segunda-feira, 20 de março de 2017


Democracia e revolução

Três momentos históricos da luta dos trabalhadores pela igualdade



Candido G. Vieitez



Introdução

            Nos dias atuais a democracia virou um mantra político. Os trabalhadores e suas organizações, em seus enfrentamentos com o capital, usualmente a tomam como consigna de luta. Do lado oposto, a burguesia, pelo menos a ocidental, não se farta de agitar a bandeira da democracia para justificar as mais diversas ações.

            O resultado é que a democracia, enquanto denominação abstrata, tornou-se uma ideia popular, ou, pelo menos, tão popular quanto pode ser uma categoria política nas condições habituais da atual sociedade. Isso mostra que a democracia, que chegou a ter um papel protagonista na era das revoluções burguesas (CANFORA, 2004), segue ocupando um lugar estratégico na vida política dos estados. No entanto, a reiterada declaração de adesão ao regime democrático por parte da classe dominante obnubila seu significado e, de fato, o erige em enigma.

            Mas, tudo isso nem sempre foi assim emaranhado. No passado, quando a burguesia andava às voltas com o processo de sua revolução, o seu ícone político era, - como de fato é até hoje, intramuros - não a democracia, mas o liberalismo (LOSURDO, 2006). Nessa época, segundo uma impostação coerente, a burguesia queria distância da democracia. E, consequentemente, sua relação com os democratas era de ordem semelhante à que mantém hoje com os comunistas.

Contudo, o grande medo que a burguesia sentiu em relação à democracia não se deu sem razão. Para se ter uma ideia basta lembrar que, quando em 1848 Marx e Engels (2010), lançaram o Manifesto do Partido Comunista, ainda acreditavam no regime democrático como ferramenta política de revolução social supondo que, na Inglaterra ao menos, onde o proletariado era numeroso, esse poderia realizar sua própria revolução por meio do voto universal (MÉSZARÓS, 2002).

Não tardou para que Marx e Engels percebessem que essa hipótese era infundada. E a burguesia também.  Lá por meados do século XIX, setores da classe burguesa se deram conta de que o voto universal, uma das vigas mestras da democracia moderna, não era portador das tão temidas propriedades políticas supostas. Mais ainda, a sua adoção, vale dizer, a adoção do regime democrático, ainda poderia render à classe bons proveitos em termos de controle social dos trabalhadores, uma vez que estes seguiam lutando pela democracia, isto é, pela igualdade de direitos políticos[1]. 

Foi a partir desse momento de auto-esclarecimento que, dizendo-o um tanto metaforicamente, a classe burguesa iniciou sua trajetória democrática. Contudo, o seu que fazer democrático vem se mostrando paradoxal através dos tempos. Podemos supor que, como classe dominante, a burguesia até prefira exercer o seu domínio por meio do regime democrático. Porém, quando julga necessário, não se constrange em liquidar o regime democrático, frequentemente, sob o alegado intuito de preservá-lo. Foi assim que, para mencionar exemplos pungentes, os EUA nas décadas de 1960-1970, não teve escrúpulos em ajudar a instaurar e manter sangrentas ditaduras militares por toda a América Latina. E mais recentemente, a alegada defesa da democracia, ou, o suposto empenho em sua disseminação, levou o imperialismo euro-atlântico a arrebentar com o Vietnã, a Iugoslávia, o Afeganistão, o Iraque, a Líbia e a Síria, dentre outras regiões do mundo atingidas pelo zelo democrático.

Neste trabalho não temos mais que a singela intenção de contribuir para a divulgação da temática democracia e revolução dando ênfase a determinantes básicas. Tomamos como objetos da análise a política democrática na cidade-estado ateniense (séc. V e IV a.C), a Revolução Francesa de 1789, e a Revolução Russa de 1917.  Porque esses casos? Porque a democracia grega ao se estruturar de modo tão distinto ao que conhecemos, ajuda a revelar a política moderna. A Revolução Francesa e a Russa nos deixaram um legado histórico mais próximo, inequívoco, e a dimensão dramática que as envolveu também facilita a visualização do que pretendemos enfatizar.

            Encerrando estas considerações acrescentamos que a análise se encontra vertebrada pela tese de que o fenômeno democrático, tal qual se tem apresentado histórica e empiricamente até o presente, é um acontecimento característico, um epifenômeno das sociedades de classes, bem como das lutas antagonistas das classes nessas sociedades.  

1.A democracia na cidade-estado Atenas (V-IV séc. a.C.).

            A democracia foi um acontecimento grego. Mas, aqui nos reportamos apenas à democracia em Atenas porque esse é considerado o caso clássico, melhor realizado e melhor estudado, embora não típico (CROIX, 1988).

            Na história antiga da Grécia, a democracia foi um hiato que durou aproximadamente dois séculos. Anteriormente ao séc. não existia, e depois do IV séc. desapareceu.

            A apreciação da democracia grega pelos europeus modernos teve os seus percalços. Nos idos tempos em que o Antigo Regime se encontrava em crise em concomitância com a emergência do mundo burguês, pensadores da Ilustração, reacionários ou progressistas, criticaram a democracia grega, um pouco na esteira dos grandes filósofos gregos, porque o horror à participação política da plebe era inerente tanto à nobreza quanto à burguesia (CANFORA, 2004).

            Nos dias atuais, entretanto, dado que a burguesia se reconciliou com a democracia, é bastante trivial encontrarmos nas mais diversas publicações escritas edificantes quanto ao pioneirismo e à natureza virtuosa da democracia grega. Em parte isso se coaduna com a posição apologética oficial interessada em contrapor a democracia ao comunismo. Mas também parece ser o resultado de análises que ao centrarem o foco na política cidadã de Atenas, terminam por obscurecer os demais componentes daquela sociedade.

            Aí temos também, aparentemente, uma questão de método de pesquisa. Assim, quando procuramos visualizar o ente democrático em Atenas, em suas articulações com a totalidade social, emerge imediatamente um fato gritante e paradoxal que é o escravagismo.

Com efeito, a sociedade ateniense foi, mutatis mutandis, tão escravocrata quanto foi a sociedade brasileira antes da abolição da escravatura. E o que talvez seja mais chocante é que a bela democracia ateniense foi responsável, durante toda sua trajetória, pela manutenção do instituto da escravidão. Canfora (2004, p. 53-54), nos oferece uma passagem conclusiva quanto à responsabilidade da democracia na manutenção da escravidão. Narra ele que em 338 a.C., Felipe da Macedônia tinha praticamente liquidado com o exército grego. A única possibilidade de defesa seria a criação de um grande exército. Um patriota “propôs, portanto, a libertação imediata dos cerca de 150.000 escravos agrícolas e mineiros presentes em solo Ático... Mas foi logo levado ao tribunal acusado de ‘ilegalidade’”.  O motivo? “Os poucos mais de 20.000 cidadãos de pleno direito que na época existiam na Ática seriam ‘engolidos’ pela mais vasta realidade de uma democracia de todos”. Numa palavra, nesse momento funesto, a democracia ateniense preferiu cair sob o jugo de Felipe da Macedônia a libertar seus escravos.

