sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Os povos da Ex-URSS       

 
Miguel Urbano Rodrigues





O desaparecimento da União Soviética foi uma tragédia para a Humanidade. Foi
acelerada pela traição de Gorbatchov e pela guerra não declarada do imperialismo
norte-americano, mas numerosos outros factores contribuíram para ela. Para a
tentarmos entender, e também a para tentarmos entender a Rússia contemporânea é
imprescindível, nomeadamente, um conhecimento mínimo da história dos povos que
habitam o seu gigantesco território.


Não há precedente histórico para o Estado multinacional que foi criado na União
Soviética após a Revolução Russa de Outubro de 1917.
Finda a guerra civil, povos de 126 nacionalidades conviveram durante muitas
décadas, quase sempre pacificamente, no vastíssimo espaço euroasiático
soviético. Esses povos falavam 180 idiomas diferentes, de quatro famílias
linguísticas.
Como foi possível?
As tentativas de explicação desse desafio à logica da História são muitas e
contraditórias.
O gigantismo do país foi o desfecho de circunstâncias históricas que não eram
previsíveis quando em Kiev, na Ucrânia, surgiu no seculo IX o principado de Rus,
berço do futuro estado, criado – segundo a maioria dos historiadores - pelos
varegos, escandinavos que ali chegaram descendo grandes rios.
A Rússia medieval teve como referência cultural e religiosa Bizâncio, a Roma do
Oriente. Mas permaneceu um país atrasado no qual pequenos principados raramente
se uniam para enfrentar os invasores estrangeiros. Estes vinham do oriente,
nómadas asiáticos, e do ocidente, sobretudo a avançada para leste de povos
germânicos.
No seculo XIII, os mongóis de Batu Khan destruíram a s principais cidades, de
Moscovo a Kiev, numa orgia de barbárie. Esse povo de nómadas chegou para ficar.
Durante quase três seculos, os Kanatos dos príncipes gengiskanidas dominaram
grande parte da Rússia, impondo pesados tributos às populações.
Não se fundiram com os russos. Na Ásia os mongóis e turcos da conquista
diluíram-se, descaracterizaram-se no contacto com grandes civilizações. Na China
sinizaram-se; na Pérsia tornaram-se muçulmanos. Na Rússia atrasada, a cultura e
a religião ortodoxa não os atraíram; abraçaram o Islão.
Foi somente no seculo XVI que o czar Ivan IV, ao tomar Kazan, pôs fim ao
senhorio da Horda de Ouro mongol.
Mas a herança genética dos invasores asiáticos foi profunda. Milhões de russos
descendem de um prolongado processo de mestiçagem. Os avós paternos do próprio
Lenin eram calmucos, um povo turco mongol.
Sem acesso ao Báltico e ao Mar Negro, acossada a Ocidente pela Ordem Teutónica,
por polacos e lituanos, e mais tarde pelos suecos, a sul pela Turquia, a Rússia
iniciou a sua expansão para leste.
A imensidão siberiana era um território praticamente despovoado. Na época em que
os russos avançaram para além dos Urales, o total de habitantes da Sibéria,
segundo os demógrafos, rondaria os 300 000. A maioria, de origem turca,
nomadizava. Eram tribos remanescentes das grandes invasões que na Alta Idade
Média tinham avançado para a Europa, sobretudo a partir do Altai.
Os pioneiros russos, deslocando-se a pé, a cavalo, de barco ou de trenó
consoante a estação, atingiram rapidamente o Ártico e em 1640 fundavam Irkutsk,
e uma década depois a galopada conquistadora desembocava no Pacifico.
Mas o imperialismo russo somente assumiu contornos de politica de estado um
século depois, com Pedro I, cognominado o Grande. É no reinado desse czar que a
Rússia expulsa os suecos de Riga e do golfo da Finlândia, onde funda São
Petersburgo. As guerras com a Turquia abrem-lhe simultaneamente o acesso ao Mar
de Azov e ao Mar Negro. A Ucrânia, que estava quase toda sob ocupação polaca, é
incorporada na Rússia.
A partir de meados do seculo XVIII, na época da czarina Catarina, a politica
imperial altera- se profundamente.
As conquistas no Cáucaso, apos guerras contra a Turquia e a Pérsia, e
posteriormente a ocupação do Cazaquistão em regime de protetorado, e a conquista
dos emirados da Asia Central, densamente povoados por turcos e iranianos,
motivaram atitudes diferenciadas. Na Arménia e na Geórgia, nações cristãs, os
russos foram recebidos como libertadores.
Outra foi a atitude das populações no Azerbaijão, em pequenos estados do Cáucaso
e nos emirados do Turquestão onde o Islão estava enraizado há mais de um
milénio.
