quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O choque de realidade sofrido pelos jornalistas demitidos



Um dia após o passaralho de dezenas (talvez centenas) de jornalistas na redação
do Grupo Globo, o tema ainda reverbera forte nas redes sociais e entre
jornalistas. Repórter com larga experiência em vários jornais do país, Marcelo
Migliaccio faz uma análise dura, porém realista, do quanto a perda do emprego
provoca em significativa parcela do universo profissional que, não raro,
confunde o cargo, o posto alcançado, a ascensão profissional, com a própria
personalidade. O choque de realidade que espera alguns daqueles que perderam
seus empregos, e ingenuamente se deixaram confundir, pode parecer duro, mas se
transformará necessariamente em um grande aprendizado. Leia o artigo.


Marcelo Migliaccio


A demissão é um choque de realidade. Você passa centenas, milhares de manhãs,
tardes, noites e até madrugadas enfurnado numa redação tensa e claustrofóbica.
Perde os melhores momentos da infância de seus filhos equilibrando-se sobre um
tapete que seus amigos virtuais puxam dissimuladamente, dando-lhe tapinhas nas
costas toda segunda-feira e perguntando como foi o fim de semana.

Não importava pra você se o jornal em que você trabalhava apoiou dois golpes de
estado e só desistiu na última hora de liderar o terceiro porque ia pegar muito
mal. Sentindo-se parte daquela família, você relativizava toda a sacanagem. O
que queria mesmo era poder entrar num shopping sábado à tarde e posar de classe
dominante. Sim, você era o rei do supermercado, carteira cheia, empáfia,
carrinho abarrotado. Venci, você pensava, com cuidado para o seu orgulho besta
não dar na vista.

Parecia até que era dono de alguma coisa além da sua força de trabalho. Sim,
você confundiu tudo: uma coisa é o patrão, o dono da parada, a outra é você, o
empregado, peça descartável como aquele faxineiro que coloca papel higiênico nos
banheiros da redação. A culpa não é sua, qualquer um ficaria inebriado. Sei,
seus textos são ótimos, nesses anos você fez isso e aquilo, entrevistou grandes
astros, ministros, até presidentes. Mas isso tudo e nada para o mandachuva é a
mesma coisa. Seu belo currículo não resistiu à tesoura de um tecnocrata e Prêmio
Esso não tem valor em nenhuma padaria da cidade.



Você ontem caiu das nuvens (bem, é melhor do que cair do segundo andar). Pelos
seus anos de dedicação e suor, recebeu um rotundo pontapé no traseiro. Agora,
ninguém vai mais convidar o "Fulano do Jornal Tal" para um almoço grátis. Porque
o convidado na verdade era o Jornal Tal e não o Fulano. Entradas para teatro e
cinema? Esqueça. Daqui em diante, ou você paga o ingresso ou fica na calçada da
infâmia.


Não, amigo, você não é classe dominante, mesmo que tenha defendido os ideais
dos seus patrões com unhas e dentes e a maior convicção do mundo. Suas ideias
neoliberais talvez não façam mais sentido a partir de hoje. Será preciso encarar
os vizinhos sem aquele poderoso crachá no peito. É hora de engolir o orgulho.
Tem um gosto meio amargo, mas você consegue.
Marcelo Migliaccio é jornalista com passagens nos principais jornais do país.

Via Conexão Jornalismo e lido no Jornal GGN em 3/9/2015

In
PORT.PRAVDA.RU
http://port.pravda.ru/cplp/brasil/15-09-2015/39472-jornalistas_demitidos-0/
15/9/2015

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