            Há certa controvérsia historiográfica quanto à magnitude proporcional dos escravos na Ática. No entanto, segundo Croix (1988), não há dúvida que a classe dos escravos-mercadorias constituía a fonte principal do excedente econômico apropriado pela classe dominante.  Mas a importância dos escravos em Atenas transcendia esse âmbito, uma vez que, mesmo os camponeses pobres, pequenos proprietários ou arrendatários, que viviam basicamente do trabalho familiar num nível de economia de subsistência ou muito próximo a ela, eram proprietários de algum ou alguns escravos.

            Mas não é possível entendermos como é que se constituiu uma democracia em Atenas se nos fixamos apenas na dimensão escravista da sociedade. Os escravos realmente produtivos, ou seja, os escravos capazes de gerar uma riqueza diferencial apropriável, eram propriedades dos ricos, sobretudo dos terra tenentes e camponeses médios, que constituíam a espinha dorsal da classe dominante ateniense. Para o pequeno camponês a escravidão não tinha o condão de produzir riqueza diferencial. O resultado era que a maior parte da população ateniense livre que constituía o demos era pobre. Este segmento compreendia pequenos camponeses, jornaleiros –poucos- que alugavam seu trabalho, pequenos comerciantes e artífices. Esta plebs, notadamente os pequenos camponeses próximos à economia de subsistência, levavam uma vida quase autonômica em suas aldeias rurais. Não tinham patrões. E seu contato com a urbe e o Estado era rarefeito, ao menos na vida cotidiana usual.  Essa camada camponesa livre, majoritária, também era explorada pelo Estado (impostos, serviço militar, etc.) e por particulares (arrendamentos, dívidas, etc.).

Foi a situação de exploração dessa classe que forneceu o combustível para as agitações sociais em Atenas. Porém, no contexto dessa exploração dos setores pobres havia uma questão ímpar e explosiva: a servidão e a escravização por dívidas. Este instituto representava a culminância abrupta dos vários mecanismos de exploração existentes, porque do dia para a noite homens livres podiam ver a si mesmos na condição de servos ou escravos.

            Eis uma esquemática sinopse do percurso das lutas em Atenas precipitadas antes de tudo pelo apavorante fantasma de possível perda da liberdade por dívidas. Os atenienses vinham sendo governados desde tempos imemoriais por oligarquias eupátridas, ou seja, por governos constituídos por linhagens de sangue azul, isto é por nobres que eram grandes proprietários de terras. Nos séculos imediatamente anteriores à instauração da democracia, as rebeliões promovidas pela plebe recrudesceram[2].

            Essas lutas deram origem a uma era de tiranos, que eram uma espécie de caudilhos frequentemente personalistas, mas que contavam com o apoio da massa trabalhadora majoritária. Finalmente e resumindo, os sucessivos conflitos culminaram em uma revolução política que instaurou a democracia, a igualdade política entre os cidadãos, independentemente de serem ricos ou pobres. Vejamos, então, no que consistia a democracia em seu momento maduro.   

             A premissa estava na definição de cidadania. Quem era cidadão? Basicamente os homens adultos em idade militar nascidos de pais gregos, o que abrangia possivelmente umas 30.000 pessoas.  Mulheres eram não pessoas.  Adolescentes, velhos e estrangeiros também estavam excluídos da cidadania embora fossem livres.

            A democracia, portanto, dizia respeito a quem era cidadão e tinha o poder de deliberar sobre os assuntos da cidade-estado (polis).

            As duas instâncias principais eram a assembleia (Ágora), e uma espécie de judiciário escolhido por sorteio dentre os cidadãos independentemente de classe.

             Na assembleia eram tomadas todas as decisões políticas importantes. Não havia representantes nem delegados devendo cada cidadão comparecer pessoalmente para participar e apresentar seu voto – a democracia direta como se usa dizer atualmente.

            Como os camponeses tinham grande dificuldade em deixar o trabalho do campo para comparecer à assembleia, essa só muito excepcionalmente reunia mais do que umas 5 mil pessoas, embora num dado momento tenha sido deliberado que o Estado atribuiria a quem participasse uma pequena quantia.

            Nada disso conseguia neutralizar completamente o poder da riqueza (FINLEY, 1985). Ainda que indiretamente, a ascendência dos ricos se infiltrava nos processos de tomada de decisões porque só eles tinham condições de produzir os estudos, pesquisas, etc. necessários à ilustração de certas questões políticas ou técnicas. Uma vez esclarecidos, os ricos promotores de tais pesquisas tratavam de levar suas posições à assembleia por meio de oradores experimentados e desinteressados, ou seja, pagos.   Além disso, os cargos militares importantes e a guarda do tesouro estavam nas mãos dos ricos, fossem estes nobres ou plebeus.

            Havia outro aspecto importante ligado à questão da dicotomia classe proprietária dominante e plebe. Em Atenas toda a cultura letrada (filosofia, teatro, etc.), era produzida por homens que não precisavam trabalhar, ou seja, homens que em geral eram parte da classe de proprietários. E esses homens, com poucas exceções, eram a favor da escravidão e contra a democracia.  Esse aspecto nos autoriza a supor que, além do poder que derivava diretamente da riqueza, a classe proprietária tinha também a hegemonia política e cultural sobre o conjunto dos homens livres, o que provavelmente fazia com que o instituto da escravidão aparecesse como natural aos olhos de todos, proprietários ou trabalhadores, e fosse aceitável para a democracia.

            De qualquer modo, a democracia mitigou significativamente a exploração e o autoritarismo da classe dominante sobre os trabalhadores[3] livres, a maior parte do demos (WOOD, 2003). Em Atenas a questão crucial da servidão ou escravidão por dívidas foi abolida. As formas mais gravosas de exploração praticadas pelos poderosos foram refreadas, bem como as exações promovidas pelo Estado. Como consequência, no período democrático os conflitos políticos em Atenas estiveram abaixo do que era mais ou menos usual na Grécia.

             Com tudo isso, a democracia em Atenas não está ligada a uma revolução social. Não foi uma revolução social que instaurou a democracia. E a democracia não conduziu a uma revolução social. Basicamente, a democracia foi uma revolução política na qual os homens livres atenienses lutaram pela igualdade política e a conseguiram. Com certeza a conseguiram no plano legal e até certo ponto também na prática. No, entanto as relações de propriedade   - definidoras das relações de classe -, permaneceram incólumes, do que decorreu que ao reproduzir também a escravidão, a democracia situou-se de modo bizarro como uma ditadura democrática escravagista. 

2.A Revolução Francesa e a democracia moderna (1789-1795).

            Quando a democracia se reapresentou na cena europeia durante a Revolução Francesa[4], ao contrário do que ocorrera na Grécia, uma revolução social, a burguesa, já estava em curso na Europa.

            A Holanda foi a pioneira (WALLERSTEIN, 1994). E em 1688, a Revolução Gloriosa, também adiantando-se no tempo, coroou a mudança de regime social em andamento na Inglaterra ao instituir uma monarquia constitucional com eleição de parlamentares.