A administração russa adotou aí políticas de recorte colonial típico. Os colonos
russos não se misturaram com os autóctones; instalaram-se em bairros diferentes.
Os governadores imperiais permitiram que as autoridades locais permanecessem em
funções e para os muçulmanos foram mantidas as leis islâmicas. Os emirados
mantiveram uma autonomia fictícia até à Revolução de Outubro, que depôs os
príncipes gengiskanidas.
Na brutalidade da repressão o colonialismo russo na Ásia Central apresentou
semelhanças com o dos ingleses, franceses e portugueses na Africa subsaariana. A
continuidade geográfica dos territórios anexados imprimiu-lhe porem
características peculiares, diferentes do europeu, marcado pelo afastamento das
colónias da metrópole europeia. Na Asia Central não se registou, porem, até ao
final da II Guerra, uma política de russificação.
A queda da autocracia czarista levantou uma vaga de esperança nas populações não
russas do império. Mas, apos a Revolução de Fevereiro, as mudanças foram mínimas
com poucas exceções. Na Europa as áreas ocidentais estavam aliás parcialmente
ocupadas pelos alemães.
O quadro somente mudou com a Revolução de Outubro.
O Decreto sobre a Paz, de 26 de Outubro de 17, condenou todas as anexões
realizadas pelas grandes potências europeias. E dias depois, a 2 de novembro, o
Decreto sobre as nacionalidades definiu os princípios que a jovem república
pretendia impor nas relações com as populações não russas. Incluíam o direito à
autodeterminação dos povos que optassem pela independencia. Contrariando
influentes membros do Comité Central, Lenin não se opôs à independência da
Finlândia e à restauração da Polónia como estados soberanos.
Lenin via a URSS como uma união de republicas iguais na qual a Rússia teria os
mesmos direitos que as outras. A sua preocupação com a questão nacional era tão
grande que nos anos do exilio incumbiu Stalin de escrever um trabalho sobre o
tema que foi posteriormente editado em livro*. Lenin elogiou o ensaio de Stalin,
mas as ideias de ambos sobre a questão nacional não coincidiam.
Nos países bálticos a situação era muito complexa. Surgiram três tendências
antagónicas. A maioritária pronunciou-se pela independência. Uma minoria
revolucionária bateu-se pela integração na União Soviética, e um sector da
burguesia agrária pela ligação à Alemanha. A intervenção da esquadra britânica
contribuiu decisivamente para a vitória dos partidários da independência. Nos
três países, dois seculos de administração russa não tinham abalado as
superestruturas culturais. A Estónia, fino- ugria, e a Letónia e a Lituânia,
indo-europeias, mantinham os seus idiomas e o alfabeto latino.
No Cáucaso e na Asia Central a integração na Rússia revolucionária não foi
imediata.
No Daguestão, na Chechénia, na Inguchia, terras muçulmanas, imperou o caos
durante anos.
Em 1918, apos a derrota da Turquia, tropas britânicas ocuparam o Azerbaijão, a
Geórgia e a Arménia e reprimiram as forças revolucionárias favoráveis à
Revolução de Outubro. Sob a proteção das baionetas inglesas, os países da
Transcaucásia proclamaram a independência. Mas, quando os britânicos se
retiraram, os comunistas tomaram o poder no Azerbaijão e em 1920 o país optou
pela integração na Rússia soviética. Na Geórgia a situação permaneceu tensa
durante o breve governo social-democrata que ali se instalou. Foi a intervenção
do exército vermelho em 1921 que precedeu a adesão à República Russa.
Na Arménia, onde o sentimento nacional era muito forte, reforçado pelo genocídio
dos arménios na Turquia, foi também a intervenção do exército vermelho em 1921
que permitiu a criação de uma república soviética, pondo termo a uma prolongada
guerra civil.
Mas Lenin tornou público o seu desacordo da repressão no Cáucaso, criticando com
severidade os métodos ali aplicados por Stalin.
Na Ásia Central as populações muçulmanas festejaram a queda da autocracia
czarista, mas em l918 a república socialista soviética do Turquestão teve uma
existência breve, tal como as repúblicas de Bukhara e do Korassão.
A guerra civil foi ali prolongada e o almirante Koltchak, líder da
contrarrevolução, chegou a controlar parte da Ásia Central.
Durante quase quatro anos imperou o caos na Região.
Somente quando a União Soviética foi criada em Dezembro de 1922, as populações
do antigo Turquestão voltaram a viver em paz.
O processo de integração da Ucrânia na Rússia soviética foi talvez o mais
traumático. Os nacionalistas de Petliura defenderam a criação de um Estado
independente contra a opinião da minoria russófona do leste do país.Com a
ocupação alemã a confusão aumentou. A Ucrânia foi um dos principais cenários da
guerra civil entre os brancos e as forças revolucionárias, mas os bolcheviques
venceram.
