Quem luta pela defesa dos seus direitos e dos direitos dos colegas terá que
trabalhar muitíssimo mais para chegar ao topo da carreira, e é se chegar. Se for
mulher e mais jovem, ainda pior. Afinal em alguns estabelecimentos do ESP o topo
da carreira cada vez menos reflecte o valor científico e pedagógico dos
envolvidos e é cada vez mais um acto político. Quanto a Darwin… No país da
austeridade, onde a mediocridade é a excelência, A Origem das Espécies nunca
teria visto a luz do dia.


Fonte:
http://manifesto74.blogspot.pt/2015/06/ser-docenteinvestigador-no-pais-da.html

IN
O DIARIO.INFO
http://www.odiario.info/?p=3783
29/9/2015

*** Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência.

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