            Os movimentos que conduzem a grandes mudanças históricas costumam produzir uma simbologia que atua sobre as populações como uma catarse. E não raro, os movimentos introdutores do novo rebuscam no passado as suas imagens ou personagens.  Esse resgate ocorreu tanto na Inglaterra quanto na França e o que foi recuperado, foi por si mesmo, um indicativo do caráter dessas duas revoluções. Porque enquanto a Inglaterra conclamou Habacuc[5] como guia espiritual, os revolucionários franceses bradaram pelas figuras laicas da república romana e da democracia grega abstraídas das respectivas situações sociais concretas (CANFORA, 2004).

            O sistema feudal de há muito vinha sendo minado por novas relações sociais. Estas eram impulsionadas pela burguesia que ganhava dinheiro no comércio colonial e nacional, incluída a manufatura emergente. E por parte da nobreza aburguesada que transformara suas propriedades feudais em propriedades produtoras de mercadorias (KULA, 1974).

            O feudalismo foi se precipitando numa ampla crise social, econômica e política. O Estado absolutista mais os senhores feudais, face às dificuldades econômicas crescentes espremiam os camponeses subtraindo deles tudo que podiam. Nas cidades, as condições de vida agravavam-se e os sans-culottes [6]rejeitavam cada vez mais o despotismo inerente ao Estado Absolutista. Semelhante, por outras razões, era a posição da burguesia que queria sobretudo adquirir um estatuto social compatível com seu crescente poder econômico na sociedade.

Em 27 de junho de 1789 o rei ordenou que se reunisse a Assembleia Nacional que abrigava também as classes proprietárias ascendentes. Em 9 de julho a Assembleia, num ato de rebeldia, proclamou-se assembleia constituinte, com o que praticamente teve início a revolução. Eis como Soboul (1985, p.42-43) nos apresenta a atmosfera social desse momento.

“A crise econômica já multiplicara as rebeliões. Desde 28 de abril de 1789, os estabelecimentos do salitreiro Henriot e de Réveillon, fabricante de papel para forrar parede [...} tinham sido saqueados. Distúrbios nos mercados, pilhagens de comboios de cereais, ataques às alfândegas municipais”. “A revolução parisiense de 14 de julho correspondeu na província, com modalidades múltiplas, a revolução mundial: as municipalidades antigas desaparecem em algumas semanas, o país foi fechado numa rede de ardorosos comitês a vigiarem os suspeitos, preparados para desmancharem os conluios aristocráticos”. “O campesinato entra então em cena. Ele, sem dúvida, já tinha se erguido em diversas regiões [...]. No clima de insegurança e de miséria gerais, incidentes locais deram nascimento a seis correntes de pânico em cadeia [...]. O feudalismo foi definitivamente abalado”.    

               Na Inglaterra, as circunstâncias sociais em que se realizou a revolução foram muito diferentes das que existiam na França em 1789. Na Inglaterra o pequeno camponês não tinha o mesmo peso que na França. A burguesia e a nobreza aburguesada avançaram sobre a nobreza feudal e a realeza, pondo em marcha a revolução social. Os enfrentamentos não tiveram o mesmo nível de radicalidade e dramaticidade que na França, a plebe propriamente dita praticamente não entrou em cena, e a revolução pôde atravessar a linha divisória que conduzia do mundo feudal ao burguês revestida de um caráter moderado.  

            Em França isso não foi possível, embora a burguesia o tivesse tentado. Sob os acordos realizados com a nobreza a revolução não avançou o suficiente para nenhuma das forças nela interessadas. Entre 1789 e 1793 uma verdadeira guerra civil manteve em confronto pequenos camponeses e aristocratas. A burguesia temia a plebe sublevada. Entretanto, viu que para fazer avançar a revolução precisava se aliar com ela. As duas frações da burguesia, girondinos e montanheses compreenderam o problema. E em 1793, a facção jacobina dos montanheses, situada mais à esquerda, com os Saint-Just, Robespierre, etc. à frente, aliaram-se com os sans-culottes[7] para estabelecerem um governo revolucionário autoritário cuja necessidade reconheciam.

            A presença protagonista das camadas populares desde o início constituiu um diferencial dessa revolução, ao ponto de Soboul (1985) afirmar que embora a burguesia a tenha dirigido, a plebe foi seu verdadeiro motor.   

            O que preconizavam politicamente os sans-culottes? Eles queriam a democracia. Mas, a “[...]democracia tal qual a praticavam, tendia espontaneamente para o governo direto. Controle dos eleitos, direito para o povo de revogar seus mandados, voto em voz alta ou por aclamação (SOBOUL, 1985, p.86).

            Esse programa radical democrático, muito distante dos valores burgueses, não foi o que prevaleceu. Mas o que prevaleceu, sob a pressão das massas populares em movimento, liquidou o feudalismo e o absolutismo, e instaurou em França uma república democrática, que claramente divergia do regime político liberal instalado pioneiramente na Inglaterra em 1688.  

            No processo que levou à consumação da revolução e à democracia, o papel de direção política e ideológica desempenhado pelos jacobinos, a facção burguesa mais radical da Montanha, parece ter sido decisivo. Saídos de uma costela da Ilustração, os jacobinos tomaram o conceito de cidadania de Atenas, que era restritivo como vimos, e reformataram-no para aplica-lo à sociedade moderna.

            Como se expressou isso na prática?  O contraste nos facilita a visualização do que ocorreu à época. Na dimensão do social, o liberalismo da Revolução Gloriosa tinha preservado a escravidão nas colônias. E na dimensão política restringiu a cidadania aos proprietários estabelecendo o voto censitário, o que não mudou nem mesmo depois que o regime migrou dos preceitos de Habacuc para os de Locke (LOCKE, 1963).

 Colocando-se na antípoda dessa posição, a democracia francesa decretou o fim da escravidão nas colônias. E com o estabelecimento do voto universal[8], um dos pilares da democracia sob o regime capitalista, aproximou a política democrática da ideia rousseauniana (ROUSSEAU, 196..?) e jacobina (ROBESPIERRE, 1999) de que soberano é o povo.

            No entanto, a democracia, que não era propriamente o objeto de desejo da burguesia não foi muito longe. O radicalismo jacobino em concubinato com as massas populares semeou o pânico entre os membros da nova classe dominante. Concomitantemente, o movimento popular arrefeceu. Muitos dos jacobinos, inclusive os mais insignes, foram vítimas da guilhotina que eles mesmos tinham utilizado sem muita parcimônia durante o governo de salvação nacional. A partir de 1794 a burguesia tratou de retomar as rédeas do poder, instalando o terror branco. O clube jacobino foi dissolvido. A intervenção estatal na economia, que visava dar certa proteção às camadas populares foi interrompida. Em 1795, a aliança popular burguesa estava liquidada. Em novembro de 1799, Napoleão, mediante um golpe de Estado, tomou o poder dando início de fato ao império que proclamaria mais à frente. E em 1802, ao abolir o voto universal e ao decretar a restauração da escravidão nas colônias, transmudou a democracia em liberalismo sem rebuços.  