O RENASCIMENTO DOS NACIONALISMOS
Sucessivos governos da União Soviética afirmaram após 1945 que a questão
nacional tinha sido definitivamente resolvida.
Simulavam ignorar a realidade.
Durante a guerra, os alemães foram bem recebidos por uma parcela importante das
populações bálticas. O mesmo ocorreu inicialmente na Ucrânia. Mais de 100 000
ucranianos lutaram contra a URSS, muitos nas SS nazis. E os guardas de muitos
campos de concentração alemães eram ucranianos colaboracionistas.
É um fato que na Europa e na Ásia foi pacífico durante décadas o convívio da
maioria russa com as minorias nacionais. Mas a conceção de Lenin, incorporada na
Constituição da URSS, sobre a igualdade de direitos dos povos da União nunca foi
respeitada. O que prevaleceu foi, na prática, a conceção do federalismo
internacionalista de Stalin, hegemonizado pela Rússia.
O homo soviéticus que deveria ser uma criação do socialismo não passou de
aspiração.
No final da II guerra mundial, as feridas abertas por decisões de Stalin,
incompatíveis com os princípios que regulamentavam a questão nacional, não
estavam cicatrizadas.
A expulsão para a Ásia Central dos Tártaros da Crimeia, dos alemães do Volga e
de alguns povos de origem turca, e a deportação para a Sibéria de milhares de
bálticos deixou sequelas profundas nas minorias atingidas por essas medidas
repressivas.
O renascimento do nacionalismo separatista no espaço soviético ficou
transparente desde o início da perestroika. Contribuiu decisivamente para a
desagregação da URSS.
Foi obviamente incentivado, e com frequência financiado pelos EUA no âmbito de
uma estratégia cuja meta era a destruição da União Soviética e a transformação
da Rússia numa sociedade capitalista.
Mas o êxito dessa política foi muito facilitado pela atmosfera anti russa que
persistia, adormecida, nas populações de muitas repúblicas.
Os países bálticos, onde havia fortes minorias russas, foram os primeiros a
romper, optando pela independência. Em visita à Lituânia e Letónia no verão de
1989 chocou-me a vaga de anticomunismo. Funcionários dos Partidos locais
elogiavam como «heróis» os dirigentes de direita da Republica anterior à II
Guerra Mundial. Em Vilnius, Alguis Tchecuolis, um lituano que havia dirigido a
Agencia Novosti em Lisboa, disse-me sem rodeios que era «anti leninista». À
porta das igrejas, jovens colavam nas paredes cartazes antissoviéticos.
Tive a oportunidade de registar um grande mal-estar no Cáucaso e no Cazaquistão
em 1987 e 1989, quando o fracasso da perestroika já era identificável por
visitantes comunistas como eu. Em Alma Ata,no Cazaquistão, onde meses antes
manifestações anti russas tinham sido reprimidas pelas armas, um secretário do
Partido minimizou em conversa comigo o significado dos protestos populares,
atribuindo-os a hooligans, a marginais.
Em visitas ao Uzbequistão, impressionou-me a tenaz sobrevivência da cultura
islâmica naquela república. E surpreendeu-me a ignorância de camaradas do
Partido da história dos povos iranianos e turcos que ali tinham criado grandes
civilizações cuja herança é identificável nas deslumbrantes mesquitas e medersas
de Samarcanda, Khiva e Bukhara, património da humanidade. Alguns manuais de
história soviéticos ignoravam mesmo o chamado renascimento timurida, o
fascinante período de esplendor cultural na literatura, nas artes, na astronomia
e na arquitetura, tornado possível pelos descendentes do conquistador turco
Tamerlão.
Em jornadas inesquecíveis pelas províncias do Norte do Afeganistão e pelo Sul do
Uzbequistão tive a oportunidade de verificar que a fronteira que ali separa dois
estados iluminava uma realidade que me transportou a diferentes idades da
Humanidade.
De ambos os lados daquela fronteira artificial, traçada no final do seculo XIX
pelo Imperio Britânico e pelo Imperio Russo, vivem ainda povos irmãos que falam
línguas turcas e iranianas. Mas enquanto no Uzbequistão me senti no Seculo XX,
nos povoados misérrimos da Báctria e no Bandaquistao afegãos movimentei-me por
vezes entre gentes que me transportavam pela imaginação ao seculo X.
Na outra margem do Amu Daria, não obstante as políticas discriminatórias de
Stalin na Ásia Central, a revolução soviética ergueu grandes cidades, indústrias
modernas, universidades de prestígio, e com a água dos grandes rios que descem
do Pamir irrigou desertos, criando neles uma agricultura florescente.