            Democracia e revolução social burguesas não são irmãs siamesas, como já indicamos. As revoluções burguesas primevas na Holanda e Inglaterra engendraram regimes políticos liberais, não democracias. E a democracia tampouco foi uma força impulsora dessas revoluções. No entanto, a Revolução Francesa é, amiúde, apresentada não só como a revolução burguesa, por excelência, como também a revolução que trouxe a boa nova da democracia. Ocorre que, antes do que ser típica, a Revolução burguesa na França foi mais um caso anômalo (DAVIDSON, 2013)[9]. E a democracia, antes do que ser a meta da burguesia, foi seguramente consequência da intervenção não dispensável dos trabalhadores no processo revolucionário. E isto porque, os trabalhadores sem propriedade, ou, aqueles trabalhadores cuja propriedade é mais formal do que real, que compreende sempre a maioria esmagadora da população nas sociedades de classes, são os únicos que têm interesse real em que a integração à cidadania política não seja uma exclusividade dos proprietários.

            Uma vez descoberta a possibilidade democrática os trabalhadores a tornaram indissociável de suas lutas, o que passou a pressionar recorrentemente os governos burgueses que não ostentassem a forma democrática. Por isso, a trajetória da democracia, na França, ou melhor, a trajetória do voto universal, que é um de seus descritores fundamentais, foi curiosamente restabelecida nesse país em dezembro de 1851 por um outro Bonaparte, que curiosamente, mediante um golpe de Estado estabeleceu um regime democrático autoritário (CANFORA, 2004).

            Mas a essa altura dos acontecimentos, o capitalismo tinha se desenvolvido. E como observamos anteriormente, a burguesia já tinha descoberto que os mecanismos da técnica política democrática, como o voto universal, a eleição de representantes, os parlamentos dos vários níveis, bem como o mercado eleitoral, para mencionar os mais salientes, podiam ser manejados para satisfazer o princípio liberal de que ao fim e ao cabo quem deve governar é a propriedade, vale dizer, o tipo de propriedade sobre a qual se assenta o capital (BROWN, 2009).

            Qual era a expressão prática dessa conclusão? O fato inequívoco de que, direta ou indiretamente a burguesia sempre ganhava as eleições[10]. E quando as eleições não satisfaziam a classe ou ofereciam algum risco real ao seu domínio, sempre era possível trocar a democracia por qualquer outro regime político. Aí estava o segredo, válido até hoje, da suposta vocação democrática da classe burguesa. E qual é a natureza do segredo?

            O segredo talvez não esteja totalmente desvendado até hoje. Mas, certamente, tem a ver com o fato de que a classe dominante organiza a denominada sociedade civil (GRAMSCI,1968) tanto ou mais do que organiza a esfera política ou sociedade política. Essa organização se manifesta no sistema escolar, na atuação das diversas igrejas, nos clubes esportivos de massas, na propaganda omnipresente e, mais recentemente, na mídia em geral.  E todas essas agências, confluindo nos seus efeitos têm a capacidade de inculcar nas pessoas a concepção do mundo da classe dominante, com o que exercem uma função permanente de socialização ou ressocialização dos trabalhadores (BEAUVOIS, 2008). 

Mas, o efeito de socialização e ressocialização mais importante decorre provavelmente do fato de que a sociedade burguesa é constituída por traficantes de mercadorias, o que inclui os próprios trabalhadores ainda que de um modo específico[11]. Os efeitos desse fenômeno mercantil geral sobre a sociabilidade não se limitam à vida econômica como se pode supor. Marx, em O Capital (1972), num tópico chave um tanto esquecido, pôs em destaque os efeitos alienantes imanentes do fetichismo da mercadoria.  E esses efeitos, que se manifestam em todas as esferas da vida social, são tanto mais poderosos quanto mais desenvolvido o capitalismo se encontra, como parece mostrar nosso atual mundo neoliberal (MONBIOT, 2016), em que pese o fato concomitante de que este mundo gere também contradições potencialmente explosivas contra ele mesmo.

            A revolução burguesa foi uma revolução social porque ela substituiu o mundo feudal pelo mundo burguês ou capitalista. Nesse processus subverteu completamente as relações de propriedade, liquidou a servidão e instaurou o denominado trabalho livre cuja pedra angular é o trabalho assalariado. No plano político, como indicamos, a revolução burguesa gerou regimes liberais, que podem ou não, dependendo das circunstâncias, tomarem a forma de democracias, o que depende em boa parte do poder de fogo dos trabalhadores, uma vez que são estes os principais interessados nas mesmas.

            Uma importante linha de interpretação disseminada vê a sociedade burguesa como aberta, livre e progressiva. Uma sociedade que, primeiro estabeleceu os direitos civis, depois os direitos políticos e finalmente, os direitos sociais (MARSHALL, 1967).  Embora essa visão tenha contado com um suporte empírico sugestivo no período do welfare state, sobretudo porque tomou como referência os países imperialistas, essa abordagem é negada pelo conjunto dos acontecimentos históricos, e antes de tudo pelo fato lógico de que a revolução burguesa não emancipou os trabalhadores. Ela libertou os trabalhadores dos grilhões da servidão feudal apenas para substituí-los pelos grilhões da semiservidão moderna, o trabalho assalariado. Consequentemente, direitos políticos e direitos sociais universais sob o capital são incidentais.

            O que não é incidental, mas orgânico à atual sociedade, é o Direito Civil. É este que contém a alma, por assim dizer, do regime do capital, os conceitos burgueses de liberdade e igualdade, que são uma condição sine qua non para o funcionamento do sistema (PASUKANIS, 1976), para o intercâmbio societário de mercadorias realizado  por proprietários privados, independentes uns dos outros segundo o diapasão de que “as relações sociais que se estabelecem entre seus trabalhos privados aparecem como o que são; ou seja, não como relações diretamente sociais das pessoas em seus trabalhos, se não que como relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas (MARX, 1972, p.38)

            A revolução burguesa trouxe com ela o liberalismo, vale dizer, a ditadura de classe da burguesia[12]. Quando, em condições determinadas, o liberalismo possibilita o funcionamento da democracia, temos então a ditadura democrática da burguesia porque, os efeitos reais ou virtuais das técnicas políticas democráticas são amplamente suplantados pelos poderes reais de classe, nunca explicitados, e que se encontram profunda e amplamente assentados no monopólio da propriedade dos meios de produção, no dinheiro. E nos parcimoniosos momentos históricos em que as virtualidades democráticas conseguem se descolar do jogo liberal, ameaçando realizar voo próprio, a burguesia não tem escrúpulo em lançar mão de métodos que inclusive ignoram os seus próprios direitos civis[13].

            Não obstante, os trabalhadores lutaram e continuarão a lutar pela democracia. Antes de tudo porque, se a forma democrática conserva alguma de suas virtualidades, se não redunda em uma concha vazia - dado o controle de classe da burguesia-, como efetivamente pode ocorrer, então, mutatism mutandis, tal qual em Atenas, a democracia tende a atenuar em alguma medida o grau de subordinação e exploração dos trabalhadores pelo capital. Mas, não nos iludamos. Mesmo nas situações supostamente mais democráticas, como naquelas em que se encontra no poder um partido socialdemocrata, os efeitos da democracia são restritos à ordem social porque o peculiar desta socialdemocracia é “exigir instituições democrático republicanas como meio de não acabar com dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas de enfraquecer seu antagonismo e transformá-lo em harmonia (MARX, 1968, p.52).

3.A Revolução Russa de outubro de 1917: a revolução inconclusa.

            No primeiro lustro do século XX, a Rússia era uma periferia ou talvez uma semiperiferia no sistema capitalista, ainda que fosse uma grande potência com ambições imperialistas, o que a levou à guerra de 1914. A servidão havia sido abolida em 1861, ou, como disse Trotsky (1967), semi-abolida, de modo que o feudalismo em putrefação seguia atuante na Rússia, particularmente no campo, embora o capitalismo estivesse em franco desenvolvimento.

            A contradição entre o capitalismo ascendente e os escombros do feudalismo manifestava-se do modo mais nítido na preservação do Antigo Regime, ou seja, na subsistência da monarquia Romanov com seu concomitante séquito de nobres de extração feudal, que permaneciam na direção política do país. Mas, eram também gritantes as contradições no plano socioeconômico, o que aparecia na forma de agudas desigualdades e contrastes. A massa camponesa amplamente majoritária seguia enredada nos remanescentes feudais. Em contrapartida, havia grandes urbes industriais, onde estava a classe operária atestando o desenvolvimento do capitalismo no país. Eis o panorama descrito por Trotsky (1967, p. 28):

“Enquanto que a agricultura camponesa, até a Revolução, em sua maior parte permanecia quase no mesmo nível do século XVII, a indústria russa, quanto à técnica e sua estrutura capitalista encontrava-se no mesmo nível dos países adiantados e, mesmo sob alguns aspectos, os ultrapassava. Em 1914 as pequenas indústrias com menos de 100 operários representavam nos Estados Unidos, 35% do efetivo total dos operários industriais, ao passo que na Rússia a proporção era de 17,8%. Admitindo-se um peso específico aproximadamente igual para as empresas médias e grandes, ocupando de 100 a mil operários, as empresas gigantes, que ocupavam mais de mil operários cada uma, empregavam, nos Estados Unidos, apenas 17,8 da totalidade dos operários, enquanto que na Rússia a proporção era de 41,4%. Nas principais regiões industriais a percentagem era ainda mais elevada: na região de Petrogrado, 44,4%; na região de Moscou, 57,3%”.

A situação dos camponeses pobres, oprimidos por nobres e grandes proprietários, era lastimável. E nas cidades industriais os operários tinham condições de vida manchesterianas, em consequência do que havia agitação social recorrente e greves.

Podemos supor que o proletariado[14] até poderia assimilar a situação ignominiosa, não fora o fato de que na Rússia, como vinha ocorrendo por toda a Europa (DAVIDSON, 2013), a resolução das diversas questões sociais se encontrasse historicamente vinculada à liquidação do feudalismo por meio da revolução burguesa e da instauração da república democrática. Esse foi o influxo político social subjacente à revolução de 1905. Esta revolução foi derrotada pela monarquia. Mas foi um alerta, de fato o prólogo das revoluções que viriam subsequentemente, a de fevereiro e a de outubro de 1917.

O processus que levou à revolução de fevereiro de 1917 e que culminou na instalação de um governo burguês democrático provisório, contou com componentes sociais muito distintos em relação àqueles que indicamos nas revoluções políticas que levaram a democracia a Atenas, ou, a revolução social que instaurou a república democrática em França.

O mais importante foi a presença de uma típica classe operária industrial que, se em termos relativos era modesta, em termos absolutos era expressiva. E a presença de organizações coletivas de massa (THOMPSON, 1977) que para todos os efeitos não existiam nos casos anteriores. Dentre essas tiveram destaque os partidos políticos e os sovietes.  Estes, subdivididos em sovietes (conselhos) geopolíticos de cidade ou bairro e os sovietes de fábrica, usualmente denominados comitês de fábrica.

            Podemos dizer que os sovietes foram uma invenção do movimento operário e se apresentaram já na revolução de 1905, inclusive surpreendendo os partidos marxistas que atuavam no movimento. A sua emergência esteve provavelmente ligada ao fato de que os sindicatos na Rússia eram fracos. Os trabalhadores organizaram-se então, em cada fábrica, em comitês de fábrica. Porém, nas greves amplas, os trabalhadores sentiram necessidade de um ente coordenador geral. Dessa necessidade prática adveio o soviete, constituído em princípio por delegados de fábricas escolhidos pelos trabalhadores. Dependendo do porte da greve, o soviete poderia ser de bairro ou cidade. Se a greve era muito potente, o soviete tendia a extrapolar suas funções de direção do movimento com o que aparecia exercendo funções político-administrativas em paralelo com os poderes municipais.

            Os sovietes foram uma invenção da classe operária. Esta tem uma base natural no   trabalhador coletivo moderno (MARX, 1972) sendo, portanto, um produto da moderna indústria capitalista. Dado seu vínculo orgânico com o trabalhador coletivo os sovietes não poderiam ter aparecido em Atenas. E seria improvável que tivessem aparecido na Revolução Francesa, porque em França ao tempo da Revolução, a classe operária típica era incipiente, e a forma específica trabalhador coletivo, apenas em formação, encontrava-se restrita às manufaturas e fábricas não tão numerosas.

            Quanto aos partidos devemos diferenciar entre partidos estrito senso e lato senso. Partidos como fração de classe, como determinada parte da sociedade, capazes inclusive de encetar ações mais ou menos coordenadas, são inerentes às sociedades de classes. Nesse sentido, podemos falar num partido democrático em Atenas. E o Clube Jacobino na Revolução Francesa também foi um partido desse tipo.  Porém, a formação de partidos enquanto organizações coletivas de massa, portadores de um programa e uma auto-organização estrita, formaram-se sob o influxo da Revolução Industrial do século XVIII, originariamente vinculados à emersão da classe operária.

            A presença desse novo tipo de organização na Rússia foi vital para o papel que os trabalhadores desempenharam na revolução porque os partidos atuaram aí como verdadeiros príncipes modernos (GRAMSCI, 1976), contribuindo para a organização, educação, mobilização e orientação político-ideológica dos trabalhadores.

Vejamos o contraste. Na Grécia a grande maioria dos produtores culturais, inclusive os grandes filósofos, era antidemocrática e a favor do escravagismo (CROIX, 1988). Os trabalhadores, por seu lado, não tinham acesso à cultura letrada, o que os colocou na dependência político-ideológica dos poucos pensadores aristocratas favoráveis à democracia, bem como dos membros progressistas (demagogos) das classes dominantes, que viam a democracia como um método político de administrar conflitos visando a continuidade de seus privilégios de classe.     

            Observadas as distâncias, em França ocorreu algo semelhante. Os trabalhadores foram o motor da revolução como observou Soboul. Porém, dadas suas carências organizacionais e culturais colocaram-se sob a ascendência dos intelectuais da burguesia, do que resultou que esta tenha sido a condutora da Revolução.