Mas bastava atravessar a ponte que separa a Termez uzbeque da Hairaton afegã
para contemplar uma sociedade onde uma mulher valia menos do que um camelo.
Não houve, insisto, política permanente de russificação na Ásia Central
soviética. Era uma impossibilidade. Mas, apesar da fidelidade à cultura e às
tradições muçulmanas, as Republicas da Ásia Central foram as ultimas a proclamar
a independência. A rutura não foi aliás conflituosa, ao contrário das bálticas.
Nesses países, os dirigentes do Estado e do Partido exerciam o poder de uma
forma autocrática, com punho de ferro, e temiam a transição para formas de
governo de modelo ocidental. Muitos aliás sobreviveram à transição para o
capitalismo, nomeadamente no Cazaquistão (Nursultan Nezarbayev continuou a
governar o país) e no Turquemenistão.
UMA DERROTA DA HUMANIDADE
Refletindo hoje sobre os acontecimentos da Ucrânia e a torrente de disparates
venenosos que os media ocidentais divulgam sobre o que ali está a passar-se e os
discursos anti russos de Obama e dos principais estadistas da União Europeia,
sou levado à conclusão de que uma profunda ignorância da historia da Rússia e da
URSS contribui para a aceitação pela maioria dos europeus e americanos das teses
da propaganda anticomunista. Com poucas exceções, os sovietólogos ocidentais das
grandes universidades continuam a apresentar a União Soviética como um estado
monstruoso e o comunismo como uma aberração. Insistem em ver em Stalin um
ditador sanguinário e em estabelecer paralelos com Hitler. Mas Lenin também é
exorcizado.
A maioria dos Partidos Comunistas reagiu mal à desagregação da URSS e à
instalação do capitalismo na Rússia. Traumatizados pela derrota do «modelo» que
haviam defendido durante décadas, não demonstraram capacidade para dar uma
resposta ideológica adequada à ofensiva dos inimigos da véspera. Muitos
dirigentes dos PCs europeus e americanos (o dos EUA é hoje uma organização
social-democrata) participaram inclusive das campanhas de descrédito da URSS.
Afirmam ainda lutar pelo socialismo, mas não convencem. Retomam velhas teses de
Kautsky, Bauer e Bernstein. Adotando um conceito perverso de democracia,
vulgarizado pelos sacerdotes do capital, chegam à aberração de admitir que um
dia a humanidade chegará ao socialismo pela via parlamentar, através de reformas
realizadas no âmbito das instituições criadas pela burguesia para lhe servirem
os objetivos.
 Como comunista, não duvido de que a Revolução de Outubro foi um dos maiores
acontecimentos da História, na continuidade da Revolução Francesa de 1789,
assinalando o caminhar do nosso Planeta para um mundo que responda a aspirações
eternas do homem.
Creio também que os historiadores do futuro, superado o frenesi irracional do
antisovietismo, refletirão com serenidade sobre a intervenção de Stalin na
História do seculo XX. A sua personalidade nunca me atraiu. Mas esse
distanciamento do homem não me impede de qualificar de deturpadoras da História
as posições antagónicas daqueles que o condenam sem apelo como inimigo da
Humanidade e dos que, numa perspetiva oposta, veem nele o genial estadista da
Revolução que mudou o mundo.
Os crimes e erros de Stalin foram enormes e a URSS pagou por eles um preço
altíssimo. Mas sendo inquestionável que lhe cabem pesadíssimas responsabilidades
pelo rumo tomado pelo PCUS, e portanto pela derrota ali do socialismo, é também
para mim evidente que Stalin foi um revolucionário que desempenhou um papel
decisivo no esmagamento do III Reich nazi.
Para finalizar, reafirmo a convicção de que o desaparecimento da União Soviética
foi uma tragédia para a Humanidade - acelerada pela traição de Gorbatchov e pela
guerra não declarada do imperialismo norte-americano - e que, para tentarmos
entender a Rússia contemporânea, é imprescindível um conhecimento mínimo da
história dos povos que habitam o seu gigantesco território.
Vila Nova de Gaia e Serpa, março de 2014 e dezembro de 2016
*JVStalin, Obras, II Tomo, paginas 278 a 348, Editorial Vitória, Rio de
Janeiro,1952. O Ensaio de Stalin, intitulado «O Marxismo e a Questão Nacional»,
analisa sobretudo o tema a partir de opiniões dos austro marxistas Springer e
Otto Bauer, de teses do Bund judaico, e dos problemas das nacionalidades do
Cáucaso. É confuso e mal estruturado.

In
O DIARIO.INFO
http://www.odiario.info/os-povos-da-ex-urss/
30/12/2016

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