            Na Rússia, onde tínhamos os partidos modernos como apontamos, a natureza da intervenção dos trabalhadores na arena política foi muito diferente.  Os principais partidos foram o Social Revolucionário, com ascendência sobre o campesinato, o Partido Menchevique e o Partido Bolchevique. Estes últimos decorrentes de uma divisão que houve no originário Partido Operário Social Democrata Russo. Esses partidos evoluíram, se não em simbiose, ao menos mediante uma relação de parceria com a massa trabalhadora.

Nessa condição, e atuando também como intelectuais coletivos, os partidos elaboraram programas de ação política que deveriam transcender as lutas econômicas. Essas organizações, ao menos desde 1905, compartilhavam a ideia de que para arrancar a Rússia de seu atoleiro secular seria necessária uma revolução burguesa. Porém, enquanto o Partido Menchevique considerava imprescindível a direção burguesa, o Partido Bolchevique, por influência de Lênin, acreditava que a burguesia russa já era impotente para dirigir sua revolução e que isto deveria ser feito por uma ditadura democrática do proletariado e dos camponeses[15].  

Em inícios de 1917 a situação do país era dramática. Os exércitos russos eram recorrentemente derrotados na guerra. O campo que cedia a maior parte dos soldados clamava pela reforma agrária e por paz. O exército se decompunha e setores das tropas na retaguarda começaram a confraternizar com o povo. Nas cidades a exploração dos trabalhadores recrudescia, enquanto a fome se instalava. “A 23 de fevereiro, sob a bandeira do Dia da Mulher, explode a insurreição das massas operárias de Petrogrado [...]. A primeira fase da insurreição foi a greve, que em três dias se estende a ponto de converter-se em greve geral” (TROTSKY, 1967, p. 109).

Em fins de fevereiro a Revolução estava vitoriosa em Petrogrado. E de Petrogrado saltou para Moscou e o restante do país. De acordo com as posições de Mencheviques, Social Revolucionários, Cadetes (liberais), e Bolcheviques[16] dentre outras forças, foi instalado um governo provisório burguês que deveria presidir a nação, consolidar a Revolução e convocar uma assembleia nacional constituinte.  

A revolução burguesa tinha sido realizada, paradoxalmente, pelos operários e camponeses. Estes últimos pela mediação dos soldados que haviam apoiado os insurretos.  Mas, quem tinha dirigido a Revolução de Fevereiro? A resposta de Trotsky é a seguinte: quem dirigiu a revolução foram “[...]os operários conscientes e bem temperados e sobretudo os que se formaram na escola do partido de Lênin” (TROTSKY, 1967, p. 143).

O governo burguês mostrou-se tíbio e não encaminhava as soluções necessárias. Afora isso, nada se movia sem a aprovação dos sovietes (ANWEILER, 1975), que se haviam espalhado pelo país, de sorte que o governo era exercido mais pelos sovietes do que pela instância oficial, o que estabeleceu uma dualidade de poderes. Em todo caso, liberdades democráticas foram instituídas, o que facilitou a disseminação dos sovietes e dos sindicatos, e a volta dos muitos quadros do movimento operário que se encontravam no estrangeiro. 

No começo de abril Lênin chegou a Petrogrado proveniente do exílio munido de suas teses bomba[17]. O fundamental das teses residia na proposição de derrubar o governo burguês e instaurar a ditadura do proletariado porque este seria o meio de dar fim à guerra imperialista e inclusive promover as grandes reformas democráticas que a burguesia recalcitrava em realizar. Convém reafirmar que essa posição não significava que Lênin estivesse preconizando a passagem imediata para o socialismo, muito ao contrário. Lênin considerava a Rússia um dos países mais atrasados da Europa. Então, tratava-se de explorar o melhor possível o potencial progressista da revolução burguesa para modernizar o país e estabelecer aquelas condições imprescindíveis que viriam a funcionar como um degrau para a revolução socialista, bem como umas poucas medidas socialistas iniciais. Até porque, nessa época, provavelmente não passava pela cabeça de nenhum revolucionário russo que o socialismo poderia ser construído na Rússia independentemente da revolução mundial que eles julgavam estar a caminho.

A maioria dos principais quadros do partido ficaram estupefatos e se perguntaram o que tinha ocorrido com Lênin. O conflito acendeu-se no interior da organização. No, entanto, as teses acabaram por prevalecer porquanto ergueu-se a bandeira de todo o poder aos sovietes.      

Pelo visto, essa nova posição do Partido Bolchevique foi ao encontro dos desejos de boa parte da massa trabalhadora envolvida com a revolução. O partido cresceu com novos aderentes. E aumentou significativamente o número dos delegados aos sovietes que tinham vínculos com ele.

Em contrapartida, todo poder aos sovietes provocou uma cisão no campo da esquerda que não mais seria revertida. Especialmente importante foi a dissenção dos partidos Menchevique e Social-revolucionário, defensores da república burguesa e que após a revolução permaneceriam na oposição ao governo soviético.

Enfim, o movimento revolucionário reacendeu-se em meio a disputas nos sovietes, os quais, finalmente, deliberaram pela tomada do poder. Em outubro de 1917 o governo burguês foi derrubado e estabeleceu-se o poder soviético.  Os sovietes, de organismos de coordenação das lutas do movimento operário, se metamorfosearam em organismos de deliberação e execução da política do Estado soviético.

            Estabeleceu-se de fato o poder dos sovietes constituídos por delegados de operários e camponeses? Sem dúvida, mas também é certo que o poder dos sovietes não pode ser dissociado da influência que o Partido tinha nesses organismos. Essa influência havia sido construída a partir da consigna todo o poder aos sovietes e também porque o Partido bolchevique foi a agremiação mais importante, quase solitária, a apoiar a revolução, tendo suas lideranças se colocado à frente do movimento revolucionário. E, claro que, uma vez tomado o poder os bolcheviques converteram sua influência nos sovietes em hegemonia. De qualquer modo convém observarmos que os sovietes, constituídos por delegados[18] indicados pelas unidades de trabalho segundo proporções normatizadas, mas que em 1917 também admitiam em menor escala representantes de partidos e outras agremiações, constituíram o poder real, substantivo, no novo estado e governo.

            Esse estado de coisas perdurou por todo o ano de 1918 e, possivelmente, durante parte de 1919 (BETTELHEIM, 1979). Daí em diante, os sovietes foram transformando-se em organizações cada vez mais formais, enquanto o poder real foi se concentrando no Partido Bolchevique que passou a viver em simbiose com o Estado.

            Esse é o ponto em que detemos nossa narrativa. Não antes, porém, de observarmos o que corria nas fábricas. Os sovietes expressavam a dinâmica da luta dos trabalhadores na esfera política ou do Estado. Mas, concomitantemente a essa luta e imbricada com ela, discorriam nas fábricas enfrentamentos no campo da economia política prática. Neste terreno as organizações operárias protagonistas também foram os sovietes (conselhos), só que com o nome de comitês de fábrica.

            Os trabalhadores não estavam interessados apenas no poder político. Seguindo uma tendência imanente (VIEITEZ; DAL RI, 2015) ao trabalhador coletivo moderno[19], que pode se manifestar em tempos de crise, os trabalhadores foram questionando cada vez mais o poder patronal, vale dizer, a propriedade capitalista dos meios de produção. Essa inflexão engendrou inclusive um movimento de luta pelo controle operário das fábricas. A luta pelo controle operário das fábricas ocorreu no processus que levou à revolução e, especialmente, depois de consumada essa, à tomada de poder pelos sovietes. O Partido Bolchevique apoiou esse movimento pelo controle operário antes e depois da revolução. Antes da Revolução como um importante instrumento de mobilização da classe operária. E depois da Revolução, basicamente, como um meio de impedir que o boicote patronal generalizado arruinasse de vez a atividade industrial já gravemente prejudicada pela convulsão social generalizada. Em outubro de 1917, Lênin apresentou um Projeto de decreto sobre o controle operário que veio a ser aprovado pelo governo com poucas modificações, e que normatizava a intervenção nas fábricas do movimento pelo controle operário (LENIN,1978, p. 98-99).

            Só que o entendimento que tinham sobre o controle operário, o governo e o movimento operário eram completamente diferentes. A normativa governamental atribuía aos comitês de fábrica sobretudo direitos de supervisão sobre a atividade das empresas. O caráter dessa supervisão era praticamente intolerável para a burguesia patronal. Em que pese esse gravame, a propriedade patronal ficava preservada, bem como o essencial da gerência, o que correspondia à diretiva bolchevique de manter a maior parte da atividade econômica em mãos privadas na primeira fase da Revolução. Outra era a inclinação dos operários. Os Comitês de Fábrica executavam livremente, de acordo com as circunstâncias, diferentes formas de controle mais ou menos abrangentes sobre as empresas. De qualquer modo, estava fora de dúvida que o controle parcial dos empreendimentos econômicos pelos trabalhadores tendia a culminar em um controle completo[20] de cada um deles, com a consequente ejeção do patrão e seus apaniguados.  

            Em suma, não há dúvida de que os operários em aliança com os camponeses pobres foram os protagonistas principais da Revolução de Fevereiro e de Outubro, o que conduziu ao estabelecimento dos sovietes como órgãos de governo, ou seja, da ditadura de classe de operários e camponeses.   

Independentemente do que veio a ocorrer com o sovietismo, cujo potencial democrático de novo tipo não chegou a ser desenvolvido, a Revolução Russa foi no conjunto, ou seja, para além do período soviético real, uma revolução social. Foi uma revolução social porque as relações de propriedade foram profundamente modificadas, e pelo menos a base objetiva da classe burguesa, a propriedade capitalista, foi suprimida. Porém, foi também uma revolução social inconclusa, porque o amadurecimento das novas relações de propriedade, isto é de relações de produção se deteve em algum ponto do caminho. Em duas palavras, o Estado não definhou, muito ao contrário, como tinha sido vaticinado por Lênin (1973), seguindo a teoria marxista. E a alienação do trabalho, que era seguramente um objetivo central, manifesto ou latente, para os trabalhadores na produção, foi mantida na forma de assalariamento, ainda que modificado (THERBORN, 1979). A reprodução do assalariamento, acompanhada inevitavelmente pela emersão de uma proto-classe de dirigentes hierárquicos, destituídos de propriedade mas com o controle dos meios de produção, vale dizer, uma quase posse desses meios, foi uma das contradições mais potentes presente no semisocialismo da URSS (GRUPPI, 1979). Uma contradição que muito provavelmente foi um dos fatores que impulsionou a república soviética em direção ao desenlace conhecido.   

Desde a Revolução, em 1917, as potências imperialistas, fazendo abstração de seus inomináveis crimes seculares para com as demais regiões do mundo e seus próprios povos, o que alcançou uma magnitude desmesurada na Primeira e Segunda guerras mundiais, desataram uma campanha internacional demonizando o comunismo e tratando de fazer crer aos povos que a URSS não passava de um gigantesco campo de concentração (SAUNDERS, 1990). Não obstante, apesar de todos os seus problemas muito reais, as realizações da URSS, que não foram poucas, podem ser avaliadas objetivamente, a começar do fato de que um país que em 1917 era um dos mais atrasados da Europa, na Segunda Guerra pôde se defender com êxito do ataque de uma das maiores potencias capitalistas do mundo.

A URSS foi pioneira na implantação com caráter universal dos denominados direitos sociais: saúde pública, educação pública e gratuita em todos os níveis, aposentadoria pública, etc. E um direito fundamental que foi real e não meramente retórico: o direito ao trabalho para todos. Também não podemos esquecer o apoio dado pela URSS a diversos povos que estavam lutando para se livrar do velho ou do novo colonialismo.    Como explicar essas políticas?  A única explicação disponível é a de que bastante da teleologia que impulsionou os trabalhadores à Revolução de outubro se manteve durante a existência da URSS (ROLLE, 2009. E de resto, o fato de que ninguém demonstrou convincentemente que, os trabalhadores nos países capitalistas com regime político democrático, tivessem efetivamente mais influência sobre o poder de decisão do Estado do que os trabalhadores na URSS, semisocialista, na qual vigia um regime político não democrático.  

Conclusão

            A trajetória das sociedades de classe, desde suas origens imemoriais, encontra-se pontilhada por rebeliões, insurreições e revoluções, frequentemente ligadas de algum modo à luta dos trabalhadores pela igualdade.

Em Atenas o espessamento das insurreições conduziu a uma revolução política e à democracia que, de fato, excluía a maior parte dos trabalhadores. 

Na França, os trabalhadores viabilizaram a Revolução Burguesa, e contribuíram fortemente para a conformação momentânea de um regime político democrático, sob o qual as cadeias feudais que os manietavam foram substituídas pelas cadeias burguesas. E nessa quadra histórica, se o pensamento político dos trabalhadores foi capaz de se projetar bem para além da forma democrática afinal instituída, a sua economia política foi impotente para transcender a concepção liberal, mantendo-se nos limites da propriedade privada dos meios de produção.

Na Rússia, no primeiro momento da Revolução, os operários e camponeses estavam mais preocupados em exterminar o feudalismo levando a cabo a Revolução Burguesa do que com os florilégios da democracia, embora esta também estivesse sob sua mira. No segundo momento, os trabalhadores, por meio do movimento dos sovietes, saltaram vertiginosamente da revolução burguesa e do regime parlamentarista para a ditadura de operários e camponeses mediante o regime dos sovietes.     

            Os think tanks da burguesia, com a contribuição de não poucos intelectuais de esquerda, individuais ou coletivos, ossificaram o conceito de democracia sob um formato conveniente, dominado por variantes de politicismo e jurisdicismo[21]. Sob esse prisma     os métodos utilizados no processo revolucionário, bem como, os que resultaram da Revolução pouco tiveram a ver com a democracia. Mas, se ao invés de vermos a democracia como um código fechado, a-histórico e abstratamente universal, a vermos como uma das manifestações da luta secular dos trabalhadores para obterem a igualdade social, vale dizer, para suprimir a sociedade de classes, então também podemos ver a ação dos trabalhadores revolucionários na Rússia como a mais radical de todas as ações democráticas.

A tentativa de instaurar o socialismo na URSS falhou. Mas a experiência foi grandiosa e a mais consequente até então encetada.Com a consolidação da Revolução Burguesa, a burguesia deixou de ser revolucionária. E os seus intelectuais, por diversas maneiras têm procurado convencer a todos que a época das revoluções ficou no passado. No entanto, ao observarmos o curso da história não encontramos motivos para acreditar nisso porque as grandes contradições de classes seguem vigentes.  Em assim sendo, neste momento em que a crise do capital está posta, inclusive a crise cada vez mais visível dos regimes políticos democráticos representativos, podemos alimentar a esperança de que a classe trabalhadora possa se beneficiar da experiência da grande Revolução de Outubro, porque afinal é da condição humana que, de um certo modo, os mortos continuem existindo entre os vivos.           

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[1] - Em 1838, o movimento operário cartista, através da People’s Chart”, pleiteou o regime democrático. Eis as principais reivindicações: voto universal masculino, votação secreta através de cédula eleitoral, pagamento aos membros do parlamento como meio de possibilitar a participação dos trabalhadores, eleições anuais.  (https://en.wikipedia.org/wiki/Chartism). Acesso 17/10/2016.
[2] - As rebeliões eram basicamente pelo controle do Estado. E como é que o demos, constituído de pobres, podia afrontar desse modo a classe proprietária? Um segredo estava no fato de que os pequenos camponeses em Atenas eram civis armados porque como todos os cidadãos, quando eram convocados para o serviço militar tinham que comparecer equipados às suas próprias expensas. Ou seja, de modo diverso do que ocorre hoje, boa parte do povo livre em Atenas era um povo armado.  
[3] - Podemos considerar trabalhadores uma classe social que embora pobres e tendo que ganhar a vida basicamente com o próprio trabalho utilizavam um que outro escravo? O trabalho dos escravos desses pequenos proprietários certamente era uma contribuição à sua economia, mas não era um fator de enriquecimento, e não permitia a esses proprietários de escravos elevaram-se a um patamar em que pudessem viver do trabalho alheio. De qualquer modo, este acontecimento era certamente um elemento de cumplicidade dos trabalhadores com a manutenção da escravidão.   
[4] - A revolução burguesa manteve a sociedade como sociedade de classes. No entanto, subverteu as relações fundamentais de propriedade substituindo a propriedade feudal pela propriedade burguesa, abolindo a servidão, característica do feudalismo e instituindo o trabalho livre, ou por outra, a semi-servidão do trabalho assalariado.
[5] - A inspiração em passagens selecionadas da bíblia (http://www.bibliacatolica.com.br/biblia-ave-maria/habacuc/.) ligou a variante anglo-saxônica da revolução burguesa à reforma religiosa.  
[6] - Os destituídos de propriedade ou aqueles cuja propriedade, mais formal do que real, não servia de base à riqueza diferencial, à acumulação ou exploração do trabalho alheio.

[7] - Proletariado urbano, constituído principalmente por pequenos proprietários autônomos (artesãos, comerciantes, prestadores de serviços) e assalariados.
[8] -O voto feminino também teve que se arrancado da burguesia e só se generalizaria no século XX.
[9] - Podemos tomar como exemplo o marco da revolução burguesa no Brasil colocado com a libertação does escravos e a proclamação da república, eventos nos quais as massas populares não tiveram papel protagonista expressivo.
[10] - A burguesia ganha as eleições, mesmo quando partidos autodenominados de esquerda as ganham e uma vez no governo passam a administrar a reprodução do capital, como a história europeia de depois da Segunda Guerra o demonstra amplamente. O regime democrático representativo bem realizado oferece liberdades e tudo pode ser mudado, desde que não se mude o necessário à reprodução do capital.  
[11] - O trabalho assalariado é a mercadoria fundamental do regime capitalista de produção. O Direito Civil, por meio de uma fictio iuris, determina que o trabalhador assalariado é proprietário da mercadoria força de trabalho em condições equivalentes à de qualquer outro proprietário. Com efeito, o trabalhador participa da vida mercantil na esfera do consumo, e na esfera da circulação como vendedor relativamente autônomo de sua força de trabalho. Porém, na esfera da Produção, à diferença de qualquer outro proprietário real, seu estatuto é semiservil (DOMENECH, 2004). Não obstante a flagrante contradição, o trabalhador sofre os efeitos alienantes do fetichismo da mercadoria, aos quais se somam os gravames de sua subalternidade como produtor.
[12] -Não se pode confundir ditadura de classe, que é a situação estrutural de uma formação social, como a feudal, digamos, com a situação prosaica de um governo autocrático, como o de uma ditadura militar, por exemplo.
[13] - O Estado de Direito, de fato, é sempre, em maior ou menor medida, estado de direito e estado de exceção (AGAMBEN, 2012).
[14] - Usamos o termo proletariado em sentido lato, que se refere à classe operária, mas também a todos os trabalhadores pobres, tais como os camponeses que têm propriedade da terra, quando a têm, mais formal do que real.
[15] - A ditadura democrática do proletariado e dos camponeses situava-se no campo da revolução burguesa e seu programa defendia três pontos cruciais: república democrática, confiscação das terras dos nobres e jornada de 8 hs.
[16] - É interessante observar que nesse momento o Partido Bolchevique tinha se aproximado das posições políticas do Partido Menchevique.
[17] - Teses de abril.
[18] - Devemos distinguir entre representação por delegados e a representação de tipo parlamentar. Os delegados, em princípio, devem defender as posições da base que os indicou, o que é garantido pelo fato de poderem ser destituídos a qualquer momento. Os representantes de tipo parlamentar na prática têm autonomia para atuarem segundo seu arbítrio. 
[19] - O atual movimento de ocupação de escolas no Brasil, levado a cabo pelos estudantes, trabalhadores virtuais, aparentemente sem qualquer teoria orientadora, é expressão dessa tendência imanente do trabalhador coletivo que também pode se manifestar no âmbito escolar.
[20] - Segundo Avrich (1974), após a Revolução o controle das empresas pelos trabalhadores se acelerou. E em pouco tempo, uma parte significativa da indústria russa encontrava-se sob alguma forma de controle operário. Isto, mais a eclosão da guerra civil, teriam sido fatores decisivos na decisão do governo de estatizar toda a indústria, o que não estava previsto no curto prazo e médio prazo.
[21] - A Comuna de Paris de 1871 introduziu no cenário político categorias democráticas novas que deslocariam as técnicas democráticas consagradas levando a democracia a um patamar muito mais avançado. No entanto, essas novas concepções radicais nunca chegaram a ser populares entre os partidários da democracia. 


In
LIMA FILHO, P.A.; NOVAES, H.T.; MACEDO, R.F. (Orgs)
Movimentos sociais e crises contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo crítico
Uberlândia/Minas Gerais: Navegando Publicações, 2017

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